“Então os olhos dos que veem não estarão mais fechados, e os ouvidos dos que ouvem escutarão” (Isaías 32.3).
O tema da conferência foi “Paz com a Natureza” para
enfatizar a ideia de que a conservação da biodiversidade requer um compromisso
de toda a humanidade. Para isso, seria necessário mobilizar recursos
financeiros para procurar reverter a perda da diversidade até o ano de 2030.
Porem, não houve um consenso acerca de quanto seria necessário para promover as
ações para conter a perda da diversidade biológica, principalmente entre os
países mais desenvolvidos.
Entretanto, houve conquistas históricas. A COP 16 definiu
acordos para a partilha das informações dos códigos genéticos visando promover
o seu uso sustentável e garantir o acesso equitativo aos benefícios da
biodiversidade. Outra conquista foi o reconhecimento da importância e a
inclusão dos povos originários e das comunidades afrodescendentes no âmbito da
Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica. O objetivo foi o de
garantir espaço direto de voz e de influência nas tomadas de decisão por possuírem
conhecimentos e práticas que contribuem para a concretização dos objetivos do
Quadro Global de Diversidade.
Mas é preciso fazer mais. Necessitamos de um diálogo para
desenvolver juntos e juntas formas de
moldar o futuro do planeta. Papa Francisco, em sua encíclica Laudato Si, lançou esse desafio para que
seja possível construir um novo ambiente de solidariedade universal em que
todos os seres vivos, desde os mais vulneráveis, possam viver com dignidade.
Trata-se de uma mudança de mentalidade que atinge também a
fé, que precisa abrir mão da crença de que o homem é o centro de tudo para
desenvolver ações que envolvam práticas de espiritualidade com o cuidado de
toda a Criação. A ecoespiritualidade emerge como um exercício de fé em busca da
reconciliação do ser humano com a natureza, compreendendo a sacralidade da vida
de todas as criaturas e a responsabilidade de proteger a dignidade da vida. Eco
vem de oikos, que é casa em grego. A
ecoespiritualidade é o exercício de cuidado com a casa comum em perspectivas
ética, política, social, econômica e espiritual.
Necessitamos também de uma voz profética de arrependimento e
de compromisso com a justiça e a paz com toda a Criação. Isso envolve uma
Teologia da Criação que proponha um caminho de reconciliação uns com os outros
e com o Criador a fim de promovermos justiça genuína para todos os seres vivos.
Só assim a Criação encontrará paz.
Essa preocupação pode ser encontrada na Escritura,
especificamente no livro do profeta Isaías. Ele disse: “Meu povo viverá em paz, tranquilo em seu lar; terá descanso e
segurança” (Isaías 32.18 NVT). A promessa de paz e segurança é consequência
do compromisso com a justiça. É uma mensagem que nos desafia a nos
constituirmos como uma sociedade justa, baseada em princípios de equidade e
respeito mútuo, onde todos e todas possam desfrutar a vida com tranquilidade.
O profeta inicia, no capítulo 32, a descrever a perspectiva
messiânica do Reino de Deus. Um reino futuro, mas que já começava a despontar
naquele tempo em Judá com promessa de justiça e paz para toda a Criação. Um
reino de retidão que agirá com justiça, o que é um contraste à tirania, à
corrupção e à injustiça dos regimes de poder com os quais Judá já havia convivido.
Um governo assim se transforma em um refúgio para os
oprimidos. É como um vento suave em meio ao calor escaldante, como uma corrente
de água em terra seca e como a sombra no deserto. Um verdadeiro oásis de
esperança em meio ao deserto da incerteza, da exploração e da maldade. A
mensagem profética é marcada por uma linguagem poética que destrói falsas
narrativas e que aponta para a restauração da dignidade da vida em todos os
aspectos.
O resultado da justiça é a transformação do cenário de
desolação em que a sociedade vive. As pessoas em geral serão curadas da cegueira
e da surdez que as impedem de lutar por direitos e dignidade. O povo terá
sabedoria e entendimento para tomar decisões acertadas. Os tolos não terão mais
tanta influência e os sem caráter não terão tanto poder, como acontece em
nossos dias. Parece que Isaías se dirige a nós em tempo de fake news, pós-verdade,
disseminação do ódio, negacionismos e extremismos nas redes sociais.
Nesse tempo messiânico, Isaías vê que o papel das mulheres é
fundamental. Elas são tratadas como agentes de transformação com sua capacidade
e sabedoria. O chamado é para que se levantem com urgência, porque a terra não
mais produzirá os frutos para o sustento de suas famílias por causa da maldade
dos homens. Suas vozes de lamento e de protesto devem ecoar por todas as
partes, desde as casas até às cidades.
Isaías descreve o cenário da natureza devastada pela
ganância e pela exploração da terra, resultado do afastamento de Deus e de seus
propósitos para toda a Criação. A consequência se reflete nas relações sociais,
na vida das cidades e nas estruturas de poder, que estão deterioradas pelo
pecado humano. O afastamento de Deus tem afetado toda a Criação. Aquilo que foi
criado para trazer segurança, paz e suprimento para todos estava em ruínas.
Terras, biomas, rios e oceanos sofrem com a cultura da arrogância, da
acumulação e da ganância.
O projeto da Criação divina foi fundado no senso de justiça
e paz, mas a humanidade quebrou essa relação promovendo uma verdadeira guerra
através da exploração desordenada dos recursos naturais, do consumo exagerado e
do extermínio de espécies. A economia capitalista moderna estabeleceu práticas
insustentáveis de exploração dos recursos naturais colocando em risco a vida de
todo o planeta.
Nós, que somos coparticipantes da Criação, nos tornamos
cúmplices e corresponsáveis pela crise provocada pela devastação. A maneira
como consumimos, empreendemos e orientamos a economia voltada para o lucro
esbarra com a dificuldade de colocar em prática princípios de sustentabilidade.
O resultado é mais poluição, crises sanitárias, fenômenos ambientais cada vez
mais devastadores, desmatamento ilegal para dar lugar a monoculturas,
exploração de minerais que colocam em risco biomas inteiros e emissão de gases
do efeito estufa.
A responsabilidade tanto é coletiva e estrutural, como
também é individual. O apego ao luxo, o desperdício, o uso de veículos e equipamentos
poluentes, a aplicação de produtos químicos e o descarte de resíduos são
algumas dessas coisas que fazemos que contribuem para o quadro atual de
desolação.
Quando olhamos ao nosso redor, vemos um cenário de conflitos
e destruição. A palavra desolação resume bem o contexto da atual crise
ambiental e climática. Em todas as partes do mundo podemos ver que a causa
dessa desolação é o próprio ser humano que insiste em provocar danos à
natureza. Ao mesmo tempo, os próprios seres humanos são também vítimas dessa
desolação.
O
mundo está em crise e a resposta passa por uma mudança de mentalidade. A mensagem
profética de Isaías lança as bases dessa mudança necessária e urgente, que fala
de justiça, paz e reconciliação com a Criação. Como apelou o Papa Francisco em
sua encíclica Laudato Si: “Qual é o
objetivo do nosso trabalho? Que necessidade tem a terra de nós? Deixar um
planeta habitável às gerações futuras depende de nós” (2015, § 160).
A Teologia se vê impelida a mover-se pelo Espírito Santo, o
sopro da vida, que é derramado sobre nós nesse momento, trazendo esperança de
renovação para a terra e de restauração da harmonia da Criação. Nesse tempo,
somos chamados como cristãos e cristãs a nos unir com alegria, justiça e paz a
toda a Criação para vivermos o que fomos criados para ser: cooperadores uns dos
outros, como embaixadores da justiça, da paz e da reconciliação.