quarta-feira, 31 de março de 2010

Páscoa, espiritualidade e significado / Easter, spirituality and meaning / La Pascua, la espiritualidad y el sentido

Quando foi instituída a primeira Páscoa, o povo hebreu estava em uma situação limite. Eles precisavam fazer a escolha: ou ficavam no lugar onde havia cebolas e carne ou saíam em peregrinação para o lugar que mana leite e mel. Mas não era uma escolha de paladares e sabores. Era a escolha de confiar na promessa divina ou não. O Egito era um lugar de esforço e escravidão. A terra da promessa seria um lugar de outro tipo de esforço, mas onde seria possível experimentar a liberdade. O problema é que isso implicava um exílio. Em meio a expectativas da partida do Egito para o lugar da promessa, Deus pede para que seu povo celebre um banquete, cuja marca predominante é o sangue do cordeiro como marca de livramento e de confiança. O povo tinha que estar preparado para partir a qualquer momento.
Quando Jesus comeu sua última páscoa com seus discípulos, era também uma situação limite. Voltar a Jerusalém não foi uma decisão fácil. Da última vez, Jesus fora rejeitado. Dessa vez, podia ser a última e isso estava cercado de temores. Ao chegarem, eles não sabiam sequer aonde iriam se reunir. Encontrar um homem com um cântaro de água não seria uma coisa tão simples numa cidade como aquela. Em meio à incerteza, a notícia de que um dos doze iria trair. Durante a refeição, típica das famílias judaicas da época, Jesus interrompe o banquete, toma o pão e o cálice de vinho e diz: isto é o meu corpo e o meu sangue.
Muito provavelmente Jesus tinha na mesa os ingredientes básicos de uma ceia judaica: além de pão asmo e vinho, havia também cordeiro assado e ervas amargas. Cada elemento se revestia de uma simbologia que apontava para Cristo. O cordeiro era a lembrança do sacrifício que traz perdão. João 1.29. As ervas amargas lembravam o sofrimento que seria tomado sobre si pelo messias prometido. Isaías 53.4-5. O pão teria que ser sem fermento, o pão asmo, para lembrar a necessidade de uma vida desprendida. 1 Coríntios 5.7-8, João 6.35 e 50. E o vinho representava o sangue que propiciava o perdão e a reconciliação com Deus. Mateus 26.38, 1 João 1.7.
A Páscoa é esse momento que nos remete a algumas atitudes de nossa fé. Tanto na primeira vez quanto na última ceia de Jesus somos lembrados de que, para uma experiência de Deus que possa gerar vida, se fazem necessários alguns deslocamentos: de tempo – quando deixamos de ser dominados por uma temporalidade marcada pela finitude e pela incompletude para viver na dimensão do oportuno, do vivido e do eterno; de espaço – quando deixamos de lado um a preocupação centrada no eu para vivermos no espaço do outro, como um exílio de si mesmo; de ordem – quando deixamos a lógica que rege as ações humanas para vivermos a graça.
A Páscoa é essa afirmação do humano que descobre em Cristo que pode e deve viver diante de Deus como humano. Somos livres para assumir a nossa humanidade e, assim viver diante de Deus em total responsabilidade. Liberdade e responsabilidade se encontram como termos correlatos e é isso que nos aponta para nós mesmos, em nossa condição, para vivenciarmos a experiência de Deus com a consciência livre por meio de Cristo.

sábado, 27 de março de 2010

Espiritualidade e comunhão / Spirituality and communion / La espiritualidad y la comunión

A igreja do primeiro século da era cristã desenvolveu um sentido de comunhão que proporcionava inter-relações profundas e saudáveis, apesar de todos os conflitos, diferenças e circunstâncias a que os cristãos, de um modo geral, estavam envolvidos. A base dessa compreensão pode ser resumida na expressão de Paulo: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.28). Ser cristão significa simplesmente crer e amar. Jesus afirmou que quem crê já passou da morte para vida. João também afirmou que aquele que ama já passou da morte para a vida. E isso era vivido intensamente na vida comunitária de forma concreta.
Algumas evidências desse espírito de comunhão que permeava as comunidades cristãs podiam ser identificadas claramente, a começar na concepção do batismo como rito de iniciação, que se opunha à circuncisão judaica. Enquanto o batismo é símbolo de acolhimento universal de homens e mulheres, resultado do ato de crer, a circuncisão era excludente. Isso reforça o fato de que o ethos cristão é de igualdade.
A vida da igreja é que possibilitava a comunhão nessa dimensão, sinônimo de salvação e princípio para afirmação de uma comunidade que se propõe ser seguidora de Jesus no mundo.
Essa comunidade, que vive em comunhão, nasce de uma experiência espiritual comum. O grupo que se manteve no cenáculo reunido após a ressurreição não tinha um projeto de igreja ou mesmo um plano de ação, mas tinham em comum o fato de terem uma relação com Jesus. A experiências que eles viveram no dia do pentecostes foi transformadora, como se fosse uma recriação do próprio sentido da vida, que lhes conferiu coragem, que lhes conferiu capacitação para que vivenciassem a expansão da igreja.
Nessa experiência, nem mesmo a linguagem seria suficiente para expressar o que acontecia. A experiência espiritual que tiveram estava para além das relações simbólicas. O Espírito Santo lhes reacendeu a paixão pelo Jesus que se fez história e operacionalizou a comunhão entre eles. Dali, lavanta-se um grupo que se entende com a missão de fazer com que a humanidade reencontre o caminho para a felicidade. É a comunhão que confere a humanidade a condição que Deus deseja para ela. Essa comunhão provoca deslocamentos na nossa relação com o mundo. A temporalidade já não se limita mais ao cronos, mas ao kairos de Deus. O lugar de realização pessoal é a conformação com Cristo, como se fosse um êxodo de si mesmo para viver o que Cristo propõe como ensino e vida. O que passa a pôr ordem em nossa relação com o mundo é a maneira como construímos a nossa identidade, a ordem em favor do amor e da liberdade nas ações cotidianas. Somos deslocados do espaço de nós mesmos para vivermos no espaço do outro.
Esse modo de compreender a comunhão na igreja primitiva faz parte de um conjunto teórico conhecido como eclesiologia da comunhão, que tem ajudado a igreja contemporânea a redescobrir a sua relevância para esse tempo.

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