Após cinco séculos da Reforma
Protestante, a pergunta que se levanta é: qual é o seu futuro? Isso remete a
outras indagações: precisamos de uma nova reforma hoje? As transformações que o
cristianismo precisa experimentar hoje são da mesma natureza das do tempo da
Reforma de Lutero? As respostas a essas indagações são complexas e exigem um
olhar crítico para o momento pelo qual a fé cristã atravessa no mundo.
As causas da Reforma são mais
profundas do que os desvios morais e a corrupção do clero da igreja do
Ocidente. Nas confissões protestantes – principalmente a luterana de Augsburg e
a anglicana de Westminster –, haverá mais preocupação com questões teológicas
do que morais, haverá mais ênfase à comunhão dos santos do que aos ofícios. “A
tese segundo a qual os Reformadores teriam deixado a Igreja romana porque ela
estava repleta de devassidões e impurezas é insuficiente”, dirá o historiador
Jean Delumeau em Nascimento e afirmação
da Reforma. Da mesma forma, as consequências da Reforma vão além do cisma
na igreja ocidental. Ela se desdobra em novas conquistas sociais num mundo em
grande transformação.
A Reforma Protestante trouxe uma
nova perspectiva política, econômica e cultural num mundo em efervescência. Não
se pode separar os acontecimentos da Reforma dos movimentos ligados à afirmação
dos estados nacionais na Europa, do surgimento da economia de mercado e as
raízes do capitalismo, da formação do pensamento liberal e o humanismo
nascente. Os pensadores da Reforma dialogaram com as grandes correntes de
pensamento de seu tempo e influenciaram de forma decisiva as ideias emergentes.
A Reforma Protestante contribuiu para a uma nova compreensão do papel da
cultura, do conhecimento e da participação social do indivíduo. Isso se deu a
partir do esforço de trazer a Bíblia para as línguas nacionais, ao propor um
projeto educacional extensivo às populações mais pobres e até ao fortalecer as
formas de organização das sociedades que tiveram uma experiência reformista.
Karl Marx, em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, reconheceu: “Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção porque pôs no seu
lugar a servidão por convicção. Quebrou a fé na autoridade porque
restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando os
leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade
o homem interior. Libertou o corpo dos grilhões, prendendo com grilhões o
coração”. Para ele, a Reforma foi um acontecimento revolucionário, que
transformou a Alemanha, não como solução, mas como “o modo correto de colocar o
problema”.
Se no período renascentista o
cristianismo passava por uma crise interna que envolvia a moral e o exercício
da autoridade eclesiástica, hoje há uma crise que tem mais a ver com a maneira
como a fé cristã enfrenta os dilemas e as dores do mundo. Se as causas da
Reforma diziam respeito a um retorno à essência do cristianismo, hoje há a
necessidade de se buscar relevância. O que se faz necessário hoje não é uma “reforma”,
mas uma revisão dos rumos, do discurso e da práxis do cristianismo. Se as
causas da Reforma eram internas, hoje as transformações precisam se dar na
esfera pública.
O cristianismo perdeu relevância. Uma
das evidências disso é que, quando alguém procura uma experiência de
espiritualidade, o último lugar em que se vai buscar é a igreja. Há mais
sentido para o mundo na espiritualidade dos movimentos orientais, da vida
alternativa e até da autoajuda do que na vida de devoção ou mesmo no seguimento
de Cristo. E isso se deve à maneira como ficou configurado aquilo que o
cristianismo tem de pior: o fundamentalismo religioso, a pretensão de
religiosidade hegemônica e a incapacidade de dialogar com o mundo.
Se os reformadores enfatizavam o livre
exame da Escrituras, o sacerdócio universal dos crentes e a justificação pela
fé como orientadores de uma nova teologia, as igrejas herdeiras da reforma
precisam apontar suas reflexões e condutas não para reafirmar ou rever tais
princípios, mas para reorientar sua ação no mundo. Nesse sentido, a esfera
pública faz emergir uma nova compreensão teológica que dê conta de uma igreja
comprometida com o chamado divino de ser servidora de um mundo perdido. Afinal,
essa foi a proposta de Jesus de Nazaré ao comissionar seus discípulos: “Antes, dirijam-se às ovelhas perdidas de
Israel” (Mateus 10.6).
Uma igreja que se ocupa da esfera
pública precisa rever a maneira como se identifica como povo de Deus, não como
sectário, mas como corpo de Cristo no mundo. Há uma necessidade de se
empreender um esforço ecumênico para se ressaltar mais o que une os cristãos no
mundo do que aquilo que os divide. A igreja cristã precisa se afirmar como uma
família de muitos irmãos e irmãos, e não como um gueto ou um lugar de fuga do
mundo.
Uma igreja que se ocupa da esfera
pública precisa desenvolver um sentido de comunhão para além da sua realidade
interna. Isso implica o resgate do sentido de comunidade, que se desloca do círculo
restrito das relações eclesiásticas e se estende para dentro do mundo. A igreja
precisa deixar de ser a expectadora de um mundo em naufrágio, como se vivesse
uma realidade distante, para ser coparticipante do cuidado com o mundo como
sendo parte dele. É preciso ver o mundo como nossa casa comum, e não como um
além.
Uma igreja que se ocupa da esfera
pública precisa possuir um sentido de missão voltada para o ser humano em sua
totalidade. A igreja não é portadora de uma verdade absoluta, imutável e
inquestionável. Ela é anunciadora da boa nova de salvação a toda criação: o ser
humano em suas múltiplas relações e complexidades. Ela não tem que defender
verdades, mas ser agente de transformação e de libertação num mundo que
perdeu-se de si mesmo. Foi Jesus quem lançou as bases para uma nova vida a fim
de que possamos viver de forma humana diante de Deus. A igreja tem a missão de
levar a toda humanidade a boa notícia de que é possível uma vida humana mais
digna, justa e solidária conforme Jesus ensinou e viveu.
Após 500 anos, é importante
entender o que foi a Reforma, não para repeti-la ou reafirmá-la, mas para
inspirar um novo movimento em direção a uma vida cristã mais autêntica no
mundo. O momento é de gratidão pelo legado da Reforma, o que ela contribuiu
para a história da igreja como um todo. Mas também é de crítica, reconhecendo limitações
e falhas que a igreja vem enfrentando ao longo do tempo.