A América Latina é resultado de um processo de formação histórico que conhecemos como colonialismo. Mas um colonialismo de tipo próprio com a presença marcante de uma religião calcada na concepção sacrificial e punitiva, que exige vítimas para satisfazer as necessidades do poder. As elites sempre se valeram da religião para fortalecer as estruturas de dominação. Isso permite afirmar que a América Latina passou pelo processo histórico de descolonização, mas não experimentou ainda a decolonialidade.
A descolonização se deu com a emancipação política dos estados sul-americanos e caribenhos, uma superação do colonialismo. Entretanto, as formas de controle econômico como também as estruturas do poder e de produção do conhecimento continuam dominadas pela mentalidade engendrada pelos colonizadores. É dessa constatação que emerge o pensamento decolonial, que procura ir além da mentalidade colonizadora, influenciada tanto pela racionalidade moderna, quanto pelo sistema capitalista e pelo patriarcado.
Antes de se empreender uma análise do que seja o pensamento decolonial, é preciso fazer algumas identificações dos termos: colonialismo, que é estratégia de ocupação e exploração do território por europeus; colonialidade, que é a mentalidade engendrada que favoreceu a dominação, como uma forma de saber que valoriza as metodologias do norte e discrimina a sabedoria dos povos do sul; decolonização, que corresponde à superação dos processos de dominação; decolonialidade, que propõe a construção de uma nova epistemologia a partir dos saberes locais, dos povos colonizados.
A proposta da decolonialidade surgiu nos meios acadêmicos latino-americanos de ciências sociais e humanas, a fim de oferecer respostas às questões levantadas nos estudos da lógica da colonialidade tendo em vista permitir outras propostas políticas, culturais, econômicas e religiosas, o que implica novas formas de saber, novas formas de ver o mundo e novas relações. Por isso, uma das noções para entender esse processo é o que tem sido chamado de “giro decolonial”, formulado para dar conta de outras formas de vivências e produção de conhecimento, inclusive no campo religioso.
A ideia do pensamento decolonial foi elaborada a partir dos debates sobre a condição pós-colonial da sociedade latino-americana, que ainda era marcado pela influência do eurocentrismo, das epistemologias do norte, incluindo-se também o pós-estruturalismo e a pós-modernidade. Os estudos se voltaram para o campo da literatura e da arte, de onde surgiu uma nova problematização, que se distingue do pós-colonialismo na medida em que se percebeu uma diferença na relação entre colonizador e colonizado, como uma relação antagônica.
Essa proposta emergiu no interior do Grupo Modernidade/Colonialidade, um coletivo formado por intelectuais latino-americanos situados em diversas universidades das Américas. Esse coletivo realizou um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XXI: a radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de “giro decolonial”. Para esse grupo, o processo de colonização está profundamente impregnado do paradigma da Modernidade racional e liberal.
O pensamento decolonial envolve as temáticas sobre a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e o que tem sido chamado de giro decolonial.
Anibal Quijano, sociólogo peruano falecido em março de 2018, desenvolveu o conceito de colonialidade do poder para descrever o processo pelo qual o sistema colonial foi fundado a partir de uma microfísica complexa que envolve o controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, de gênero e da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento. A colonialidade se reproduziu em três dimensões: a do poder, a do saber e a do ser. Como a modernidade está “intrinsecamente associada à experiência colonial, não é capaz de apagá-la: não existe modernidade sem colonialidade”, disse Quijano no artigo Colonialidad y modernidad / racionalidad.
Para Quijano, a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista que se funda na imposição de uma classificação étnica da população do mundo que orienta as relações de controle e de domínio. Essa forma de compreender tem origem e se universaliza a partir da América. O capitalismo mundial foi construído a partir da classificação das noções de raça, gênero e trabalho, que fundamenta as relações de exploração e de dominação. A identificação dos povos e a caracterização de suas diferenças, tendo sempre o europeu como modelo, serviram como princípio organizador que justifica toda prática exploratória, discriminatória e excludente.
Esse pensamento é reforçado por Enrique Dussel, filósofo argentino radicado no México, para quem a modernidade é um mito que oculta a colonialidade. A civilização moderna descreve a si mesma como superior e desenvolvida, o que lhe autoriza a agir sobre os povos mais primitivos a fim de lhes impor seus padrões de comportamento, de produção e de conhecimento. Como os povos colonizados resistem a essa dominação, isso legitima a prática da violência, que é tida como inevitável, pois consideram os povos primitivos como verdadeiros culpados que se opõem ao processo que supostamente visara a sua emancipação.
Quijano elabora também uma concepção da colonialidade do saber, visto que “a elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado”. Ou seja, a colonização do poder se baseia numa colonização do saber.
O pensamento decolonial corresponde, então, a uma virada, como um pensamento de fronteira “que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas que não pode tampouco subjugar-se a ele, ainda que tal pensamento moderno seja de esquerda ou progressista”, disse Walter Mignolo em La ideia de America Latina. Esse pensamento fronteiriço resiste às cinco principais ideologias que surgiram com a da modernidade: o cristianismo, o liberalismo, o marxismo, o conservadorismo e o colonialismo.
O pensamento decolonial é, portanto, um discurso crítico que coloca em questão a colonialidade do poder e do saber da modernidade, mas também que aponta novas esferas de produção do conhecimento. O que se pretende é contribuir para que se transcenda o pensamento hegemônico engendrado pelo processo colonizador. “O paradigma decolonial luta por fomentar a divulgação de outra interpretação que põe em evidência uma visão silenciada dos acontecimentos e também mostra os limites de uma ideologia imperial que se apresenta como a verdadeira e única interpretação”, diz Mignolo. A decolonialidade visa abrir espaços para “outros mundos” de tal forma que muitos mundos possam coexistir.
Boaventura Sousa Santos elaborou o conceito de “Epistemologias do Sul” para se referir a um certo domínio da produção de conhecimento que escapa ao domínio colonial, que permite perceber a diversidade de epistemologias tanto no nível acadêmico quanto dos saberes populares. “Epistemologias do sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos”, disse Boaventura de Souza Santos no livro Epistemologias do Sul. Corresponde a aprender que existe o sul, a aprender a ir para o sul e aprender a partir do Sul e com o Sul.
Imagem: “América invertida”, desenho do uruguaio Joaquin Torres Garcia, de 1943.
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