O conceito de Bem Viver é uma
oportunidade para imaginar outros mundos, como afirma Alberto Acosta no livro O Bem Viver. Trata-se de um conceito que
se contrapõe às noções de bem-estar e de la
dolce vitta construídos pelo pensamento ocidental. Entretanto, delimitar a sua
abrangência é uma tarefa que implica conhecer as várias experiências vividas
pelos povos originários da América do Sul e sua relação com a natureza.
Em espanhol, os equatorianos se
referem ao Buen Vivir, enquanto os
bolivianos falam do Vivir Bien. Em
português, o Bem Viver comporta uma pluralidade de significados. Todas essas
expressões surgiram como traduções de formas linguísticas dos povos originários
em seus modos de construir formas coletivas de vida. Referem-se, portanto, a
uma visão de mundo desenvolvida por aqueles que habitavam o continente antes da
chegada dos europeus.
Aquilo que tem sido chamado de
Bem Viver nos estudos e nas práticas sociais e políticas de organização da
sociedade tem a ver com um esforço de resgatar os saberes dos povos originários
e elaborar uma alternativa viável à lógica exploratória e dominadora trazida
pelos colonizadores. É um conceito em construção que visa superar a ideia do
desenvolvimentismo, do consumismo e da lógica da acumulação, para dar lugar a
uma visão mais abrangente, plural e decolonial. É uma tarefa tanto social quanto
política, como afirma o próprio Acosta: “Nosso mundo tem de ser recriado a
partir do âmbito comunitário. Como consequência, temos de impulsionar um
processo de transições movido por novas utopias. Outro mundo será possível se for
pensado e organizado comunitariamente a partir dos Direitos Humanos –
políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais dos indivíduos, das
famílias e dos povos – e dos Direitos da Natureza” (p. 26).
Uma das proposta para compreensão do
Bem Viver é resgatar a diversidade linguística que os povos originários
possuíam e que, de alguma forma, foram preservados após mais de 500 anos de
colonização. Cada grupo ou etnia tinha sua forma de compreender e de construir
seu jeito de ser e expressavam isso através de suas linguagens.
Quatro expressões se destacam, quando
se tenta fazer um inventário linguístico a respeito do sentido do Bem Viver
para os povos originários da América do Sul: Sumak Kawsai do povo Quíchua, Suma
Qamaña do povo Aymara, Teko Porã dos Guaranis e Küme Mongen do povo Mapuche.
Sumak Kawsai é uma expressão do idioma quíchua, que abrange tribos
no Equador e Peru, e quer dizer “viver plenamente” ou “plenitude da vida”.
Trata-se de uma forma de enfrentar os desafios da vida, estimulando a assumir
compromissos com a qualidade de vida tanto pessoal quanto de toda a humanidade.
É a busca de uma harmonia do ser humano consigo, com o outro e com a natureza. É
um princípio que se opõe a uma mentalidade voltada para a morte.
O princípio do Sumak Kawsai
abrange três espaços vitais que orientam a conduta das pessoas, a ética, as
ciências e até a religião. São eles: (a) O mundo de cima – que é mais do que a
representação celeste, pois envolve o mistério e o sagrado. A relação com o
mundo de cima promove um ideal de bondade e de perfeição, de práticas de
adoração e de oração. Cada pessoa deve almejar alcançá-lo. (b) O mundo daqui – a
nossa casa comum, marcado pelos fenômenos da natureza. Cada pessoa deve
compreender que é parte do mundo, visto que cada ser contribui para o bem
viver. E (c) o mundo de baixo – que envolve os poderes da destruição e do mal,
representado pelas profundezas. É preciso desenvolver uma atitude respeitosa
com esses poderes, como também evitar e afastar-se deles.
Os povos Aymara, que vive na
Bolívia, se referiam ao Bem Viver com a expressão Suma Qamaña, que quer dizer, “bem conviver”. Significa “habitar com
alguém” de maneira que ambos se protejam e se cuidem dos perigos, dos inimigos
e até dos conflitos interpessoais e da fadiga. Isso se dava em torno de um
círculo que as comunidades formavam em torno de si, que estabelecia o espaço
para vida comum. Guando se diz que alguém vive bem tem o sentido de que todo o
contexto em que a vida se dá é bom. Para viver bem, é preciso saber conviver
com outro, acolhê-lo e apoiá-lo, mas também é preciso aproveitar bem as
oportunidades e condições de vida que a natureza oferece. Trata-se de um
equilíbrio entre a vida pessoal e as formas de existência no mundo, como
experiência de possuir o necessário para se viver e de trabalhar por condições
para que todos possuam os mesmos direitos e recursos. É um modelo de vida de
austeridade e de satisfação com o que se tem em que ninguém deve ser excluído,
nem as pessoas, nem a divindade, nem os demais seres vivos, nem a natureza. O
Bem Conviver, portanto, envolve uma nova perspectiva de vida que implica
cuidado com o outro, solidariedade, comunhão, reciprocidade, respeito e
tolerância. O princípio do Bem Conviver não tem por objetivo mudar o mundo ou
transformá-lo, mas aceitá-lo como ele é e viver nele de forma comunitária.
Teko Porã é a forma da língua
Guarani traduzir o Bem Viver. Significa literalmente “vida boa”ou até mesmo
“belo caminho”. Os guaranis ocupam grande parte da Bolívia, do Paraguai, Uruguais
e Argentina, além da região Sul do Brasil e do Mato Grosso do Sul, onde são
conhecidos também como Kaiowás. O Guarani, juntamente com o quíchua, é uma
família linguística pré-colombiana das mais faladas na América Latina. O ideal
de Bem Viver guarani se baseia no princípio da reciprocidade. A vida é
caracterizada pela relação com a terra e a convivência com todos os seres que
existem nela. Trata-se de uma relação que define o modo de ser, a cultura, as
relações econômicas e sociais, a política e a religião. É o lugar “onde somos o
que somos”. O guarani precisa da sua terra para para viver sua condição social
e cultural.
Para os guaranis, a colonização foi um grande mal que
os privaram de sua terra. O estilo de vida trazido pelos colonizadores é um
“mal viver”, dominado pela exploração, pela ganância e pela competição. A
história da colonização é marcada pela progressão do mal. Para vencê-lo, o Bem
Viver é como uma utopia que conduz à prática da generosidade e da liberdade de
expressão. Bens e palavras precisam circular livremente nas comunidades
guaranis. A verdadeira liberdade só é possível através da convivência entre as
pessoas um,a relação de complementaridade.
Küme Mongen, na linguagem do povo Mapuche, que habita o Chile e o
Sul da Argentina, quer dizer viver em harmonia, como uma sabedoria de vida que
contempla tanto os valores materiais como imateriais, o conhecimento de si, as
relações interpessoais e as relações sociopolíticas. É uma preocupação com a
qualidade de vida que Viver bem implica a conquista de condições ou características
que tipificam o que é comumente chamado de integralidade do ser.
A proposta de Bem Viver dos
mapuches consiste em dois aspectos: (a) a relação com a terra e a vida coletiva
para viver em harmonia com a natureza e os demais; e (b) A reivindicação dos
saberes ancestrais para a vida continue se expressando em toda a sua
diversidade. O Papa Francisco, quando de sua visita ao Chile em janeiro de
2018, disse em sua homilia: “Todos nós que, de certo modo, somos povo
formado da terra (cf. Gn 2, 7), estamos chamados ao bom viver (Küme Mongen), como no-lo recorda a
sabedoria ancestral do povo Mapuche. Quanto caminho a percorrer, quanto caminho
para aprender! Küme Mongen, um anseio
profundo que brota não só dos nossos corações, mas ressoa como um grito, como
um canto em toda a criação. Por isso, irmãos, pelos filhos desta terra, pelos
filhos dos seus filhos, digamos com Jesus ao Pai: que também nós sejamos um só;
fazei-nos artesãos de unidade.”
O Bem Viver mapuche está
associado a uma profunda integração com a natureza, em equilíbrio com as forças
e os seres que a habitam. Devemos reconstruir um modo de vida na sociedade
capaz de entender a vida com um sentido mais digno, mais solidário e mais
recíproco para todos, para todas as culturas, para todos os povos, com respeito
à diversidade. É uma luta pelo amor à vida, pelo amor de todos os povos.
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