terça-feira, 31 de outubro de 2017

O Futuro da Reforma / The future of the Protestant Reformation / El futuro de la Reforma Protestante

Após cinco séculos da Reforma Protestante, a pergunta que se levanta é: qual é o seu futuro? Isso remete a outras indagações: precisamos de uma nova reforma hoje? As transformações que o cristianismo precisa experimentar hoje são da mesma natureza das do tempo da Reforma de Lutero? As respostas a essas indagações são complexas e exigem um olhar crítico para o momento pelo qual a fé cristã atravessa no mundo.
As causas da Reforma são mais profundas do que os desvios morais e a corrupção do clero da igreja do Ocidente. Nas confissões protestantes – principalmente a luterana de Augsburg e a anglicana de Westminster –, haverá mais preocupação com questões teológicas do que morais, haverá mais ênfase à comunhão dos santos do que aos ofícios. “A tese segundo a qual os Reformadores teriam deixado a Igreja romana porque ela estava repleta de devassidões e impurezas é insuficiente”, dirá o historiador Jean Delumeau em Nascimento e afirmação da Reforma. Da mesma forma, as consequências da Reforma vão além do cisma na igreja ocidental. Ela se desdobra em novas conquistas sociais num mundo em grande transformação.
A Reforma Protestante trouxe uma nova perspectiva política, econômica e cultural num mundo em efervescência. Não se pode separar os acontecimentos da Reforma dos movimentos ligados à afirmação dos estados nacionais na Europa, do surgimento da economia de mercado e as raízes do capitalismo, da formação do pensamento liberal e o humanismo nascente. Os pensadores da Reforma dialogaram com as grandes correntes de pensamento de seu tempo e influenciaram de forma decisiva as ideias emergentes. A Reforma Protestante contribuiu para a uma nova compreensão do papel da cultura, do conhecimento e da participação social do indivíduo. Isso se deu a partir do esforço de trazer a Bíblia para as línguas nacionais, ao propor um projeto educacional extensivo às populações mais pobres e até ao fortalecer as formas de organização das sociedades que tiveram uma experiência reformista.
Karl Marx, em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, reconheceu: “Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção porque pôs no seu lugar a servidão por convicção. Quebrou a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade o homem interior. Libertou o corpo dos grilhões, prendendo com grilhões o coração”. Para ele, a Reforma foi um acontecimento revolucionário, que transformou a Alemanha, não como solução, mas como “o modo correto de colocar o problema”.
Se no período renascentista o cristianismo passava por uma crise interna que envolvia a moral e o exercício da autoridade eclesiástica, hoje há uma crise que tem mais a ver com a maneira como a fé cristã enfrenta os dilemas e as dores do mundo. Se as causas da Reforma diziam respeito a um retorno à essência do cristianismo, hoje há a necessidade de se buscar relevância. O que se faz necessário hoje não é uma “reforma”, mas uma revisão dos rumos, do discurso e da práxis do cristianismo. Se as causas da Reforma eram internas, hoje as transformações precisam se dar na esfera pública.
O cristianismo perdeu relevância. Uma das evidências disso é que, quando alguém procura uma experiência de espiritualidade, o último lugar em que se vai buscar é a igreja. Há mais sentido para o mundo na espiritualidade dos movimentos orientais, da vida alternativa e até da autoajuda do que na vida de devoção ou mesmo no seguimento de Cristo. E isso se deve à maneira como ficou configurado aquilo que o cristianismo tem de pior: o fundamentalismo religioso, a pretensão de religiosidade hegemônica e a incapacidade de dialogar com o mundo.
Se os reformadores enfatizavam o livre exame da Escrituras, o sacerdócio universal dos crentes e a justificação pela fé como orientadores de uma nova teologia, as igrejas herdeiras da reforma precisam apontar suas reflexões e condutas não para reafirmar ou rever tais princípios, mas para reorientar sua ação no mundo. Nesse sentido, a esfera pública faz emergir uma nova compreensão teológica que dê conta de uma igreja comprometida com o chamado divino de ser servidora de um mundo perdido. Afinal, essa foi a proposta de Jesus de Nazaré ao comissionar seus discípulos: “Antes, dirijam-se às ovelhas perdidas de Israel” (Mateus 10.6).
Uma igreja que se ocupa da esfera pública precisa rever a maneira como se identifica como povo de Deus, não como sectário, mas como corpo de Cristo no mundo. Há uma necessidade de se empreender um esforço ecumênico para se ressaltar mais o que une os cristãos no mundo do que aquilo que os divide. A igreja cristã precisa se afirmar como uma família de muitos irmãos e irmãos, e não como um gueto ou um lugar de fuga do mundo.
Uma igreja que se ocupa da esfera pública precisa desenvolver um sentido de comunhão para além da sua realidade interna. Isso implica o resgate do sentido de comunidade, que se desloca do círculo restrito das relações eclesiásticas e se estende para dentro do mundo. A igreja precisa deixar de ser a expectadora de um mundo em naufrágio, como se vivesse uma realidade distante, para ser coparticipante do cuidado com o mundo como sendo parte dele. É preciso ver o mundo como nossa casa comum, e não como um além.
Uma igreja que se ocupa da esfera pública precisa possuir um sentido de missão voltada para o ser humano em sua totalidade. A igreja não é portadora de uma verdade absoluta, imutável e inquestionável. Ela é anunciadora da boa nova de salvação a toda criação: o ser humano em suas múltiplas relações e complexidades. Ela não tem que defender verdades, mas ser agente de transformação e de libertação num mundo que perdeu-se de si mesmo. Foi Jesus quem lançou as bases para uma nova vida a fim de que possamos viver de forma humana diante de Deus. A igreja tem a missão de levar a toda humanidade a boa notícia de que é possível uma vida humana mais digna, justa e solidária conforme Jesus ensinou e viveu.
Após 500 anos, é importante entender o que foi a Reforma, não para repeti-la ou reafirmá-la, mas para inspirar um novo movimento em direção a uma vida cristã mais autêntica no mundo. O momento é de gratidão pelo legado da Reforma, o que ela contribuiu para a história da igreja como um todo. Mas também é de crítica, reconhecendo limitações e falhas que a igreja vem enfrentando ao longo do tempo.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Reforma protestante e pluralidade / Protestant reform and plurality / Reforma protestante y pluralidad

Quando se fala de Reforma Protestante, não se refere a um movimento único e uniforme. Ela precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva plural, que aconteceu em um contexto de pluralidade, desenvolveu-se de forma variada e configura-se também por uma diversidade. O correto seria falar de reformas protestantes ao se tratar do fenômeno de transformação que o cristianismo experimentou no limiar da Modernidade.
Entretanto, esse aspecto plural nunca foi visto como um fator positivo, identificado como promotor de uma relação entre “inimigos de si mesmos”, para usar a expressão empregada no título do livro de Rowland Croucher que faz uma abordagem sobre o fenômeno do evangelicalismo, do socialismo evangélico e do neopentecostalismo característicos do movimento protestante a partir da década de 1960.
O pluralismo protestante tem sido objeto de um diálogo impossível, marcado muito mais por aspectos organizacionais, doutrinários, litúrgicos e até moralistas do que aqueles voltados para a essência da fé, da comunhão e do amor cristão.
Como afirmou Claudio de Oliveira Ribeiro, no artigo Espiritualidades plurais da Reforma: “a vivência comunitária e a pluralidade constituem privilegiado potencial de geração de utopia e que a ausência de referenciais utópicos dá lugar a formas de individualismos exacerbados, de lógicas de exclusão e de sectarismos, de imediatismos políticos, de racionalismos e de absolutismos, o que enfraquece a vivência autêntica e gratuita da fé e a noção de diaconia como canal de solidariedade, partilha e serviço. Tal pressuposição está em íntima sintonia com os princípios teológicos da Reforma”.
Essa pluralidade está refletida na formação histórica, na proposta teológica e na concepção eclesiológica. Não há uma história única do protestantismo: a reforma aconteceu de forma distinta na Alemanha, na Suíça, nos Países Baixos, na Inglaterra, Europa Central. Houve também movimentos que foram duramente combatidos na França, na Itália e Espanha. Também não é possível se falar de uma única teologia protestante: a chamada “teologia reformada” pode ser entendida a partir de tendências luterana, calvinista e as que marcaram a chamada reforma radical, com os grupos anabatistas e grupos separatistas. Da mesma forma, não se pode falar de uma única eclesiologia protestante, visto que os grupos foram adotando diversas formas de organização e de estrutura, como os presbiterianos, os congregacionais, os metodistas, uns mais hierárquicos e outros mais democráticos.
Embora haja essa diversidade histórica de expressões da Reforma, essa condição de surgimento, formação e configuração não representa uma oportunidade de diálogo fácil entre as várias manifestações do protestantismo nem com outras formas de expressão do cristianismo.
É preciso desenvolver uma análise crítica das condições de construção do que ficou conhecido como Reforma Protestante e identificar suas várias tendências bem como os fatores que promovem aproximações e distanciamentos entre eles. Nesse sentido, é possível falar de antecedentes, de ações e de desdobramentos que são plurais em seu âmbito.
1) Antecedentes plurais – Os séculos XIII-XIV foram marcados por movimentos após o chamado Grande Cisma que reivindicavam mudanças na igreja do Ocidente que envolviam dois aspectos. O primeiro, voltado para a reforma da fé e da hierarquia eclesiástica, com a atuação de expoentes como Pedro Valdo, John Wycliff, João Huss, Comênio e Savanarola. O segundo, que propunha uma mudança de costumes, mais voltado para aspectos morais, como foi o caso da reforma humanista de Erasmo.
No fim da Idade Média, especialmente nos séculos XIV e XV, havia uma grande insatisfação popular envolvendo questões sociais e ações religiosas que provocavam um clima de insegurança. Como consequências desse quadro, podemos citar a contestação ao clero e a busca por justiça social.
Podemos encontrar pelo menos três vertentes que antecederam a Reforma:
a) Uma vertente acadêmica, marcada pelo declínio da escolástica e o apelo à volta da simplicidade do Evangelho. Um dos textos conhecidos é Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis.
b) Uma vertente popular, marcada por movimentos marginais que se inspiravam em antigas ordens religiosas, como as dos franciscanos e dos dominicanos. Havia um apreço à vida monástica, um apego à prática de flagelos e penitências e a defesa de crenças escatológicas.
c) Uma vertente mística, marcada pela vida contemplativa e a ênfase numa teologia apofática. O Mestre Eckhart é um de seus representantes.
2) Ações plurais – Embora Lutero seja a figura de destaque do movimento da Reforma, o luteranismo não foi único. Outras expressões aconteceram ao longo de toda a Europa. Não podemos esquecer da participação de nomes como Zwinglio e Calvino, do anglicanismo, dos huguenotes franceses, de grupos radicais como os anabatistas e os separatistas ingleses, dos movimentos de reforma da Escócia e da Espanha, das comunidades mendicantes dos Países Baixos e do desdobramento místico do alemão Jacob Boehme e do espanhol João de Valdez. Outro teólogo que atuou de forma marcante foi Thomas Müntzer, que liderou um movimento de camponeses assumindo uma dimensão política e revolucionária do pensamento da Reforma, mas acabou sendo derrotado, preso e morto pelos próprios luteranos.
3) Desdobramentos plurais – Embora a Reforma Protestante tenha acontecido no final do período renascentista, ela se desenvolveu ao longo da Modernidade. Os acontecimentos históricos acabam se entrelaçando com outros eventos significativos desse período. Entre eles podemos mencionar a formação dos estados nacionais, o surgimento do pensamento liberal e a ênfase ao individualismo. Max Weber, inclusive, já tem identificado uma grande afinidade entre o protestantismo e o espírito do capitalismo, sistema político-econômico que se afirma no contexto da Modernidade.
No contexto do luteranismo alemão, surge o movimento pietista, que enfatizava a dimensão individual da experiência de Deus, com uma forte inclinação moralista e um apelo ao estudo das Escrituras. O pietismo defendeu crenças e práticas como a necessidade da conversão pessoal, da fuga do mundo e da prática piedosa da caridade e da tolerância.
Já no contexto inglês, onde se deu a reforma anglicana, surge outro movimento, o puritano, que procurar retirar os vestígios do catolicismo que foram mantidos na igreja da Inglaterra. O puritanismo pode ser considerado como um esforço pelo avivamento da igreja com importantes consequências para a expansão da compreensão da missão da igreja no mundo. Quando o puritanismo foi levado para a América, ali se expandiu e estabeleceu bases para a formação dos Estados Unidos como nação democrática.
Essa condição plural do protestantismo tem sido objeto de diversas investigações a respeito de suas causas e consequências. Entretanto, o que se pode notar é que, em meio a sua diversidade, há um distanciamento do espírito e das intenções que marcaram a Reforma Protestante.
O protestantismo é marcado hoje por pelo menos três características predominantes, cada uma delas como uma pluralidade de possibilidades:
a) Um viés fundamentalista.
b) Um viés carismático.
c) Um viés progressista.
O fenômeno do pluralismo protestante é um fator de divisão que tem desencadeado uma identidade marcada pela falta de diálogo interno. Essa falta de diálogo se reflete na esfera pública, com práticas e discursos que deixam claro que uma nova onda de “reforma” precisa acontecer. Os grupos protestantes são mais conhecidos pelo que proíbem do que pelo que defendem.
Essa diversidade decorre de princípios orientadores que precisam ser revisitados hoje no sentido de se contribuir bases para relações ecumênicas e de diálogo inter-religioso. Rubem Alves, no livro Protestantismo e repressão, identificou que o protestantismo foi, em seu primeiro momento, “a explosão de um grito reprimido de liberdade”. Entretanto, como salientou Bonhoeffer em sua Ética, a igreja protestante encarna o tema de nosso tempo, que é o da decadência.

sábado, 28 de outubro de 2017

O princípio protestante / The Protestant Principle / El principio protestante

Para Paul Tillich, a realidade que configura o movimento protestante está ligada a um dado poder, a um dinamismo que perpassa esse acontecimento histórico, ao qual denominou de “princípio protestante”. Diz ele, em A Era Protestante: “O princípio protestante é o juiz de qualquer realidade religiosa e cultural, incluindo a religião e a cultura que se chamem ‘protestantes’” (TILLICH, 1992, p. 183). E mais: “É o julgamento profético contra o orgulho religioso, a arrogância eclesiástica, e a autossuficiência secularizada com suas consequências destruidoras” (TILLICH, 1992, p. 183).
“O princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio religioso como ao secular, mas sem qualquer filiação eclesiástica ou institucional, bem como por grupos ou indivíduos que, por meio de símbolos cristãos ou protestantes, ou sem eles, expressam a verdadeira situação humana em face do absoluto e do incondicional. Se nessas situações proclamam-se e vive-se melhor e com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas oficiais, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo no mundo atual” (TILLICH, 1992, p. 221).
A realidade que envolve a pluralidade da igreja protestante se apresenta de forma paradoxal na medida em que contrasta com o discurso de afirmação da unidade da fé cristã e se lança como um desafio para repensar os rumos do movimento nos dias atuais. Para Tillich, “[no poder da cruz, a] igreja protestante haverá de se manter na medida em que tiver consciência do significado de sua existência” (TILLICH, 1992, p. 216).
A própria dinâmica da proposta inicial do protestantismo, de uma igreja em reforma, já é em si um projeto arriscado. “A igreja protestante corre permanentemente o risco de se esquecer do seu sentido. Sua grande tragédia tem sido a insistência em possuir a ‘pura doutrina’, como se possuísse a verdade invulneravelmente” (TILLICH, 1992, p. 216). Contudo, essa é a sua principal característica: comportar em si a pluralidade que envolve a experiência de Deus no mundo.
“A Reforma deve continuar”, disse certa vez Friedrich Schleiermacher ao se rebelar contra a mentalidade dominante do protestantismo de sua época (apud James Luther Adams In: TILLICH, 1992, p. 285). Os primeiros cinco séculos de protestantismo – que Paul Tillich chamou de “era protestante” – foi marcado por transformações e contradições. Começou com a Reforma dialogando com o Humanismo, evoluiu através do diálogo com o pensamento liberal e o Iluminismo, acompanhou o período da revolução industrial e a consolidação do capitalismo, atravessou o século XX em meio a lutas e incertezas e chegou ao século XXI com o desafio de repensar sua continuidade.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Igreja reformada sempre se reformando / Reformed church always reforming / Iglesia reformada siempre reformando

Uma das máximas que a Reforma Protestante produziu é a que diz: “Igreja reformada, sempre reformando”. A ideia que essa frase traz em si é um desafio para a igreja cristã de hoje. Uma igreja reformada não tem a ver com uma inovação nem mesmo uma reafirmação de valores antigos com novas roupagens. Assim como uma igreja que está sempre se reformando não corresponde a introduzir práticas, ritos e costumes novos em sua liturgia e ação.
Embora esteja alicerçada no espírito dos reformadores, a frase não esteve na boca nem na pena de Lutero, Zwinglio ou Calvino, mas dos representantes do que podemos chamar de “segunda reforma”, principalmente da vertente ligada ao pietismo. Sua origem remonta a uma frase atribuída a Santo Agostinho: “A igreja está sempre sendo reformada” que em latim é: Ecclesia semper reformanda est. Lutero era um monge agostiniano e muito provavelmente foi influenciado por essa ideia.
A frase só vai aparecer no contexto da Reforma através Jodocus von Lodestein (1620-1677), uma proeminente figura do pietismo reformado alemão, que achava que a igreja não deveria ser chamada de reformada, mas de “reformanda”. Para ele, a Reforma havia afetado a igreja, mas a vida das pessoas precisava sempre também ser reformada. Outros entendem que ela foi citada por Gisbertus Voetius (1589-1676) por ocasião o sínodo de Dort (1618-1691), na Holanda, com a forma: Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est. Esse lema foi expandido para Ecclesia reformata semper reformanda est secundum verbum Dei. Ou seja: Uma igreja reformada sempre sendo reformada segundo a palavra de Deus.
Richard Baxter (1615-1691), um puritano inglês, chegou a indagar: “Como podemos achar que a Reforma está terminada quando nos livramos de algumas cerimônias e mudamos alguns trajes, gestos e formas? Não, Senhores! Converter e salvar almas é a nossa real atividade. Essa é a principal parte da Reforma”, conforme citado por Michel Reeves, em A chama inextinguível.
Mais tarde, Karl Barth (1886-1968) a reafirmou em seu tratado de teologia dogmática, argumentando que os limites da reforma da igreja se encontram dentro da própria dinâmica da vida comunitária, na maneira como Cristo toma forma como Senhor da igreja, construindo não só a maneira como ela se constitui internamente, mas também como ela se expande e alcança o mundo. Nessa construção, ela precisa compreender os limites de ser uma igreja reformada e as implicações de uma igreja sempre em reforma. As possibilidades e as necessidades de mudança da igreja devem abranger suas regras, suas estruturas e até suas concepções doutrinais à luz daquilo que foi ligado ao longo do desenvolvimento histórico da fé cristã.
A frase também está implícita nos documentos do Concílio Vaticano II, que reconheceu a necessidade de uma igreja sempre em reforma, ao afirmar, no documento Lumen Gentium, que “a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação”.
Como se pode notar, esse lema da reforma contempla tanto o mais piedoso conservador, como também o mais radical revolucionário. O que se pretende não é preservar valores e princípios somente por causa da tradição, nem mesmo mudar apenas pela mudança. Ele tem uma dimensão ecumênica e lança uma proposta de reflexão a respeito da maneira como a igreja realiza sua missão historicamente.
Nesse sentido, o lema precisa ser revisto à luz do próprio sentido de missão da igreja. Não se trata de mudar a igreja apenas ao sabor das transformações da cultura e do conhecimento, mas de rever os valores e princípios de origem para tornar a mensagem mais compreensível às pessoas em seu tempo, mas também para se viver de uma forma mais coerente a fé e a graça salvadora para aqueles que nos são contemporâneos.
O próprio lema pode nos levar a compreender de maneira equivocada que a igreja pode ser agente autônoma da sua própria reforma. Não se pode esquecer que a igreja é campo de trabalho de Deus. A ideia não é de uma igreja que se reforma, mas que vem sendo reformada pelo Espírito Santo. Isso desperta a necessidade de refletir sobre a sua própria identidade, mas também a sua relevância: a igreja existe para cumprir a Missio Dei no mundo.
Quando a reforma para, a igreja se deforma. E quando a igreja se deforma, ela se conforma. A igreja sempre sendo reformada pelo Espírito à luz da palavra de Deus para cumprir sua missão no mundo, essa é a transformação radical que necessária em nossos dias. Alguém certa vez orou: “Deus nos livre de um novo Lutero!” E hoje precisamos clamar por uma renovação na vida da igreja.

sábado, 14 de outubro de 2017

Sacerdócio universal dos crentes / Universal Priesthood of Believers / Sacerdocio universal de los creyentes

Mas vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos chamarão ministros de nosso Deus [...]” (Isaías 61.6).
O sacerdócio universal de todos os crentes é um dos mais caros princípios da Reforma Protestante. É uma espécie de confrontação com a divisão que o cristianismo ocidental havia construído na Idade Média de separação entre clérigos e leigos no interior da igreja.
Esse princípio se baseia na descoberta de que a Bíblia apresenta Jesus como o grande sacerdote, o único mediador entre Deus e os homens. E a mesma Bíblia também diz que todos aqueles que seguem a Jesus em fé e praticam seus ensinos partilham do seu sacerdócio. A Bíblia diz: Mas vós sois [...] o sacerdócio real (1 Pedro 2.9) e e nos fez reino, sacerdotes para Deus(Apocalipse 1.6).
O Novo Testamento não fala de uma ordem sacerdotal para a igreja. Ela ficou restrita ao templo judaico. O clericalismo é um dos maiores equívocos desenvolvidos pela cristandade. Foi Tertuliano, no final do século II, que se referiu aos líderes da igreja pela primeira vez como “sacerdotes”. Eram eles que tinham o dever de ofício de ministrar a eucaristia como um sacrifício.
Ao analisar as implicações da justificação pela fé e a graça salvadora, Lutero aprofundou sua compreensão de que a salvação não é um mérito humano, mas um dom divino a todo aquele que acolhe a obra de Cristo consumada na cruz. Essa graça é libertadora de todo pecado, do medo da morte e da condenação eterna, como também expressa a justiça divina sobre toda a criação. Isso confere uma condição de plena liberdade ao que crê.
Numa obra de 1520, intitulada A liberdade do cristão, Lutero afirmou que “somos sacerdotes; isto é muito mais que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos outros”. E disse mais: “Tu perguntas: ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’, ‘religioso’ e outras semelhantes foram injustamente retiradas do meio do povo comum, passando a ser usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero.’ A Escritura Sagrada distingue apenas entre os doutos e os consagrados, chamando-os de ministros, servos e administradores, que devem pregar aos outros a Cristo, a fé e a liberdade cristã. Já que, embora sejamos todos igualmente sacerdotes, nem todos podem servir, administrar e pregar.”
Embora seja uma ideia revolucionária para o seu tempo (o século XVI), o princípio do sacerdócio universal traz em si algumas implicações que precisam ser levadas em consideração hoje. Alguns o veem como a base do individualismo evangélico e outros o consideram como uma expressão da ideia da autonomia do sujeito trazida pela racionalidade moderna, já presente no pensamento da Reforma Protestante. Mas há algo mais.
Primeiramente, o fato de que os cristãos em geral são sacerdotes se constitui em um privilégio, e não uma exclusividade. Por sermos sacerdotes, temos acesso a Deus com liberdade, mas isso não nos faz melhores ou piores do que as demais pessoas. Isso deve despertar em nós ma espiritualidade mais humanizadora.
Em segundo lugar, o sacerdócio universal tem uma dimensão comunitária. Não somos sacerdotes de nós mesmos. Somos sacerdotes uns dos outros. Ninguém pode ser cristão sozinho. Formamos a communio sanctorum – a comunhão dos santos. A Bíblia nos ensina que o Espírito Santo capacita a todos com dons a fim de que possam ministrar uns aos outros a graça recebida.
Em terceiro lugar, todos os crentes – inclusive pastores e ministros – são leigos. A palavra não se refere a uma pessoa indouta ou desconhecedora. Ela deriva do grego laós, que quer dizer povo. Somos todos participantes do povo de Deus. E, mais do que isso, acolhidos como filhos do mesmo pai. Isso não impede que haja liderança e liderados, apenas lembra que o papel do líder é servir aos demais.
Toda vez que algum líder religioso se arvora com uma autoridade sobre os demais seguidores da fé, o princípio do sacerdócio universal é vilipendiado. O Senhor não colocou na igreja uns com poderes superiores a outros, nem mesmo uns com autoridade sobre os demais. Antes, a vida de fé deve ser desfrutada de forma harmoniosa entre todos aqueles que comungam da mesma graça.

domingo, 8 de outubro de 2017

Sentidos da graça / Senses of grace / Sentidos de la gracia

Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tito 2.11). 
A palavra graça possui uma pluralidade de sentidos. Ela nos remete a um universo de significados que envolve toda a nossa compreensão da realidade que nos cerca, desde a maneira como nos relacionamos com o sagrado até nossas relações com o que menos gostamos.
A maneira como nós a empregamos na língua portuguesa vem do latim gratia, que nos remete a uma atitude de reconhecimento das qualidades do outro, que nos desperta gratidão e apreço. Mas ela também está presente na língua grega, como Charis, que eram as deusas mitológicas do banquete, do encanto, da sorte e da prosperidade. Eram dotadas de beleza e simbolizavam a harmonia e a alegria. Na literatura grega e na arte ocidental em geral, elas sempre foram representadas por três jovens que dançam nuas entre si.
A palavra também está presente no hebraico, tanto como chen quanto hesed. A primeira lembra o transbordamento da bondade divina apesar do pecado humano. Deus abomina o pecado, porém a sua bondade ainda é maior. A primeira vez que ela aparece na Bíblia é em Gênesis 6.8, traduzida muitas vezes como benevolência: A Noé, porém, o Senhor mostrou benevolência. Tem o sentido de curvar-se, o ato de alguém maior ser capaz de se aproximar de alguém menor. A segunda é traduzida costumeiramente como misericórdia, resultado de um sentimento de amor e de fidelidade de Deus para com sua criação.
No uso cotidiano, graça aparece em várias situações:
- como um favor: “por graça”;
- como um ato de bondade: “agiu com graça”;
- como simpatia: “caiu na graça, foi agradável”;
- como elegância: “cheia de graça”;
- como uma qualidade de vida: “estava em estado de graça”;
- como bom humor: “fazer graça”;
- como uma recompensa: “gratificar”;
- como gratidão: “deu graças”;
- como louvor: “rendeu graças”;
- como identidade: “qual é sua graça”;
- como descoberta: “deu o ar da graça”;
- como expressão de poder: “dispensou sua graça”;
- como perdão: “recebeu o indulto”.
Em Filosofia, Agostinho afirma que a graça é o meio pelo qual podemos exercer a nossa liberdade para a escolha do bem. Para ele, o homem não pode conhecer nada sem o auxílio da graça divina. Tomás de Aquino, que escreveu um tratado sobre a graça, disse que ela consiste em um motor para alma, como um princípio para as ações de bondade, que se expressa como uma participação na natureza divina. A graça também foi entendida como uma espécie de beleza, uma concepção estética da relação entre liberdade e necessidade. Friedrich Schiller, no final do século XVIII, a chamou de beleza em movimento, pois é resultante da liberdade. Ela deixa transparecer o caráter moral do homem.
Na Bíblia, a graça é um dom e promove dons. Ela tanto é um presente que Deus nos concede como é também uma capacitação para que possamos partilhar uns com os outros seu amor, bondade e misericórdia. A graça se realiza entre nós como charismata, mais conhecida como dons espirituais. Pedro aconselha a que administremos a graça em seus aspectos multiformes: Cada um exerça o dom que recebeu para servir aos outros, administrando fielmente a graça de Deus em suas múltiplas formas” (1 Pedro 4.10). A expressão “múltiplas formas” se refere ao universo de cores que existe na natureza. A ideia é de que há uma variedade de possibilidades de agirmos com graça e por graça uns com os outros. Isso nos lembra que Deus ama a diversidade.
Na Teologia, a graça está relacionada à ação divina, ao modo como Deus se manifesta na história e age para poder atrair para si a humanidade perdida. A maior expressão da graça é a revelação de Deus em Cristo. A maneira como Jesus veio ao mundo, viveu, ensinou, se relacionou com pessoas, morreu, foi ressuscitado e recebido na glória é o discurso mais eloquente da graça divina. Para ter acesso à graça divina, nenhuma de nossas obras  sejam elas caridosas ou religiosas – é suficiente. Temos acesso a ela somente pela fé. Essa graça divina é salvadora porque restaura o homem de sua própria perdição. Ela é também libertadora, porque livra o homem da ilusão de ter todo o poder para dar conta de si.
Pensando nisso, Paulo disse certa vez: Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e sua graça para comigo não foi em vão; antes, trabalhei mais do que todos eles; contudo, não eu, mas a graça de Deus comigo” (1 Coríntios 15.10).

domingo, 1 de outubro de 2017

O legado da Reforma Protestante para hoje / The Legacy of the Protestant Reform for Today / El legado de la Reforma Protestante para hoy

A Reforma Protestante foi um movimento de renovação da igreja cristã que aconteceu no século XVI. A data do marco histórico é 31 de outubro de 1517, ocasião em que o frade agostiniano Martinho Lutero afixou suas 95 teses na porta da capela do castelo de Wittemberg, na Alemanha.
A igreja no Ocidente já vinha enfrentando problemas internos desde o século XIII, com cismas políticos, corrupção do clero e a implantação da Inquisição para conter os dissidentes. Entretanto, as causas da Reforma vão além das crises internas, abrangendo as esferas política e econômica. A Europa experimentava o surgimento dos Estados Nacionais e o fortalecimento do poder monárquico, bem como um novo regime econômico ganha força, que lançavam as bases do capitalismo.
O termo protestante surgiu com um sentido mais pejorativo, para designar a atitude dos governantes que apoiavam o movimento de Lutero. Eles lançaram um protesto de maneira formal a respeito de um edital de Roma, em 1529, que proibia o ensino das ideias reformistas luteranas nas localidades do Sacro Império Romano-Germânico. O protestantismo foi largamente difundido na Alemanha, mas também na Suécia, Dinamarca, Noruega e Islândia.
Podemos falar de uma diversidade de movimentos que envolveram a Reforma Protestante. Além do luteranismo, houve outro reformador que influenciou o protestantismo na Suiça e no sul da Alemanha: Ulrico Zwinglio. Seu movimento é conhecido como “Segunda Reforma”. Houve também o que chamamos de “Reforma Radical”, ou “Terceira Reforma”, marcada pela atuação dos grupos anabatistas. Houve também a atuação de João Calvino, que, a partir de Genebra, influenciou o protestantismo com uma teologia mais consistente. Houve ainda a Reforma na Inglaterra, que desencadeou novos movimentos, como o anglicanismo e os grupos separatistas, resultando em algumas denominações históricas como conhecemos hoje: o presbiterianismo, o metodismo, o congregacionalismo e as igrejas batistas.
Os problemas que motivaram a Reforma Protestante são diferentes dos que orientam o protestantismo de hoje. As preocupações que envolviam as pessoas no século XVI estavam voltadas para critérios de certeza. Elas estavam preocupadas com a busca da verdade, do absoluto e da eternidade. As discussões giravam em torno de temas como provas da existência de Deus, relação entre fé e razão e a existência do céu e do inferno. De fato, os protestantes não queriam inovar, mas restaurar valores e conhecimentos do cristianismo primitivo.
O ponto de partida foi a rejeição à prática da venda de indulgências, com a consequente defesa da justificação pela fé. Nesse esforço de reformar a igreja, eles enfatizavam a soberania da graça, o valor da fé, a autoridade das Escrituras, o senhorio de Jesus Cristo e o propósito de se fazer tudo para o louvor e a glória de Deus. Daí os cinco princípios protestantes expressos em latim: Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura, Solus Christus e Soli Deo Gloria (que corresponde a somente pela fé, somente pela graça, somete através da Escritura, somente por Cristo e somente para a glória de Deus.
O que esses princípios têm a ver com a expressão de fé dos grupos herdeiros da Reforma Protestante hoje? É possível orientar a vida pelos mesmos princípios hoje? Embora tenham acontecido grandes transformações sociais, políticas, econômicas e até tecnológicas, a preocupação com aspectos ligados à vida de fé e aquilo que consiste na essência do próprio cristianismo continua sendo uma necessidade.
Nossos compromissos com os valores cristãos, nossa experiência de conhecimento e de relacionamento, bem como nossos vínculos com a comunidade da fé continuam clamando por uma reforma ou atualização constante. Refletir sobre o que significa ser cristão hoje ou sobre como viver a fé cristã num contexto não cristã é uma demanda de nossos dias. O futuro do cristianismo passa por essa reflexão necessária.

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