Quando se fala de Reforma Protestante, não se refere a
um movimento único e uniforme. Ela precisa ser compreendida a partir de uma
perspectiva plural, que aconteceu em um contexto de pluralidade, desenvolveu-se
de forma variada e configura-se também por uma diversidade. O correto seria
falar de reformas protestantes ao se tratar do fenômeno de transformação que o
cristianismo experimentou no limiar da Modernidade.
Entretanto, esse aspecto plural nunca foi visto como
um fator positivo, identificado como promotor de uma relação entre “inimigos de
si mesmos”, para usar a expressão empregada no título do livro de Rowland
Croucher que faz uma abordagem sobre o fenômeno do evangelicalismo, do
socialismo evangélico e do neopentecostalismo característicos do movimento
protestante a partir da década de 1960.
O pluralismo protestante tem sido objeto de um diálogo
impossível, marcado muito mais por aspectos organizacionais, doutrinários,
litúrgicos e até moralistas do que aqueles voltados para a essência da fé, da
comunhão e do amor cristão.
Como afirmou Claudio de Oliveira Ribeiro, no artigo
Espiritualidades plurais da Reforma: “a vivência
comunitária e a pluralidade constituem privilegiado potencial de geração de
utopia e que a ausência de referenciais utópicos dá lugar a formas de
individualismos exacerbados, de lógicas de exclusão e de sectarismos, de
imediatismos políticos, de racionalismos e de absolutismos, o que enfraquece a
vivência autêntica e gratuita da fé e a noção de diaconia como canal de
solidariedade, partilha e serviço. Tal pressuposição está em íntima sintonia
com os princípios teológicos da Reforma”.
Essa pluralidade está refletida na formação histórica,
na proposta teológica e na concepção eclesiológica. Não há uma história única
do protestantismo: a reforma aconteceu de forma distinta na Alemanha, na Suíça,
nos Países Baixos, na Inglaterra, Europa Central. Houve também movimentos que
foram duramente combatidos na França, na Itália e Espanha. Também não é
possível se falar de uma única teologia protestante: a chamada “teologia
reformada” pode ser entendida a partir de tendências luterana, calvinista e as
que marcaram a chamada reforma radical, com os grupos anabatistas e grupos
separatistas. Da mesma forma, não se pode falar de uma única eclesiologia protestante,
visto que os grupos foram adotando diversas formas de organização e de
estrutura, como os presbiterianos, os congregacionais, os metodistas, uns mais
hierárquicos e outros mais democráticos.
Embora haja essa diversidade histórica de expressões
da Reforma, essa condição de surgimento, formação e configuração não representa
uma oportunidade de diálogo fácil entre as várias manifestações do
protestantismo nem com outras formas de expressão do cristianismo.
É preciso desenvolver uma análise crítica das
condições de construção do que ficou conhecido como Reforma Protestante e
identificar suas várias tendências bem como os fatores que promovem
aproximações e distanciamentos entre eles. Nesse sentido, é possível falar de
antecedentes, de ações e de desdobramentos que são plurais em seu âmbito.
1) Antecedentes plurais – Os séculos XIII-XIV foram
marcados por movimentos após o chamado Grande Cisma que reivindicavam mudanças
na igreja do Ocidente que envolviam dois aspectos. O primeiro, voltado para a
reforma da fé e da hierarquia eclesiástica, com a atuação de expoentes como
Pedro Valdo, John Wycliff, João Huss, Comênio e Savanarola. O segundo, que
propunha uma mudança de costumes, mais voltado para aspectos morais, como foi o
caso da reforma humanista de Erasmo.
No fim da Idade Média, especialmente nos séculos XIV e
XV, havia uma grande insatisfação popular envolvendo questões sociais e ações
religiosas que provocavam um clima de insegurança. Como consequências desse
quadro, podemos citar a contestação ao clero e a busca por justiça social.
Podemos encontrar pelo menos três vertentes que
antecederam a Reforma:
a) Uma vertente acadêmica, marcada pelo declínio da
escolástica e o apelo à volta da simplicidade do Evangelho. Um dos textos
conhecidos é Imitação de Cristo, de
Tomás de Kempis.
b) Uma vertente popular, marcada por movimentos
marginais que se inspiravam em antigas ordens religiosas, como as dos
franciscanos e dos dominicanos. Havia um apreço à vida monástica, um apego à
prática de flagelos e penitências e a defesa de crenças escatológicas.
c) Uma vertente mística, marcada pela vida
contemplativa e a ênfase numa teologia apofática. O Mestre Eckhart é um de seus
representantes.
2) Ações plurais – Embora Lutero seja a figura de
destaque do movimento da Reforma, o luteranismo não foi único. Outras
expressões aconteceram ao longo de toda a Europa. Não podemos esquecer da
participação de nomes como Zwinglio e Calvino, do anglicanismo, dos huguenotes
franceses, de grupos radicais como os anabatistas e os separatistas ingleses,
dos movimentos de reforma da Escócia e da Espanha, das comunidades mendicantes
dos Países Baixos e do desdobramento místico do alemão Jacob Boehme e do
espanhol João de Valdez. Outro teólogo que atuou de forma marcante foi Thomas
Müntzer, que liderou um movimento de camponeses assumindo uma dimensão política
e revolucionária do pensamento da Reforma, mas acabou sendo derrotado, preso e
morto pelos próprios luteranos.
3) Desdobramentos plurais – Embora a Reforma
Protestante tenha acontecido no final do período renascentista, ela se
desenvolveu ao longo da Modernidade. Os acontecimentos históricos acabam se
entrelaçando com outros eventos significativos desse período. Entre eles
podemos mencionar a formação dos estados nacionais, o surgimento do pensamento
liberal e a ênfase ao individualismo. Max Weber, inclusive, já tem identificado
uma grande afinidade entre o protestantismo e o espírito do capitalismo,
sistema político-econômico que se afirma no contexto da Modernidade.
No contexto do luteranismo alemão, surge o movimento
pietista, que enfatizava a dimensão individual da experiência de Deus, com uma
forte inclinação moralista e um apelo ao estudo das Escrituras. O pietismo
defendeu crenças e práticas como a necessidade da conversão pessoal, da fuga do
mundo e da prática piedosa da caridade e da tolerância.
Já no contexto inglês, onde se deu a reforma
anglicana, surge outro movimento, o puritano, que procurar retirar os vestígios
do catolicismo que foram mantidos na igreja da Inglaterra. O puritanismo pode
ser considerado como um esforço pelo avivamento da igreja com importantes
consequências para a expansão da compreensão da missão da igreja no mundo.
Quando o puritanismo foi levado para a América, ali se expandiu e estabeleceu
bases para a formação dos Estados Unidos como nação democrática.
Essa condição plural do protestantismo tem sido objeto
de diversas investigações a respeito de suas causas e consequências.
Entretanto, o que se pode notar é que, em meio a sua diversidade, há um
distanciamento do espírito e das intenções que marcaram a Reforma Protestante.
O protestantismo é marcado hoje por pelo menos três
características predominantes, cada uma delas como uma pluralidade de
possibilidades:
a) Um viés fundamentalista.
b) Um viés carismático.
c) Um viés progressista.
O fenômeno do pluralismo protestante é um fator de
divisão que tem desencadeado uma identidade marcada pela falta de diálogo
interno. Essa falta de diálogo se reflete na esfera pública, com práticas e
discursos que deixam claro que uma nova onda de “reforma” precisa acontecer. Os
grupos protestantes são mais conhecidos pelo que proíbem do que pelo que
defendem.
Essa diversidade decorre de princípios orientadores
que precisam ser revisitados hoje no sentido de se contribuir bases para
relações ecumênicas e de diálogo inter-religioso. Rubem Alves, no livro Protestantismo e repressão, identificou que o
protestantismo foi, em seu primeiro momento, “a explosão de um grito reprimido
de liberdade”. Entretanto, como salientou Bonhoeffer em sua Ética, a igreja protestante encarna o
tema de nosso tempo, que é o da decadência.
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