A cultura
ocidental vivencia uma crise profunda que coloca em questão os valores
relativos à vida e ao próprio modelo civilizatório que vem sendo adotado,
sobretudo a partir da Modernidade. A humanidade chegou a um ponto em que a
desigualdade social, a ascensão de formas autoritárias de poder e o aquecimento
global colocam em xeque o padrão desenvolvimentista e consumista que vem sendo
praticado pelas sociedades atualmente.
É nesse
sentido que emerge uma cosmovisão que se baseia na mentalidade dos povos
originários no contexto latino-americano, voltada para um novo paradigma que
pode nos ajudar a superar os problemas que temos enfrentado. Trata-se do Bem
Viver como princípio organizador das relações com a natureza, abrangendo
aspectos sociais, econômicos, políticos e espirituais.
O Bem Viver
tem a ver com a experiência das comunidades e povos indígenas na América
Latina, com um conjunto de elementos que podem nos inspirar a repensar valores
e práticas da cultura contemporânea. O trabalho de resgate dessa forma de
pensar tem mobilizado antropólogos, cientistas sociais e políticos bem como
teólogos para apontar para a humanidade uma nova utopia no sentido de se
construir uma sociedade mais solidária e sustentável.
O Bem Viver
vivenciado pelas culturas indígenas difere dos ensinamentos éticos do Ocidente,
como a busca pela vida boa, do bem-estar e da felicidade. Ele se opõe à
exploração e à dominação. Por isso, deve ser reinterpretado para se tornar um
projeto de vida concreto, capaz de revolucionar nossas maneiras de pensar,
nossas formas de interagir com a natureza e nossas relações humanas.
Assim como não
podemos falar de uma única experiência cultural dos povos originários da
América Latina, também não é possível compreender o Bem Viver a partir de um
único viés. Precisamos falar de varias formas de Bem Viver, que podem ser
percebidas através das várias linguagens desses mesmos povos. Sendo assim,
podemos falar de um tratamento da vida em sua plenitude, de um modo de conviver
com a natureza e as pessoas, de contentamento e até de um jeito de se
relacionar que leva em consideração a temporalidade, a alteridade e a relação
com a natureza.
De um modo
geral, o Bem Viver procura superar a dicotomia homem-natureza trazida pelos
colonizadores europeus. De acordo com essa mentalidade, a América Latina
deveria servir como fornecedora de recursos naturais e de mão de obra para dar
conta do padrão de vida das nações que se consideravam desenvolvidas.
Entretanto, esse modelo tem se mostrado insuficiente e superado, sobretudo a
partir da década de 1980, que coincide com o neoliberalismo que se levantou na
economia, ao mesmo tempo em que a natureza começou a dar sinais de esgotamento
de seus recursos renováveis.
O Bem Viver,
então, se apresenta como um pensamento em construção, que procura resgatar os
saberes dos povos originários, sobretudo das comunidades andinas, acompanhado
por uma reflexão acadêmica a respeito dos movimentos sociais e da necessidade
de implementação de políticas públicas voltadas para a superação dos graves problemas
decorrentes da economia exploratória e de mercado. Uma das marcas desse
processo de construção foi a inserção do Bem Viver nas leis fundamentais do
Equador e da Bolívia, assim como o surgimento de várias experiências de
aplicação das práticas em comunidades em várias partes do continente.
O Bem Viver,
portanto, é um conceito plural que precisa ser analisado a partir da interação
com outros saberes voltados para o cuidado com a natureza, à crítica ao modelo
socioeconômico que orienta o consumo e a uma reelaboração do modo de pensar a vida
e o bem-estar nos dias atuais. O Bem Viver é, por assim dizer, uma forma
decolonial de pensar, ou seja, se se desvencilhar da influência da mentalidade
colonizadora e construir respostas a partir de sua própria experiência cultural.
É uma forma de pensar em aberto, o que torna possível inclusive dialogar com outros
saberes tradicionais e buscar respostas que emanam da experiência de povos
marginalizados e explorados em outras partes do mundo. Segundo a particularidade
de cada povo, emergem conceitos que se complementam e apontam caminhos para o
diálogo.
Uma das possibilidades
de diálogo é com a Teologia. Os povos originários da América Latina foram influenciados
por uma visão cristã dualista, que opõe corpo e alma, céu e inferno, mundo e
espiritualidade. A aproximação da teologia com a ideia do Bem Viver passa pelo
resgate da relação entre o homem e a natureza como uma unidade integradora, na
medida em que ambos estão interligados e são coexistentes.
Para dialogar
com as formas do Bem Viver, uma das possibilidades é fazer uma releitura dos
discursos de Jesus a respeito do sentido da vida e dos valores imprescindíveis
para uma vida digna no mundo. Jesus não se preocupou apenas com uma vida no
porvir, mas com a vivência de forma plena já aqui nesse tempo presente. Ele
ensinou princípios de vida, deixou mandamentos, fez advertências e recomendou
práticas para que as pessoas pudessem viver bem umas com as outras e também
experimentassem uma vida de realizações no mundo.
A aproximação
dos ensinos de Jesus com o Bem Viver nos ajuda a perceber que a mensagem do
evangelho é para toda criatura, que se atualiza e se insere no contexto das culturas
para promover o resgate do que há de mais humano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário