
Duas realidades foram transmitidas pela tradição cristã: a da humanidade de Cristo, com sua atividade e sofrimentos humanos, e a sua união com a divindade. Divindade e humanidade encontram-se combinadas em uma só pessoa. Isso envolve duas questões: quem é Jesus? O único Senhor e Salvador. O que é Jesus? Verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Porém, há uma outra questão suscitada: como compreender essa união? Em outras palavras: como duas naturezas pessoais podem constituir uma só pessoa? O fato é que não houve uma maior investigação a respeito dessas questões, até o final do segundo século. No ocidente, a fórmula de Tertualiano (160-220) afirma com clareza as duas naturezas de Cristo, sem confusão entre as duas, nem redução de alguma delas. A questão mais controversa envolveu o oriente com suas duas escolas: a de Antioquia e a de Alexandria.
A controvérsia cristológica oriental está ligada ao fato de que o que não é assumido não é redimido, conforme afirmação de Gregório de Nazianzo (329-389). Isso implica uma mudança soteriológica. Por essa razão, a busca por uma definição a respeito da pessoa de Cristo tornou-se tão central. A afirmação bíblica nos dá conta de que: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai.” (João 1.14) Ela nos remete à compreensão de que a carne não está separada do Verbo, nem o Verbo da carne. Somente no século V que essa questão vai ter uma solução com a definição da fórmula do concílio de Calcedônia. Muitos afirmam que a confissão de fé firmada nos grandes concílios cristológicos é inadequada à expressão contemporânea da fé. A discussão a respeito de quem é Jesus e o que ele tem de significativo para o homem continua de pé. A questão é: Jesus era divino por ter vivido uma vida perfeita ou pôde viver uma vida perfeita por ser divino?
Essa questão aponta para o dilema que só se resolve diante do fato de que a doutrina da encarnação comporta um paradoxo que não pode ser racionalizado, mas compreendido tão somente à luz da graça. A Cristologia que se encontra no Novo Testamento revela um grande abismo entre o que Cristo é e o que nós somos, mesmo quando nos constituímos como igreja. As passagens escriturísticas, tanto dos evangelhos quanto das epístolas, demonstram uma forte tendência de associar a experiência humana de Cristo e a experiência daqueles a quem ele salva, como se pode ver na Carta aos Romanos 8.29: “Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.”
Uma Cristologia para hoje aponta para a necessidade de se tratar da humanidade e da divindade de Cristo em uma perspectiva antropológica, em que a vida de Jesus possa ser vista como realização humana. Como afirmou Irineu: “Ele se fez como nós somos para que pudesse fazer-nos o que ele mesmo é.” Essa abordagem, no entanto, corre o risco de pender para um docetismo, que tenta diminuir a humanidade de Jesus, e para um pelagianismo, que tenta conferir à humanidade uma condição de realização para a salvação.
Foi Rudolf Bultmann que abriu o caminho para uma compreensão cristológica que aponta para uma antropologia. Tal como Wolfhart Pannemberg propôs, é preciso desenvolver uma Cristologia que decorra da análise crítica do Jesus de Nazaré, uma Cristologia que vem do baixo, que possibilite interpretar a história de Jesus e sua crucificação, ressurreição e glorificação à luz de nossa própria existência histórica. Karl Rahner reconhece que a descoberta de um uma perspectiva cristológica que tem seu ponto de partida na humanidade de Jesus é “um longo e aventureiro caminho, pleno de imprevistos; uma viagem da qual não se vê o fim senão quando se acaba por entrar no seu próprio coração, para aí descobrir que esse horrível fosso está pleno do próprio Deus”. Para ele, a tarefa mais urgente de uma Cristologia de hoje consiste retomar o dogma da igreja, de um Deus que se manifesta de forma concreta em nossa humanidade, de modo a tornar compreensível o que estas proposições significam e em “excluir toda a aparência de uma mitologia que se tornou inaceitável hoje”. Jürgen Moltmann desenvolveu uma Cristologia que aponta para o futuro, que traz algo radicalmente novo sem estar separado da realidade presente, que desperta a esperança de algo novo que ainda não ocorreu, que se cumpra em todos a justiça de Deus que foi prometida por meio de sua ressurreição.
Essas abordagens contemporâneas dão conta de que a Cristologia não se dá por meio de uma afirmação conceitual e especulativa. Isso já se viu no passado. Toda a argumentação e investigação possível, inclusive como pôde ficar claro pela busca do Jesus histórico no século XIX e começo do século XX, não dão conta da complexidade da pessoa de Jesus de Nazaré e de sua importância para a fé e para a teologia cristãs. Estas, bem como toda a revelação do Novo Testamento, são perpassadas por uma tensão que envolve tanto o Jesus da história como o Cristo da fé, que é percebida na vida e testemunho daqueles que creem e que se constituem a comunidade daqueles que vivem em conformidade com Cristo.
Ainda vale a preocupação do apóstolo Paulo na Carta aos Gálatas 2.20: ‘Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim.”
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