O Estado Democrático de Direito reconhece como válido impedir a
continuidade de um governo que esteja, em seu exercício, atentando contra a lei
e contra as próprias instituições. Embora a palavra impeachment não faça parte do vocabulário jurídico brasileiro, ela
ronda e ameaça presidentes democraticamente eleitos nos últimos 25 anos. A Constituição
Brasileira fala de “perda do mandato” e a Lei nº. 1.079/1950 trata da “perda do
cargo”.
Foi assim com Collor, o primeiro presidente eleito depois da
redemocratização do país, resultado de uma forte mobilização de jovens de
classe média que saíram às ruas de cara pintada pedindo o seu afastamento, o
que aconteceu em 1992. O segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, cuja emenda
constitucional que permitiu sua reeleição foi marcada por um suspeito esquema de
voto que nunca foi investigado, também foi alvo de tentativas de impedimento. Nem
mesmo o elogiado programa de estabilização econômica do Plano Real – mantido a
duras penas por uma política de arrocho e congelamento de salários e de
privatizações – impediram que se ouvisse o retumbante “Fora FHC” e que acontecesse
a Marcha dos 100 Mil, em Brasília, no ano de 1999. Lula também foi alvo de tentativas
de impeachment como resultado dos escândalos
do processo conhecido como “mensalão”, ao final do seu primeiro mandato. E o
governo atual vem enfrentando pressões desde a reeleição.
A crise pela qual o Brasil passa hoje é de governabilidade. Problemas
sociais e econômicos não são criações deste governo nem dos governos mais
recentes, mas resultado histórico de um regime de exploração e de discriminação
das camadas mais pobres. O quadro de instabilidade envolve: o Congresso
Nacional, em que os presidentes das duas casas estão envolvidos em denúncias de
corrupção; o Poder Judiciário, que é conservador e se rege por uma estrutura
arcaica que visa favorecer ricos e poderosos em detrimento do bem comum; um
Poder Executivo exercido por um partido que herda um preconceito e um ódio às
forças de esquerda que, na maior parte da história, viveu na clandestinidade. Há
ainda um processo investigativo de crimes de corrupção que envolvem altos
funcionários da maior empresa do Brasil, a estatal Petrobras, e as principais
empreiteiras que prestam serviços à ela. Some-se a isso a economia em recessão,
o crescimento da inflação e o crescimento de um moralismo de direita que
estimula o ódio e o preconceito a qualquer tentativa de se respeitar o processo
democrático que reelegeu a presidente atual.
É bom lembrar que corrupção é uma palavra que tem sua origem na ideia de
fragmentação. Lidar com a corrupção é um grande desafio, principalmente quando
o corrupto se disfarça de uma pessoa de bem, de “excelência”, e se aproveita
disso para desviar recursos públicos. Quando a sociedade está fragmentada, o
combate à corrupção torna-se ainda mais difícil, pois não se sabe a quem de
fato está combatendo.
Resta à população o direito de se manifestar. O Brasil pagou um alto
preço para ver restabelecido o direito de expressar publicamente o seu estado
de indignação pelo que aí está. Portanto, é legítimo que o povo saia às ruas e
levante suas bandeiras pelas mudanças que deseja. É bom que se diga:
impeachment não é golpe, mas um instrumento democrático de defesa das
instituições políticas majoritárias. A tentativa de golpe está na motivação e
nas articulações que são feitas para alcançá-lo.
Quando você observa de onde partem as articulações para as manifestações
neste momento, verifica-se que estão ali representantes dos segmentos
oligárquicos e conservadores que sempre foram responsáveis pela exploração e a
opressão das camadas inferiores da população. O pior é que o fazem instigando
um sentimento de revolta em gente simples que não leva em consideração os
aspectos históricos que têm levado o país à situação que nos encontramos hoje.
O resultado é um comportamento que beira à irracionalidade, de ofensas e
sentimentos de vingança contra qualquer tentativa de diálogo.
A nossa jovem democracia ainda carece de muito aprendizado. Isso quer
dizer que ainda está muito viva no imaginário das pessoas o tempo dominado por
figuras despóticas, de coronéis e salvadores da pátria, de ditadores que chamam
golpes de revolução, de figuras públicas que ainda conseguem escapar das
investigações para assumirem condutas moralistas contra quem não atende mais a
seus interesses.
Acredito que mudança de fato irá acontecer quando a população se der
conta de que o que precisamos mesmo não é de um movimento de peças do tabuleiro
ou de uma brincadeira de dança das cadeiras. O que o Brasil precisa urgentemente
é de uma reforma política intensa, que mobilize meios para que os serviços
públicos de saúde, educação, segurança e transporte sejam equivalentes para
ricos e pobres; que estimule formas de ganho e de produção que vão além de
políticas de distribuição de renda; que resgate valores morais que viabilizem
oportunidades iguais de trabalho e renda para todos, em que um não necessite
mais ser explorado pelo outro.
Para isso, precisamos ir às ruas todos os dias, para lembrar aos
parlamentares que precisam legislar com justiça, e não preocupados com critérios
de distribuição de verba; para lembrar aos juízes e procuradores de justiça que
a prioridade é o bem-estar da população, e não a legitimação do estado; e,
claro, lembrar aos governantes (presidente, governadores e prefeitos) que eles
foram eleitos para cuidarem de forma digna do direito de todos.
Este é o meu protesto. Também estou indignado, mas sei contra quem eu
dirijo a minha indignação.