quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Princípios para uma teologia do cuidado / Principles for a theology of care / Principios para una teología del cuidado


A Teologia que se afirma a partir da análise da Queda não tem sido suficiente para dar conta da compreensão do cuidado divino para com a humanidade e a criação como um todo. O cuidado divino é anterior à queda, se situação no ambiente inicial da criação. O ato criador de Deus inclui a preocupação com a formação da vida e as condições de existência no mundo. A criação é o oposto ao vazio inerte. Ela é portadora de vitalidade que reflete o amor divino e se torna espaço de cuidado.
Pensar Deus só é possível a partir de uma relação de cuidado. Não faz sentido a ideia de um Deus fabricante, ou um Deus controlador, ou um Deus julgador ou mesmo um Deus todo-poderoso fora da preocupação com o cuidado. O poder divino só pode ser compreendido quando colocado a serviço do cuidado. Até mesmo o amor divino só pode ser explicado em meio às expressões de cuidado com aqueles que carecem. O cuidado divino é anterior às religiões, às Escrituras, aos ritos. Ele é a expressão de seu amor. Por que ele ama, ele cria, se relaciona e age com misericórdia com sua criação. Isso é cuidado.
O cuidado divino está presente na criação. Ao criar o homem, Deus se ocupou em proporcionar as condições que favorecem a vida, que permite seu desenvolvimento num perspectiva da evolução, a fim de que a vida siga seu rumo próprio. Deus convoca o ser humano a ser coparticipante do cuidado com a pessoa e com a natureza. Ele cuida de nós e nos chama a cuidarmos uns dos outros.
O cuidado de Deus sobre a vida reconhece que toda forma de vida importa em todas as suas relações, em todas as suas formas e todas as suas expressões. A vida consiste em uma teia de relações e em que tudo importa. Todas as coisas na natureza estão tão intrinsecamente interligadas que tudo o que afeta a vida de um compromete as condições de vida de todos. ‘
Deus colocou o homem como um cuidador da vida, como alguém que ajuda a construir as condições favoráveis para que a vida aconteça em toda sua beleza e diversidade. A sua ação deve interferir no estímulo e preservação de toda forma de vida. É pela força do trabalho que o ser humano age para reproduzir a vida, exercer cuidado sobre a vida e desfrutar dos suprimentos que a natureza fornece para a manutenção da vida. A primeira narrativa da criação, em Gênesis 1.28-30, da conta de que Deus atribui ao ser humano a responsabilidade de exercer governo e domínio sobre a vida, não como tiranos e exploradores, mas como quem age para proporcionar o bem comum que permite que toda forma de vida floresça. A vida da criação é concedida como dádiva mútua e diversa.
Para a elaboração de uma teologia do cuidado, é preciso seguir uma metodologia que tenha como pressuposto o cuidado divino sobre sua criação. É preciso se perguntar: como o Deus cuidador se revela, como ele se manifesta, como ele expressa o seu cuidado e como ele estende seu cuidado sobre todos? Isso faz emergir pelo menos quatro temas da teologia sistemática: a Revelação, a Trindade, o Reino de Deus e a Igreja.
Deus revela seu cuidado por meio de sua ação e Palavra. A própria criação em si descortina o caráter do cuidado divino, que se preocupa com as relações, com os detalhes, com a pluralidade das formas. Mas o cuidado também se expressa pelas fala. Um Deus que cuida fala. Sua voz se ouve em meio à imensidão da criação, não há um espaço em todo o Universo que não declare o que Deus fala com suas obras. Até no silêncio Deus fala. E, ao mesmo tempo em que fala, escuta o que a sua criação proclama. Fala, silêncio e escuta são formas divinas de se Deus cuidar da vida da criação comunicando-se com elas, interagindo, permitindo que falem, silenciem e escutem de igual modo. Os homens discernem o cuidado divino em se comunicar, racionalizam em linguagem e formas simbólicas o que percebem do cuidado divino. Há uma intertextualidade que diz respeito ao percebido na comunicação divina, que se converte em linguagem poética, na forma de orações, expressões de louvor, súplicas, salmos, narrativas, aforismos e predições. E isso acontece num contexto histórico, social e cultural. Essa gramaticalidade presente na interação comunicativa estabelece distinções entre sagrado e profano, elege textos que são fundadores, que servem como oráculos que ajudam a entender outros contextos. Essa construção textual não é mera racionalidade, mas a imersão do divino no humano e vice-versa. Penetrar no universo da linguagem divina é pura inspiração, em que Deus comunica de si e o homem exerce plenamente toda sua capacidade de percepção. As Escrituras são o produto mais sublime dessa interação, uma evidência que Deus fala. É palavra divina percebida, discernida e registrada no contexto de uma cultura para servir de sinal para toda humanidade que há um Deus que cuida.
O Deus que cuida é uno, mas é também plural. O Deus que criou o universo plural, que se revela pela pluralidade das suas expressões, também se manifesta de forma plural. Falar da Trindade é falar de pluralidade. A maneira como as manifestações divinas interagem entre si está cuidadosamente em harmonia. Deus é o que gera a vida, Deus é o que vem a nós para cuidar pessoalmente da vida e Deus é o que sopra sobre a vida o seu cuidado amoroso, compassivo, consolador. Ele mesmo criou a vida em sua diversidade, ele mesmo cuidou de garantir a liberdade da vida e ele mesmo se faz presente como aquele que está ao lado da vida. O criador, o libertador e o consolador da vida são um em meio à pluralidade, como é a vida.
O cuidado divino pela vida se dá na perspectiva do Reino de Deus. É a esfera do cuidado divino. Deus reivindica para si toda forma de vida e permite que sua criação desfrute diante de si de sua existência sem constrangimento algum. O Reino de Deus é o espaço em que Deus cuida de toda a criação, a começar pela pessoa humana. Deus cuida do homem, restaura sua humanidade, o redime de sua própria perdição e o restaura para ser um agente de cuidado no mundo. O Reino de Deus é um reino de cuidado na medida em que Deus cuida de pessoas a fim de que estas sejam cooperadoras no cuidado da criação. Esse é o sentido da salvação, como o cerne do cuidado divino pela criação. Somos salvos de nossa perdição para servirmos como cooperadores de Deus no cuidado de toda a criação.
As pessoas alcançadas por essa graça salvadora são chamadas a se constituírem em comunidade. A salvação é a expressão do cuidado divino com a pessoa que se realiza de forma comunitária. A Igreja se constitui na comunidade formada por aqueles que cuidam da criação como pessoas que amam a Deus. Ser igreja é ser um corpo de pessoas que cuidam umas das outras e que se juntam para cuidar da vida de toda a criação porque é isso que entendem ser a missão divina. Para isso, a igreja que cuida precisa estar atenta às ameaças lançadas contra a vida: a opressão, a violência, a exploração, a exclusão. A igreja que cuida precisa se capacitar para ser a voz das vítimas das ameaças à vida, ser a comunidade acolhedora para aqueles que precisam de cuidado amoroso, como se Deus delas cuidasse. Precisa ser a voz profética que aponta as ameaças à vida, mas que também propõe caminhos de superação a partir do cuidado divino.
Leia também: Por uma espiritualidade do cuidado >>.
Leia também: Lucas, o evangelho do cuidado >>.

Um comentário:

  1. Resumo o seu pensamento neste trecho. "Deus colocou o homem como um cuidador da vida, não como tiranos."

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