O mundo que conhecíamos até o começo
deste ano não existe mais. E não será mais o mesmo quando a quarentena por
conta da pandemia provocada pelo Coronavírus terminar. Sim, a quarentena vai
acabar, a pandemia vai passar e a vida retomará seu rumo. Mas o mundo não será
mais do mesmo jeito, os relacionamentos não serão mais os mesmos e, muito
provavelmente, não nutriremos as mesmas
ideias e ideais.
A pandemia do Covid-19 tem sido
uma experiência dolorosa em todo o planeta. Os relatos das pessoas em
quarentena, das famílias enlutadas e das perdas econômicas formam um quadro
muito triste que permanecerá por muitos anos na memória dessa geração. Embora
se possa acreditar que há uma vida pós-quarentena, a única coisa que se pode
afirmar sobre ela é que o mundo não voltará ao normal.
Os
epicentros dessa pandemia têm sido as grandes cidades. O vírus ganhou
urbanidade, está inserido na polis.
Portanto, alcançou dimensão política. A batalha contra ele não é biológica
simplesmente, mas, também, política. O uso político da Medicina, da Epidemiologia,
da Infectologia vai determinar os caminhos a seguir. Para o bem ou para o mal.
As decisões que tomarmos agora serão decisivas para o que virá quando tudo isso
passar.
Há um aprendizado promovido pelo
sofrimento. As épocas de calamidade deixam marcas profundas na vida social, e
as pessoas em geral experimentam uma transformação no seu modo de pensar e de
ver o mundo. E isso também acontece com a humanidade. Após períodos de grandes
epidemias, ou mesmo de grandes guerras ou de cataclismos, o mundo procurou
encontrar novas alternativas para a vida. Um bom exemplo disso foi o período da
peste negra, que varreu o Ocidente. Associada ao avanço das forças otomanas
sobre a Europa e à necessidade de encontrar respostas para os graves dilemas
humanos, a cultura ocidental se abriu para uma nova mentalidade no campo das Artes,
da Ciência, da Política e da Religião com o movimento renascentista. Ideias
humanistas de valorização da liberdade e da dignidade da pessoa humana, bem
como a afirmação da capacidade do homem pensar por si mesmo, resultaram no que
conhecemos como mundo moderno ou modernidade.
Neste mundo de agora, açoitado
por uma crise sem precedentes, será urgente refletirmos sobre três grandes
questões. A primeira relaciona-se à forma como o capitalismo chegou até aqui,
favorecendo a concentração de renda de uma minoria e lançando na miséria um
grande número de pessoas. A segunda indaga a respeito do cenário geopolítico em
meio ao avanço da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da
internet das coisas, que influencia o surgimento de uma sociedade do controle e
as mudanças nas relações de trabalho. E a terceira considera a ameaça à vida no
planeta, com o esgotamento dos recursos naturais para o consumo, com o
desequilíbrio ambiental e o aquecimento global.
A pandemia veio acrescentar,
ainda, uma questão a mais para a humanidade: como reagimos quando tudo aquilo
que acreditamos que nos daria segurança e bem-estar se torna insuficiente
diante de um vírus de alto poder de contágio? Ainda não se tem uma resposta a
respeito disso. Trata-se de uma questão nova, que nos conduz a uma total
revisão daqueles valores que orientam a
maneira como vivemos. A busca por respostas, que não serão únicas nem definitivas, deve mobilizar agora
todas as áreas do conhecimento humano, em todas as culturas e em todos os
espaços. Esse vírus fez com que as pessoas parassem seu ritmo de vida a fim de
que pudessem perceber que há algo mais que é preciso aprender juntos a respeito
do nosso valor e de nossa condição humana. E temos aprendido coisas novas
Aprendemos que a vida não é
feita de pressa ou prazos, e que precisamos de bem menos para viver. Pessoas
têm encontrado novas formas de consumir, de partilhar os recursos, de produzir
bens e serviços. De repente, as pessoas descobrem o valor da vida em família, o
quanto os nossos idosos são importantes, como é possível deixar um legado
significativo para as gerações futuras. As pessoas têm descoberto o valor da
vida em comunidade, de encontrar novas formas de se relacionar com os vizinhos
que enfrentam as mesmas circunstâncias que nós.
Aprendemos que a natureza
precisa de um alívio. É sim possível parar o ritmo frenético das cidades, das
fábricas e do comércio para dar tempo à natureza para que se recomponha nos
permita um ar mais puro, um ambiente com menos lixo e com menor taxa de
agressões ambientais. As pessoas estão aprendendo a reduzir aquilo que descartam, a dar importância à
reciclagem e a cuidar de assuntos como contaminação, proteção e preservação de
uma forma prática, aplicada à necessidade de sobrevivência.
Aprendemos que a economia
neoliberal é a pior face do Capitalismo, que acima do mercado está a vida. E
vimos que é possível pará-la. De nada adiantará um mundo com tanta capacidade
econômica se isso não for aplicado na promoção e implementação de medidas
emergenciais para preservar a vida. O
capital acumulado não serve para nada se as pessoas morrerem nessa pandemia. E,
lembremos de que pessoas também morrem de fome, de doenças graves, de violência
e de exclusão. O vírus veio nos mostrar que o neoliberalismo fracassou, pois
nunca precisamos tanto do Estado e das políticas públicas, sobretudo nas áreas
de saúde, educação e assistência social. O poder econômico tem que estar a
serviço da vida, e não o contrário. O poder econômico precisa ser usado para
frear a ganância dos poderosos, para promover justiça, diminuir as
desigualdades sociais e oferecer oportunidades iguais a todos.
Aprendemos que a solidariedade ,
essa sim, é o que realmente nos humaniza. Diante de uma ameaça deste porte,
nossas ideologias se tornam inadequadas e sem sentido. Percebemos que estamos
todos fragilizados, que o vírus não poupa ninguém. A mensagem de que habitamos
numa mesma casa comum começa a ganhar força. Isso tem suas implicações. As
soluções que serviram para a China podem servir para os Estados Unidos. O que
Itália, Espanha e França enfrentam servem de alerta para o resto do mundo. Os
recursos desenvolvidos por um podem atender a necessidade de todos.
Aprendemos que a Fé não precisa
do templo, do domingo ou do clero. Ela precisa de algo que nos impulsione para
aquilo que está além de nós mesmos. As estruturas religiosas jamais deveriam estar
engessadas em fórmulas, hierarquias, calendários ou mesmo espaços sagrados. É
preciso descobrir que não há nada mais sagrado que a vida, que santidade é
cuidar da vida de tal modo que toda ela seja importante, que a grande sabedoria
de viver é permitir que o outro desfrute das mesmas chances que eu tenho. A Fé
se realiza no encontro com o outro e com o transcendente, com esse sentimento
de pertença ao outro e ao transcendente, ao mesmo tempo.
Aprendemos o valor do
conhecimento, da cultura, da educação e da ciência. O que seria de nós se não
fossem as universidades e os centros de pesquisas para lutarem por buscas de
soluções para os problemas? O que seria de nós, sem a Arte e a Literatura para
superarmos o tédio desses dias? São contribuições que trabalham com o
imaginário, que nos ajudam a sonhar e a ter esperança de que tudo isso vai
passar e que, novamente, poderemos seguir nosso rumo.
Segundo
o historiador israelense Yuval Noah Harari, em artigo no jornal inglês Financial Times, de 20 de março de 2020,
a tempestade da pandemia passará, sobreviveremos, mas será outro planeta, já
que muitas das medidas atuais de emergência deverão ser estabelecidas como
rotinas fixas. O mundo que teremos depois dessa crise dependerá das decisões
políticas que serão tomadas no decorrer dessa quarentena. Mas, passada a
pandemia, teremos a chance de fazer a escolha se queremos retomar a vida de
antes ou se queremos nos lançar em uma nova forma de viver.
Byung-Chul
Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, em artigo no jornal El País do dia 22 de março de 2020,
disse: “Precisamos acreditar que, após o vírus, virá uma revolução humana”. Em
meio aos acontecimentos, sobressai o exemplo daqueles que cuidam. Desde o modo
correto de lavar as mãos até o desprendimento revelado ao se dedicarem ao serviço
pelo outro, os profissionais de saúde nos ensinam como podemos cuidar e nos
cuidarmos. A característica principal dessa “revolução humana” haverá de ser o
cuidado, firmado no princípio da solidariedade entre todos e com todas as
expressões da vida, ou não teremos aprendido nada. E os grandes revolucionários
desse tempo serão aqueles que se levantam para cuidar da vida.
A
quarentena vai acabar, a humanidade vencerá mais essa pandemia, isso é certo.
Mas tudo o que não queremos – ou pelo menos tudo o que não deveria acontecer –
é retomarmos as coisas que fazíamos do jeito que fazíamos anteriormente. A
pergunta que precisa ser feita agora é: será realmente necessário fazermos as
mesmas coisas que fazíamos, produzir as mesmas coisas que produzíamos, consumir
do mesmo jeito que consumíamos e viver do mesmo modo que vivíamos? A resposta
que nós, como humanidade, dermos à essa questão orientará a maneira como
reagiremos às transformações que virão.
(Texto publicado originalmente no site do Coletivo Bereia >>.
(Texto publicado originalmente no site do Coletivo Bereia >>.
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