“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos [...]” Atos 17.28
Costumo ouvir a acusação de que a
filosofia é incompatível com a fé. Tenho experimentado o contrário disso em
minha própria vida. É bem verdade que há quem diga que crer em Deus é um absurdo,
mas eu acrescentaria que não crer em Deus é um absurdo absoluto. Nesse aspecto,
Tertuliano, no século II, afirmou: “Creio embora seja absurdo”. Entretanto, o
grande problema da crença e da compreensão de uma relação com Deus está nas
próprias tentativas de explicá-lo: toda a tentativa de explicar Deus é
incompleta.
Ao longo da história da filosofia, três formulações
teóricas sobre Deus marcaram a cultura ocidental. Gostaria de refletir um pouco
sobre elas para que possamos repensar a nossa fé. Há muitas explicações sobre
Deus que partem dessas compreensões e dão base a muitas práticas de nossa
espiritualidade. Trata-se do conceito de Deus em Platão, Aristóteles e na
tradição judaico-cristã.
O conceito de Deus em Platão está relacionado com a base de
seu pensamento: a concepção do mundo em duas esferas, uma que é percebida pelos
sentidos e outra que só alcançamos pela razão. Ele entendia que o mundo em que
vivemos é transitório de tal modo que não dá para ser percebido pelos sentidos.
O que o sentido capta é apenas a
singularidade das coisas. No mundo sensível, a existências das coisas faz parte
de uma relação em constante mudança, mas, por detrás do que percebemos neste
mundo, Platão desconfiava de que há uma estrutura que não muda e confere
identidade às coisas. O que percebemos com os sentidos não passa de sombras ou
ilusões de uma essência, de uma ideia fundamental, que precisa ser buscada.
Essa essência, que é permanente, não nos é acessível aos sentidos, mas tão
somente pela razão, que são os olhos da alma.
O corpo só percebe o que é transitório,
mas a razão está sempre em busca da essência. Isso constitui um dualismo que
precisa encontrar uma harmonização que só a filosofia consegue dar conta. Nessa
direção, o conhecimento de Deus não pode ser alcançado pelos sentidos. Deus é
uma questão racional e não de sensibilidade. Para se chegar à ideia de Deus, é
preciso desenvolver exercícios de espiritualidade, baseados em condutas que eliminem
o que é singular e conserve o que é comum a fim de que se chegue à ideia
perfeita.
Assim é que se chega aos conceitos de
justiça, de belo e de verdade como resultado de todas as condutas em sua
perfeição. Deus está por trás e acima desses conceitos articulando a existência
de todas as ideias perfeitas que podemos ter sobre o mundo. Deus é o resultado
último dessa busca racional da perfeição, distante de nossas percepções
sensoriais. O encontro com Deus, então, é pouco provável, pelo menos enquanto a
alma estiver aprisionada ao corpo, pois este impede um exercício perfeito de
abstração.
Para Aristóteles, o universo é um todo ordenado, em que tudo tem uma
finalidade e uma atividade própria. Quando cada coisa cumpre bem a sua
finalidade, contribui para que o universo funcione bem. A finalidade de cada
coisa no universo é o que garante uma existência adequada de cada uma delas e
permite que as demais coisas também alcancem a sua finalidade. Da mesma forma,
quando uma coisa não cumpre bem a sua finalidade, isso afeta todo o universo. A
finalidade das coisas é a causa de elas serem como são, bem como terem a forma
e a substância que possuem.
Deus, por conseguinte, é a adequação
entre os seres e suas finalidades. Deus, portanto, é o motor primeiro, ato
puro, imaterial e apático, como um pensamento de si mesmo. Ao mesmo tempo, Deus
é o fim último de todas as coisas. Isso quer dizer que Deus é transcendente ao
homem, mas imanente ao universo, uma vez que o universo é organizado a partir
de uma lógica que lhe é própria. Em outras palavras, o universo é cósmico, o que
permite que seja compreendido, decifrado como logos, em que Deus é quem dá
sentido. A dimensão divina que é imanente ao ser precisa exercer a sua
atividade com excelência tendo em vista a sua finalidade.
Assim, os seres exercem virtuosamente
sua existência, visto que a virtude equivale a uma competência para exercer uma
certa finalidade. Diferentemente dos demais seres, no entanto, o homem nem
sempre é competente para alcançar a sua finalidade. Para que alcance a sua
finalidade no mundo, o homem precisa conhecer a sua atividade natural, que lhe
é peculiar. Enquanto Deus está necessariamente presente no mundo, a presença de
Deus na vida humana é contingente. E isso se dá quando desenvolvemos com
excelência uma atividade e alcançamos a finalidade da mesma.
A relação com Deus se dá quando
encontramos o nosso lugar no universo e, assim, alcançamos a eternidade. A
salvação, portanto, consiste na superação do medo da morte. A essência desse
modo de pensar é que, se fizermos as coisas certas, do modo certo, pelas razões
certas, seremos salvos. Os estoicos desenvolveram ainda mais essa compreensão
de Deus e nossa relação com ele.
Na concepção judaico-cristã, Deus transcende ao homem e ao universo. Ele é o
criador de todas as coisas a partir do nada, que sempre existiu como um ser
absolutamente perfeito. Esse Deus está envolvido com a criação com a qual
exerce uma relação pessoal. Como ser pessoal e relacional, Deus é sensível e se
deixa afetar pelas dores do mundo. É Deus mesmo que se encarna na pessoa de
Jesus, imerge na história e reivindica para si todo o ser humano para que tome
parte de sua natureza divina. A salvação envolve toda a nossa condição humana e
exige uma resposta de fé ao acolher a sua proposta amorosa de vida.
O grande problema é que, quando o
cristianismo foi levado para o Ocidente, deparou-se com o fato de que o
pensamento greco-romano era dominante, e que a crença judaico-cristã era
vivenciada por um povo dominado formado por muitos pobres. Com a aproximação do
poder político, na época de Constantino, e o surgimento da cristandade,
prevaleceu a influência do pensamento ocidental sobre a teologia, inclusive com
a adoção de práticas de espiritualidade que eram comuns à ascese greco-romana.
De tal maneira que a teologia se distanciou de sua origem e procurou
desenvolver explicações que dessem conta de suas próprias contradições, como
foi o caso das tentativas das provas ontológicas da existência de Deus.
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