sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Democracia sob ameaça: Invasão do Capitólio como sintoma da crise de legitimidade / Democracy under threat: Capitol invasion as a symptom of the crisis of legitimacy / Democracia amenazada: Invasión del Capitolio como síntoma de la crisis de legitimidad

 

O dia 6 de janeiro será lembrado nos Estados Unidos por dois grandes fatos. O primeiro é referente à vitória dos democratas na Georgia, estado sulista marcado por uma história de luta contra a segregação e o racismo, com a eleição dos candidatos Raphael Warnock e Jon Ossoff. Essa vitória dá ao presidente eleito Joe Biden um empate no número de cadeiras, o que leva as decisões importantes para o controle da vice-presidente Kamala Harris.

Warnock é, inclusive, o primeiro cidadão negro da Geórgia e de todos os estados do Sul dos EUA a ocupar uma cadeira no Senado norte-americano. Trata-se de um pastor da igreja batista, a mesma confissão de Martin Luther King Jr. e John Lewis, ativistas pelos direitos civis. Sua eleição é, portanto, uma vitória do movimento negro.

O segundo fato é referente à invasão do Capitólio, o Congresso norte-americano, quando este se reunia para referendar a eleição de Joe Biden à presidência. Toda a ação foi praticada por grupos supremacistas brancos e movimentos orientados por ideias conspiratórias, articulados por Donald Trump e seus seguidores, que não aceitam a derrota nas urnas. As infundadas alegações de fraude apresentadas por Trump foram todas contestadas judicialmente.

Para alguns analistas, a invasão ao Capitólio não foi apenas um protesto, mas uma tentativa de insurreição contra a decisão democrática das eleições presidenciais de 2020. Para outros, foi a demonstração fracassada de forças da extrema direita e de seu modo de ação, ao intimidar pela truculência a fim de mudar os resultados eleitorais. Do meu ponto de vista, foi uma demonstração do fracasso do atual modelo democrático diante das novas formas de relações políticas que emergem num mundo marcado por uma crise de legitimidade.

Ainda estão bem vivos na lembrança dos norte-americanos os protestos encabeçados pelo movimento Black Lives Matter (vidas negras importam, em tradução livre para o português) em função da morte de negros em ações praticadas por policiais brancos. Os dois fatos, vistos simultaneamente, representam a repetição dos motivos que levaram à Guerra de Secessão da década de 1860.

Lançando um olhar a partir da América Latina, o que se percebe num primeiro momento é que os EUA provaram de seu próprio veneno com a primeira tentativa declarada de golpe em toda a sua história republicana. De tanto patrocinar golpes em outras repúblicas, a ação dos aliados de Trump lembra o que foi praticado pela inteligência norte-americana em países com regimes frágeis tanto política quanto economicamente, conhecidos pela alcunha de “república das bananas”.

Do ponto de vista da constituição norte-americana, Trump deverá ser responsabilizado criminalmente pela invasão ao Capitólio, que inclusive resultou em mortes de manifestantes e de agentes de segurança, bem como de muitos feridos. As cenas chocantes e lamentáveis foram transmitidas para o mundo todo. Do ponto de vista jurídico, deveria ser também afastado do cargo e conduzido preso. Entretanto, essa ação depende de decisões no Congresso, na Suprema Corte e do Procurador Geral da República dos Estados Unidos.

Para nós, brasileiros, essas tentativas de invadir o Congresso, acampar em frente a ele, cercar o prédio do STF, lançar fogos de artifícios contra ele e fazer ameaças a membros do congresso, ministros do Supremo e seus familiares já foram vistas por aqui. Tais ações foram praticadas por grupos extremistas de direita, todos apoiadores do governo Bolsonaro e apoiados pelo próprio Presidente da República e seus familiares.

Em função disso, não dá para evitar a constatação de que o dia 6 de janeiro de 2021 foi um ensaio para o que pode acontecer em função de uma provável ação de impeachment contra o governo Bolsonaro ou, se conseguir concluir o mandato, em uma possível derrota na eleição de 2022.

Isso é uma ameaça à democracia. Não à democracia em si, mas ao modelo de democracia liberal a que se chegou no Ocidente. O próprio do Presidente da República brasileiro, no dia seguinte ao episódio, mencionou uma possível reação semelhante diante do resultado das eleições desfavorável a ele. A fala presidencial soa como desrespeito às instituições democráticas que o elegeram. Na verdade, é mais uma quebra de decoro do cargo, envolvendo a responsabilização pelo que pode acontecer daqui pra frente.

Foto: de Leah Millis, da Agência Reuters, publicada no site do jornal Deutsche Welle.

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