“Mas vós
sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos chamarão ministros de nosso Deus
[...]” (Isaías 61.6).
O sacerdócio universal de todos os crentes é um dos mais
caros princípios da Reforma Protestante. É uma espécie de confrontação com a
divisão que o cristianismo ocidental havia construído na Idade Média de
separação entre clérigos e leigos no interior da igreja.
Esse princípio se baseia na descoberta de que a Bíblia apresenta
Jesus como o grande sacerdote, o único mediador entre Deus e os homens. E a
mesma Bíblia também diz que todos aqueles que seguem a Jesus em fé e praticam
seus ensinos partilham do seu sacerdócio. A Bíblia diz: “Mas vós sois [...] o
sacerdócio real” (1
Pedro 2.9) e “e nos fez reino, sacerdotes para Deus” (Apocalipse 1.6).
O Novo Testamento não fala de uma ordem sacerdotal para a
igreja. Ela ficou restrita ao templo judaico. O clericalismo é um dos maiores
equívocos desenvolvidos pela cristandade. Foi Tertuliano, no final do século
II, que se referiu aos líderes da igreja pela primeira vez como “sacerdotes”. Eram eles que tinham o dever de ofício de ministrar a eucaristia como um sacrifício.
Ao analisar as implicações da justificação pela fé e a graça
salvadora, Lutero aprofundou sua compreensão de que a salvação não é um mérito
humano, mas um dom divino a todo aquele que acolhe a obra de Cristo consumada
na cruz. Essa graça é libertadora de todo pecado, do medo da morte e da
condenação eterna, como também expressa a justiça divina sobre toda a criação.
Isso confere uma condição de plena liberdade ao que crê.
Numa obra de 1520, intitulada A liberdade do cristão, Lutero afirmou que “somos sacerdotes; isto é muito mais que ser reis,
porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos
outros”. E disse mais: “Tu perguntas: ‘Que diferença haveria entre os
sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é:
as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’, ‘religioso’ e outras semelhantes foram
injustamente retiradas do meio do povo comum, passando a ser usadas por um
pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero.’ A Escritura Sagrada
distingue apenas entre os doutos e os consagrados, chamando-os de ministros,
servos e administradores, que devem pregar aos outros a Cristo, a fé e a
liberdade cristã. Já que, embora sejamos todos igualmente sacerdotes, nem todos
podem servir, administrar e pregar.”
Embora seja uma
ideia revolucionária para o seu tempo (o século XVI), o princípio do sacerdócio
universal traz em si algumas implicações que precisam ser levadas em
consideração hoje. Alguns o veem como a base do individualismo evangélico e
outros o consideram como uma expressão da ideia da autonomia do sujeito trazida
pela racionalidade moderna, já presente no pensamento da Reforma Protestante.
Mas há algo mais.
Primeiramente, o
fato de que os cristãos em geral são sacerdotes se constitui em um privilégio,
e não uma exclusividade. Por sermos sacerdotes, temos acesso a Deus com
liberdade, mas isso não nos faz melhores ou piores do que as demais pessoas.
Isso deve despertar em nós ma espiritualidade mais humanizadora.
Em segundo lugar,
o sacerdócio universal tem uma dimensão comunitária. Não somos sacerdotes de
nós mesmos. Somos sacerdotes uns dos outros. Ninguém pode ser cristão sozinho.
Formamos a communio sanctorum – a comunhão
dos santos. A Bíblia nos ensina que o Espírito Santo capacita a todos com dons
a fim de que possam ministrar uns aos outros a graça recebida.
Em terceiro lugar, todos os crentes – inclusive pastores e
ministros – são leigos. A palavra não se refere a uma pessoa indouta ou
desconhecedora. Ela deriva do grego laós,
que quer dizer povo. Somos todos participantes do povo de Deus. E, mais do que
isso, acolhidos como filhos do mesmo pai. Isso não impede que haja liderança e
liderados, apenas lembra que o papel do líder é servir aos demais.
Toda vez que algum líder religioso se arvora com uma
autoridade sobre os demais seguidores da fé, o princípio do sacerdócio
universal é vilipendiado. O Senhor não colocou na igreja uns com poderes
superiores a outros, nem mesmo uns com autoridade sobre os demais. Antes, a
vida de fé deve ser desfrutada de forma harmoniosa entre todos aqueles que
comungam da mesma graça.
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