Uma das decisões que a maioria
dos países tem tomado para tentar impedir a propagação do Coronavírus é a
orientação para evitar as aglomerações e o contato social. Sem levar em
consideração toda consequência social e econômica que tal decisão provoca, isso
afeta diretamente a forma de ser das igrejas, sobretudo as evangélicas, que se
baseiam principalmente no relacionamento afetuoso, nas reuniões celebrativas e
no contato físico do abraço, do aperto de mão e da troca de beijos. Muitos
líderes se levantaram para desafiar essa medida, enquanto outros recomendam a
prudência. Os primeiros alegam a liberdade de culto; Já para os segundos, a
igreja pode demonstrar sabedoria para encontrar novas formas de adorar e de
servir usando as novas tecnologias.
O problema não é novo. A
história da humanidade é atravessada por pandemias, epidemias, pestes e pragas.
Os cristãos nunca agiram de forma indiferente a elas desde o surgimento da
igreja. Ao contrário, envolveram-se diretamente com cada problema de tal forma
que a maneira como enfrentaram a doença, o contágio, o sofrimento e até a morte
influenciou de forma decisiva o modo como a sociedade passou a compreender a fé
cristã. O jeito como cristãos agiram em cada situação não só atraiu a simpatia
das pessoas como também serviu de exemplo para decisões dos governos diante dos
males.
Uma das primeiras grandes
epidemias que envolveram a atuação dos cristãos ficou conhecida como Peste Antonina,
no século II, ao tempo do imperador romano Marco Aurélio. Essa peste causou
grande devastação em Roma, no ano 166, espalhou-se por toda a Itália e durou
até o ano 189. O próprio imperador Marco Aurélio foi um dos infectados. Essa
epidemia é considerada como um marco importante para o início do declínio do
império romano como também para a aproximação da igreja cristã com o Estado.
Na época, surgiram duas lendas a
respeito da origem da peste antonina: alguns achavam que ela foi provocada por
punição divina por violarem a promessa de não saquearem a cidade de Selêucia;
outros acreditavam que tudo começou quando uma tumba de ouro foi violada, no
templo de Apolo, na Babilônia. Mas havia até quem culpasse os cristãos, pois
teriam irritado aos deuses com sua mensagem e crescimento. Houve inclusive, em
177, um levante contra os cristãos, acusados que foram de canibalismo e
incesto, conduzindo muitos à morte pela recusa a algumas leis romanas e por
ofensa aos deuses.
Entretanto, a ação dos cristãos
chamou a atenção das pessoas pela mensagem de esperança que proclamavam, em
contraste com a mentalidade do medo e da punição. O discurso cristão apontava
para o sentido da vida e da morte, mas também falava de esperança de superação
das aflições nesta vida e na vida futura. E ainda havia o consolo para os
familiares daqueles que morreram como cristãos, com a promessa de que
receberiam uma recompensa no céu. Essa era a essência da mensagem da salvação
pela fé em Jesus Cristo. Além do forte discurso salvífico, muitos cristãos
arriscavam suas próprias vidas, expondo-se ao contágio, para levar consolo e
cuidado para quem sofria o flagelo da doença. Enquanto o Estado romano e a
sociedade em geral baniam os doentes para longe e os excluíam da convivência,
os cristãos se ofereciam para cuidar deles.
No século III, uma nova peste
assolou o Ocidente, de 249 a 262, ainda mais letal. O bispo Dionísio de
Alexandria assim registrou sobre a atitude da sociedade em geral: “No início da
doença, eles empurraram os doentes para longe e expulsavam seus próprios entes
queridos de casa, jogando-os nas estradas, antes mesmo de morrerem, e tratando
cadáveres não enterrados como terra, esperando assim evitar a propagação e o
contágio da doença fatal; mas, mesmo fazendo tudo o que podiam, achavam que
seria difícil escapar”. Os cristãos, porém, serviam aos doentes e muitos
morreram contaminados. Isso serviu de testemunho vivo sobre o amor e a
misericórdia cristãos. Assim se expressou o bispo Dionísio: “Muitos de nossos irmãos
cristãos mostraram amor e lealdade ilimitados, nunca poupando a si mesmos e
pensando apenas no seu próximo. Indiferentes ao perigo, eles cuidaram dos
enfermos, atendendo a todas as suas necessidades e ministrando-os em Cristo, e
com eles partiram desta vida serenamente felizes; pois foram infectados por
outros com a doença, provocando em si mesmos a doença de seus vizinhos e
aceitando alegremente suas dores”. E, na biografia de Dionísio, foi registrado:
“Não há nada de extraordinário em apreciar meramente nosso próprio povo com as
devidas atenções de amor, mas esse alguém pode se tornar perfeito, que deve
fazer algo mais do que homens ou publicanos pagãos, alguém que, vencendo o mal
com o bem, e praticando uma bondade misericordiosa como a de Deus, deveria amar
seus inimigos também… Assim, o bem foi feito a todos os homens, não apenas à
família da fé”.
Essa demonstração de cuidado
amoroso e serviço altruísta impactou o mundo ocidental e promoveu um
crescimento exponencial da igreja à medida que aqueles que foram beneficiados
pela maneira como foram cuidados se convertiam. Enquanto a preocupação da
sociedade em geral era com se preservar e se proteger, os cristãos se
ofereceram para servir a todos num espírito de comunhão, sem preconceito e sem
distinções, aproveitando aquela oportunidade para testemunhar a nova vida em
Cristo.
Um gesto que deixou marcas na
história foi a criação das santas casas de misericórdia. Em 1498, surgiu em
Lisboa, a primeira delas, criada pela Rainha Leonor, viúva do Rei Dom João II,
para cuidar dos doentes e inválidos em uma época de muitas tragédias provocadas
por guerras e epidemias. Era também o tempo dos grandes descobrimentos. A ordem
religiosa que foi criada para cuidar das santas casas era formada por pessoas
movidas por um sentimento de solidariedade. Logo elas se espalharam pela
Europa, Ásia e África, chegando também às Américas. Atualmente, existem mais de
2.000 santas casas em diversas cidades do Brasil.
Em 1527, Lutero foi indagado
sobre como cristãos deveriam se portar diante de uma “praga mortal”. O mundo já
havia experimentado a peste negra dois séculos antes, que varreu a Europa. Ele
escreveu, por essa razão, uma carta intitulada Se Alguém Deve Fugir de uma
Praga Mortal, na qual trata das responsabilidades dos cristãos em tempos de
calamidades, principalmente quando se refere a pestes e pragas. O cuidado com
os doentes não se limita aos profissionais de saúde. Os ministros são exortados
a cuidarem dos mais doentes, dos moribundos e dos fragilizados, a fim de
promover consolo e encorajamento. Ele desafiou aos cristãos em geral a
encontrarem oportunidades de cuidarem dos doentes como se estivessem cuidando
do próprio Cristo. Mas ele também orientou aos fiéis a agirem com prudência e a
não se exporem ao perigo sem necessidade. O cristão tem o dever de cuidar do
seu corpo como um exercício de santidade. Ele defendia que cristãos deveriam
respeitas as medidas sanitárias e as quarentenas, cuidados pessoais com a
higiene e a buscar socorro médico em caso de necessidade. Ele compreendia que
Deus deu sabedoria aos médicos para saberem cuidar das pessoas da mesma forma
que deu os remédios como dádivas para nossa saúde.
Durante essa nova pandemia no
mundo, cristãos de todas as partes reagem de forma a colocarem suas vidas a
serviço do cuidado. Há uma mobilização de igrejas e pastores responsáveis para
encontrar formas criativas de manterem a adoração e a comunhão usando as novas
tecnologias, mas sem abrirem mão de cuidarem uns dos outros respeitando as
práticas de higiene e prevenção recomendadas pela Organização Mundial de Saúde.
Quem se coloca contrário a isso recebe severas críticas e reprovações. Um dos
exemplos vem da cidade de Bérgamo, na Itália, que registrou a morte de sete
padres numa semana por terem contraído o Coronavírus e contraído a doença
durante a prática da confissão e do cuidado com os enfermos. O bispo local,
monsenhor Francesco Beschi, assim se pronunciou: “a generosidade dos sacerdotes
continua, estamos próximos das pessoas, com as devidas precauções, mas conscientes
de que, por um lado, carregamos Jesus e, por outro, podemos tornar-nos
portadores do vírus”.
Agora, quando o mundo inteiro é
afetado pela pandemia do Coronavírus e a doença Covid-19, os cristãos são chamados mais uma vez e desafiados a se colocarem a serviço dos que se encontram aflitos. Esse
não é um momento de angústia ou de medo, mas de assumir o desafio da comunhão,
do serviço e do testemunho. Na parábola das ovelhas e dos bodes, Jesus disse às
ovelhas: “estive doente e vocês cuidaram
de mim”. E todos perguntaram: “quando
te vimos doente?”. Aos justos, Jesus respondeu: “o que vocês fizeram aos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mateus
25.36, 39 e 40).
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