terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Povos originários e a invenção da América Latina / Native peoples and invention of Latin America / Pueblos originarios y la invención de América Latina



A América Latina apresenta uma grande diversidade étnica. E isso se deve à sua formação que se deu a partir de ciclos migratórios ao longo do tempo, desde a chamada Era do Gelo. É um engano – e uma agressão histórica – situar a história da América Latina no período dos grandes descobrimentos. Quando os europeus aqui chegaram, já havia uma realidade civilizatória assim como contatos com outras etnias já havia acontecido.
De um modo geral, os ciclos migratórios se deram por etapas: primeiramente com a formação pré-colombiana, a chegada dos colonizadores, a diáspora africana e o que podemos chamar de migrações modernas e contemporâneas. A América Latina tem uma história secular de fluxos milenar que possibilitou diversidade e contradições. O aspecto multicultural e os processos de formação socio-histórica, no entanto, carecem de um lugar epistemológico para a problematização no âmbito das ciências humanas.
Essa diversidade de povos e raças que formou a população latino-americana demanda uma pesquisa antropológica mais abrangente que leve em consideração a questão das identidades latino-americanas. Entretanto, a maneira como se desenvolvem hoje os estudos sobre a realidade social latino-americana tem sido limitada por concepções eurocêntricas e norte-americanas que predominam no campo da pesquisa antropológica, como também em todas as ciências sociais e até na teologia. E isso afeta diretamente o reconhecimento e o tratamento do fenômeno a respeito dos povos originários.
Um novo debate em torno da questão latino-americana deve levar em consideração problematizações acerca da noção do que é América, do que vem a ser latino e também a ideia do que é indígena. As propostas mais difundidas dão conta de que os povos originários das Américas são descendentes tanto de asiáticos, quanto de europeus e africanos. Uma das teorias mais difundidas é a das correntes migratórias através do Estreito de Bering, entre 24.000 e 9.000 anos atrás, com evidências em estudos antropológicos e arqueológicos. Entretanto, há uma ruptura epistemológica, que se deu com a descoberta do fóssil de Luiza.
Interessante constatar que o primeiro mapa do continente feito pelos descobridores trazia o nome “América” na parte sul. O continente como num todo (Norte, Centro e Sul) era chamado na Europa de “Novo Mundo”. Posteriormente, os mapas designariam todo o continente do Novo Mundo como América. Era uma alusão a Américo Vespúcio, explorador italiano que descreveu pela primeira vez a “descoberta” de Colombo não era a costa da Ásia, mas um novo território desconhecido os europeus. Mas no século XIX, o nome passaria a ser aplicado apenas aos Estados Unidos, após a chamada “Doutrina Monroe”, primeiramente com a designação de norte-americano e, posteriormente, como simplesmente América ou americano.
A América do Sul passou a ser, então, tratada como América Latina, com uma carga de discriminação e depreciação. Desde então, passou-se a designar de americano tão somente o cidadão dos Estados Unidos da América e de latino-americano a todos provenientes a partir da fronteira com o México. A parte sul do continente perdeu o seu nome e sua identidade, mas ganhou nova significação com a denominação de latina, por sua origem espanhola, portuguesa e francesa, ao contrário da formação do norte, de origem anglo-saxônica, dinamarquesa, holandesa. Todas as tentativas de formar uma unidade americana, como o movimento pan-americano de Simon Bolívar no século XIX, fracassaram. Em grande parte em função da oposição dos Estados Unidos à formação de um bloco de estados na parte sul da América.
Alguns problemas a respeito do tratamento das profundas mudanças experimentadas no interior das diversas etnias latino-americanas:
a) A formação da América Latina foi submetida a um mesmo processo histórico em que estão em questão tanto o conservadorismo como o progresso, que é o colonialismo.
b) Os interesses de uma elite financeira, rural e industrial estão conjugados entre si e com os interesses da burguesia. Não há um conflito de classes nesse sentido, mas uma parceria. Os questionamentos da estrutura social partem dos movimentos populares.
c) A América Latina emerge com sua diversidade cultural e étnica, suas linguagens, seus fatos políticos e sociais, sua relação com a natureza como elementos orientadores da luta frente à exploração do capitalismo global.
Numa proposta de uma perspectiva geográfica dos povos originários, podemos identificar: os povos da América Central ou Mesoamérica (toltecas, astecas, maias); os povos andinos ou das terras altas (incas, quíchuas, aymaras, mapuches); os povos do Brasil ou das terras baixas (tupis-guaranis, tapuias, aruaques, maipurés, caraíbas); e os povos do Sul ou do Gran Chaco (chiriguanos, guaycurus, mataco e vilelas).
O estudo dos povos originários tem se dado por diversas marcas antropológicas, mas essencialmente se direciona a partir da análise das grandes famílias linguísticas. Até o momento, eles apontam para uma pluralidade de formas de organização, de linguagens, de cultura e de religião. As análises a partir dos grandes grupos de povos originários remanescentes que estão mais avançadas correspondem aos Aymaras, Quíchuas, Guaranis e Mapuches.
A aproximação com a cultura e a religiosidade dos povos originários se dá em meio a um ambiente de tensão e conflitos desde a colonização. E um dos fatores de maior dificuldade diz respeito ao aspecto religioso. Primeiramente pelo fato de que a religiosidade dos povos originários das Américas tem sua forma própria de realização, que não se dá pela sistematização teológica e acadêmica da teologia ocidental. Mas também se deve à realidade de que não existe um mapeamento das expressões religiosas dos povos originários.
Os pesquisadores de um modo geral têm encontrado muita dificuldade para enquadrar a religiosidade ameríndia aos padrões de pensamento ocidental a respeito da religião, tanto pelo ineditismo da pesquisa científica da experiência religiosa dos povos originários em face da tradição oral, quanto pela repressão às expressões religiosas e à mitologia das civilizações pré-colombianas.
Uma das primeiras contribuições no campo da pesquisa antropológica foi a do francês Claude Lévi-Strauss, quando viveu em São Paulo. Ele demonstrou que aquilo que os europeus chamavam de “pensamento selvagem” tem uma lógica própria que não é estranha ao pensamento ocidental. Em sua antropologia estrutural, procurou investigar traços universais da cultura, como o mito, a linguagem e o uso de símbolos.
Atualmente, há muitos esforços para a elaboração de uma teologia índia, para demonstrar o saber acerca de Deus presente na cultura, como uma gramática que permite novos diálogos e caminhos de libertação. Há um movimento acadêmico a fim de se dar voz às teologias índias. O que se pretende não é um retorno às religiões indígenas, mas um modo de compreender nossas origens e elaborar uma visão de mundo em que elas servem como referencial de uma identidade mais profunda.
Como traços comuns da religiosidade dos povos originários, podemos destacar a atividade comunitária, a relação com a natureza como espaço vital e a relação respeitosa com o sagrado e o mistério. Esses traços conduzem a uma perspectiva teológica desses mesmos povos, marcada pelo politeísmo, animismo, costumes xamânicos e práticas de ofertórios e sacrifícios. Em muitos desses casos, o termo “teologia” é inadequado para descrever a religiosidade ameríndia.
O contato dos europeus com o chamado “Novo Mundo” e os enfrentamentos coloniais trouxeram grandes transformações etnográficas. Mesmo porque o processo colonizador se deu por critérios que mais se aproximavam de uma invasão, por conta da exploração, do extermínio e até da evangelização. Daí a necessidade de uma proposta decolonial, sobretudo a de Boaventura de Sousa Santos de pensar a partir do Sul, de lançar um desafio de superar a mentalidade colonial, capitalista e católica engendrada pelos europeus. Essa proposta decolonial aponta para o resgate e afirmação do princípio do Bem Viver.
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