terça-feira, 21 de abril de 2020

Qual o lugar de Deus em tempos difíceis? / What is God's place in difficult times? / ¿Cuál es el lugar de Dios en tiempos difíciles?


Nossa geração não tinha vivido até então um tempo como esse, marcado por uma pandemia. A última que se tem notícia foi em 1918, por ocasião da chamada “gripe espanhola”, que matou mais pessoas do que a própria guerra mundial que acontecia naquele tempo. Tivemos outras epidemias, sem dúvida, que afetaram grupos sociais e regiões – como o da Aids, do vírus Ebola, do vírus Influenza, para falar das mais recentes – mas nada se compara à proporção que o Coronavírus tem alcançado. Nós nos surpreendemos ao verificar que a humanidade não estava preparada para enfrentar esse fenômeno. Tanto a ciência, quanto as estruturas econômicos e os poderes políticos acreditavam que poderiam superar todos os problemas humanos, que teríamos todas as respostas e que seríamos capazes de vencer até os limites da morte. Inclusive a igreja não estava preparada para isso, sem saber como dar uma palavra de consolo para as pessoas que estão sofrendo.
Em tempos difíceis, levanta-se uma questão: qual é o lugar de Deus? Onde Ele está? A resposta tem a ver com o mesmo lugar que Jesus ocupa. Deus está onde Jesus toma forma. Um texto bíblico importante para entender isso é aquele que fala de Jesus como uma pedra angular: “À medida que se aproximam dele, a pedra viva — rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus e preciosa para ele — vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo” (1 Pedro 2.4,5). Esse texto lembra que há uma maneira de Deus cuidar das nossas dores, feridas e fraquezas. O modo de Deus nos alcançar com sua graça com sua ação de consolo é através da pessoa de Jesus Cristo, que se faz presente entre nós, que age em nós por meio do seu Espírito.
Pedro diz que Jesus é essa pedra rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus para nos dar esperança e mudar a nossa realidade. Jesus é tudo o que temos. Jesus é o bem mais precioso que os cristãos possuem. E essa pedra preciosa, que é o modo de Deus cuidar da humanidade, nos chama para sermos como cristos no mundo. Cristo quer tomar forma no mundo através da nossa vida. Jesus escolheu gente como a gente para ser a presença dele no mundo, portadores de esperança e de uma palavra de vida para esse mundo que sofre. Deus está conosco através desse Jesus vivo que se manifesta por meio das pessoas que aceitaram o privilégio de encarnar o amor de Deus para o mundo. Os cristãos precisam ser para o mundo a encarnação da mensagem de amor, de paz, de esperança, de libertação e de justiça que Deus trouxe para o mundo através da pessoa de Jesus. Deus está conosco desse modo em que Jesus toma forma em nossa vida, até mesmo nas horas mais difíceis. Jesus também experimentou a dor, a perda, a tristeza e até mesmo a agonia da morte para que pudesse dizer que é possível anunciar vida para um mundo perdido.
Se Jesus é a resposta de Deus para um mundo em crise, tem algumas perguntas que se tornam inevitáveis. A primeira delas é: quem é Deus diante da crise, da dor da humanidade, desse fenômeno que parou o mundo inteiro? Não importa qual seja a sua definição sobre Deus, é preciso dizer que Ele é maior do que a crise. E se Deus é maior, Ele tem poder suficiente para agir na vida daqueles sofrem nesse momento. Ele é maior até que todos as nossas certezas e crenças, e está pronto a abençoar.
A segunda pergunta é: se Deus é tão grande assim, o que Deus faz em tempos difíceis? O que Ele deve estar fazendo nessa hora? Por que ele ainda não eliminou esse vírus, ou não curou as pessoas, ou não deu inteligência para os cientistas descobrirem logo uma vacina? A resposta que temos é que Deus está trabalhando incansavelmente em favor da humanidade. Deus continua trabalhando através do seu cuidado por toda a criação, desde a criação. A Bíblia diz que, após criar todas as coisas, Ele descansou da criação. Mas ele não parou de trabalhar pelo cuidado de toda criação. E, ao agir como Criador, Ele deu a todas as suas criaturas a capacidade de se autorreproduzir e de autocuidar, de gerar nova vida e ter liberdade de agir. E isso é prova do seu amor. Ele não é um Deus despótico, dominador, controlando quem vive e quem morre, quem sofre e quem se livra. Todas as criaturas podem viver de forma livre. O trabalho de Deus é o de garantir a nossa liberdade, para sermos pessoas livres. Ele nos dá força e coragem para vivermos a nossa liberdade no mundo. É o maior milagre que Deus pode realizar na nossa vida, o de nos dar a esperança de poder seguir em frente apesar da dor, da tragédia e todas as aflições. Ele nos dá força e coragem para passarmos por tempos difíceis. Essa é a sua resposta ao nosso clamor.
Mas a outra pergunta que fazemos na hora da dor é: onde Ele está na hora da crise? Cadê Deus? Ele está entre nós. Deus está ao lado dos que sofrem, sentido sua dor, aflição e temor. E Ele quer cuidar de nós, nos abraçar, demonstrar seu amor. Muitas vezes Deus se manifesta que está entre nós através do seu silêncio. Ele prometeu que estaria conosco. Toda a Escritura está cheia de suas promessas. Ele prometeu aos patriarcas da fé, também o fez através dos salmos, dos profetas e, finalmente, da pessoa de Jesus. Deus não está nem acima nem abaixo, Ele está entre nós. Não abriu mão de seguir em frente conosco.
Ao fazer a pergunta “quem é Deus?”, lembre-se: Ele é maior. Ao perguntar “o que Ele faz?”, lembre-se: Ele nos dá força e coragem. E ao perguntar “onde ele está?”, lembre-se: Ele está entre nós. Deus é maior que nossas aflições, Ele está pronto a nos fortalecer e encorajar, Ele está pronto a nos acolher em amor.
(Mensagem apresentada durante o período da quarentena por conta da pandemia do Coronavírus e do Covid-19).

sábado, 18 de abril de 2020

Lições do Sofrimento / Lessons of suffering / Lecciones de sufrimiento


O sofrimento não ocorre à revelia da vida. Há lições a serem aprendidas, apesar de ele tomar parte da nossa existência como um intruso. Ninguém o busca ou o deseja, mas ele acontece. Volta e meia enfrentamos situações que provocam dor, aflição, perda, medo, ansiedade e tormentas. Ele nos inquieta como um vilão em nossa vida. O sofrimento produz efeitos significativos, embora não identifiquemos de maneira fácil a sua causa.
Vivemos numa época em que se dá muita ênfase ao bem-estar e ao conforto. Dificilmente lembramos que a vida é marcada muitas vezes por lutas, por esforço e por situações desagradáveis. Esquecemos que o dia mal pode chegar a qualquer instante. Ninguém está isento disso, todos podemos passar por momentos difíceis, de angústia, que nos levam ao choro, que nos tiram a paz e que até desassossegam o nosso coração. Isso faz lembrar o poeta espanhol do século XVII, Calderón de la Barca, que se pergunta que mal fez para merecer o sofrimento. Ele então diz: “O maior delito do homem é ter nascido”.
O sofrimento não nos ajuda a entender suas razões. Porém, quando não entendemos a dor, temos a tendência de espiritualiza-la com a pergunta “porque comigo, Deus?”, como se houvesse uma conspiração sobrenatural contra nós. É inevitável indagar, mas precisamos compreender que o sofrimento não é produzido por Deus. Ele é resultado de nossa vida num mundo marcado por incertezas e contradições. O tempo todo estamos expostos aos nossos limites, à dor e até à finitude.
O sofrimento não precisa de justificativa, nem há um sentido para ele. Porém, é sempre uma oportunidade para crescermos como pessoas e nos aperfeiçoarmos. É bom que se diga que o sofrimento não tem essa finalidade, ninguém sofre para ter um estímulo na vida. Mas quando o infortúnio ou a tragédia nos acometem, precisamos ressignificá-lo, olhá-lo com outros olhos. Ele não acontece como obra do acaso meramente. Ele pode servir como uma oportunidade para melhorar a vida.
Em meio ao sofrimento, podemos entender melhor como Deus está conosco e como ele cuida de nós. Precisamos reconhecer que ele está disposto a estender o seu braço forte e nos abraçar de um jeito que só Ele sabe fazer. Descobrimos que Ele tem um modo peculiar de nos acolher, que Ele tem cuidado de nós, que quer tocar em nosso coração, quer trabalhar em nossa vida e fazer com que possamos dar um salto de qualidade apesar da dor, do sofrimento, da perda, da tragédia, das tribulações e até das tentações. Deus sabe lidar com nossas dores.
Há lições a serem aprendidas no meio da tormenta, em que o sofrimento se transforma num mestre de vida. Elas estão expressas na Bíblia. O apóstolo Paulo nos apontou a trilha da aprendizagem com o sofrimento. Veja o texto em que ele escreveu sobre isso: Não só isso, mas também nos gloriamos nas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” (Romanos 5.3,4).
Há três lições a serem aprendidas com o sofrimento. A primeira delas é a lição da perseverança. A dor, a angústia e o medo nos paralisam. Mas quando vêm sobre nós, essa não é a hora de desistir. Quando passar por grandes tribulações, não desanime. O apóstolo Tiago escreveu: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma” (Tiago 1.2-4). Quando enfrentamos um obstáculo, isso não é o fim. Temos que entendê-lo como um desafio para seguirmos adiante.
A segunda lição tem a ver com o caráter. Que tipo de pessoa é você quando enfrenta o sofrimento? Quem sou eu diante da dor? Se o problema vier, não ceda. Não faça negociações a respeito da sua dignidade, de sua condição como pessoa, de sua confiança no poder de Deus. Faça o que você o que você tem competência para fazer. Conselho do apóstolo Paulo: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações” (2 Coríntios 1.3,4). Lembre-se que somos observados o tempo todo. Na hora do sofrimento, temos a oportunidade de servirmos como testemunhas da fé, da esperança e da confiança no cuidado de Deus sobre nós.
A terceira lição é a da esperança. Quando vier o sofrimento, não pare, siga adiante. Não perca a esperança. É ela que nos impulsiona a seguirmos em frente, a crermos que existem novas possibilidades além da dura realidade que enfrentamos. Fé e esperança são atitudes que estão interligadas. Não existe uma sem a outra. Elas servem para crermos que Deus está no controle e para termos esperança de que suas promessas se cumprem. Palavra do apóstolo Paulo: “Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada” (Romanos 8.18). Lembre-se sempre: aquilo que enfrentamos agora não se compara com a glória que Deus tem preparado para todos nós. Há vitória no final de nossa luta. A luta daquele que confia no Senhor já é marcada pela vitória.
São lições que nos fortalecem e nos ajudam a cuidar dos que amamos. Se você passa por um momento de sofrimento, persevere, mantenha o seu caráter firme, tenha esperança. Há uma bênção nas Escrituras para aqueles que passam por aflições: “O Deus de toda a graça, que os chamou para a sua glória eterna em Cristo Jesus, depois de terem sofrido durante pouco de tempo, os restaurará, os confirmará, lhes dará forças e os porá sobre firmes alicerces” (1 Pedro 5.10).
(Mensagem apresentada durante o período da quarentena por causa da pandemia causada pelo Coronavírus e a doença Covid-19).

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Para onde foi Deus? / Where did God go? / ¿A dónde fue Dios?

No aforismo 125 do seu livro Gaia ciência, Nietzsche fala de um louco que carregava uma lanterna acesa em plena luz do dia e corria pela praça dizendo que estava a procura de Deus. Como muitos daqueles que se encontravam na praça não acreditavam em Deus, essa atitude provocou risos e zombaria. Porém, o louco salto no meio da turba que fazia galhofa, olhou para cada um deles severamente e disse: “Para onde foi Deus? É o que vou dizer. Nós o matamos – vocês e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos! Mas como fizemos isso?”
O louco, então, passa a fazer várias indagações a respeito de como não nos demos conta, ao longo de nossa existência, das grandes transformações decorrentes da ausência de Deus no mundo. Um grande vazio tomou conta da vida humana ao mesmo tempo em que nos tornamos insensíveis ao ponto de não percebermos que a humanidade lançou Deus para fora de suas relações. Com isso, a humanidade se viu impelida a desenvolver artifícios e argumentos que pudessem substituir a presença de Deus, como se tivesse que criar deuses a partir dos próprios homens. E isso lançou a humanidade numa outra maneira de encarar a história, que é relativa aos tempos modernos, como se fossem os momentos mais nobres de toda a vida humana na Terra. Foi nesse ponto que o louco parou de falar, e todos os seus zombadores ficaram em silêncio.
Após essa cena, o louco jogou sua lanterna no chão, que se espatifou e se quebrou. Ele entendeu que tinha chegado cedo demais, pois as pessoas ainda não estavam preparadas para compreender o que estão fazendo com a vida. Os grandes acontecimentos precisam de tempo para serem discernidos. E quanto a essas transformações decorrentes da ausência de Deus, ainda vai levar um tempo para que a humanidade se dê conta do que está a acontecer ainda hoje como consequência.
Nietzsche termina a história do louco de forma muito curiosa. Naquele mesmo dia, ele entrou em uma igreja e cantou um réquiem de exaltação ao eterno Deus. Mas foi expulso e questionado sobre suas ideias. Nietzsche disse que ele teria repetido as mesmas coisas e ainda teria acrescentado: “Para que servem essas igrejas, se não são os túmulos de Deus?” A igreja se tornou como um mausoléu. Monumentos suntuosos, mas que só servem para guardar restos mortais de alguém, que pode até ter feito algo de muito significativo, mas que hoje não faz o menor sentido.
Talvez alguém ache que essa narrativa toda esteja desconectada da realidade histórica a respeito da fé cristã, que foi escrita por alguém que assumiu a tarefa de atacar o cristianismo como um inimigo. Porém, quando olhamos para os evangelhos e encontramos algumas parábolas contadas por Jesus, podemos entender que essa história do louco não é estranha. Ela serve como uma metáfora para demonstrar como a própria cristandade contribui para esse cenário ocidental em Deus foi lançado para fora do mundo.
Voltando à pergunta do louco: “Mas como fizemos isso?” Há três modos como a cultura ocidental moderna, com base na herança cristã, lançou Deus para fora do mundo. Primeiro, por afirmar a capacidade da razão suficiente, em que o indivíduo pode dar conta de si mesmo. Segundo, pela maneira como a ciência foi construída, como um modo de conhecer que é capaz de encontrar todas as respostas sem a necessidade da fé, em que a espiritualidade não é considerada para explicar os fenômenos, inclusive os humanos. E, terceiro, pelo pensamento dualista que separa matéria e espírito, corpo e alma, objeto e sujeito, natureza e cultura, fato e história, mundo físico e mundo espiritual, natural e sobrenatural, ignorando que tudo está interligado num todo complexo. Nesses contextos, Deus não tem lugar. O que restou foi a necessidade de inventar formas morais que obriguem as pessoas a práticas que servem como substitutos de Deus para suas vidas. Assim se tornou a religião, firmada no ensino da obediência como sinal de que faz a vontade de Deus.
Durante seu ministério, Jesus alertou as pessoas do risco de lidar com a fé e a relação com Deus distante da realidade e da vida. Ele contou algumas parábolas que sinalizavam os distanciamentos possíveis com respeito a quem Deus é o espaço que Ele ocupa na história humana. Essas parábolas nem sempre são bem compreendidas até hoje, e, talvez por isso mesmo, são pouco estudadas nas igrejas atualmente. Elas ajudam a compreendermos a vida, os ensinos e missão de Jesus de forma completa, vinculada a uma compreensão de nossa condição de existência no mundo. São elas: a parábola dos lavradores maus, a parábola do administrador astuto, a parábola da rede com toda sorte de peixe e a parábola do sinal do tempo. Elas apresentam um olhar diferenciado a respeito da pessoa e mensagem de Jesus que nos remetem a novas formas de aplicação em nossa vida.
A grande revelação de Deus na pessoa de Jesus Cristo é o Seu cuidado para com a humanidade toda. A história contada e registrada de Jesus nos evangelhos serve como uma grande metáfora que demonstra o cuidado de Deus por todos nós. Esse cuidado é expressão do amor pela humanidade inteira, como um esforço de resgatar o que há de mais humano em todos nós. Um cuidado que é estendido a toda criatura e a toda criação, em que ninguém pode ficar de fora, excluído ou rejeitado. E também um cuidado que aponta para a esperança, como possibilidade de superação daquilo que nos desumaniza. A partir da leitura dessas parábolas, podemos crer no cuidado de Deus através de Jesus por toda a criação.
Jesus chamou as pessoas que viviam uma vida de aparência por sua religiosidade de “sepulcros caiados”. E ainda acrescentou: “Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mateus 23.28). E ainda mais: Jesus denunciou que tais pessoas olham para o passado, para aqueles que mataram os profetas, e ainda dizem que não teriam feito nem permitido tal maldade. A igreja de hoje repete os mesmos erros quando não se abre para rever a maneira como tem colocado em prática os ensinos de Jesus a respeito do cuidado sobre toda a criação e não corrige sua caminhada para viver o evangelho como sinal do cuidado de Deus.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Como será a vida depois da quarentena? / How will be the life after quarantine? / ¿Cómo será la vida después de la cuarentena?


O mundo que conhecíamos até o começo deste ano não existe mais. E não será mais o mesmo quando a quarentena por conta da pandemia provocada pelo Coronavírus terminar. Sim, a quarentena vai acabar, a pandemia vai passar e a vida retomará seu rumo. Mas o mundo não será mais do mesmo jeito, os relacionamentos não serão mais os mesmos e, muito provavelmente,  não nutriremos as mesmas ideias e ideais.
A pandemia do Covid-19 tem sido uma experiência dolorosa em todo o planeta. Os relatos das pessoas em quarentena, das famílias enlutadas e das perdas econômicas formam um quadro muito triste que permanecerá por muitos anos na memória dessa geração. Embora se possa acreditar que há uma vida pós-quarentena, a única coisa que se pode afirmar sobre ela é que o mundo não voltará ao normal.
Os epicentros dessa pandemia têm sido as grandes cidades. O vírus ganhou urbanidade, está inserido na polis. Portanto, alcançou dimensão política. A batalha contra ele não é biológica simplesmente, mas, também, política. O uso político da Medicina, da Epidemiologia, da Infectologia vai determinar os caminhos a seguir. Para o bem ou para o mal. As decisões que tomarmos agora serão decisivas para o que virá quando tudo isso passar.
Há um aprendizado promovido pelo sofrimento. As épocas de calamidade deixam marcas profundas na vida social, e as pessoas em geral experimentam uma transformação no seu modo de pensar e de ver o mundo. E isso também acontece com a humanidade. Após períodos de grandes epidemias, ou mesmo de grandes guerras ou de cataclismos, o mundo procurou encontrar novas alternativas para a vida. Um bom exemplo disso foi o período da peste negra, que varreu o Ocidente. Associada ao avanço das forças otomanas sobre a Europa e à necessidade de encontrar respostas para os graves dilemas humanos, a cultura ocidental se abriu para uma nova mentalidade no campo das Artes, da Ciência, da Política e da Religião com o movimento renascentista. Ideias humanistas de valorização da liberdade e da dignidade da pessoa humana, bem como a afirmação da capacidade do homem pensar por si mesmo, resultaram no que conhecemos como mundo moderno ou modernidade.
Neste mundo de agora, açoitado por uma crise sem precedentes, será urgente refletirmos sobre três grandes questões. A primeira relaciona-se à forma como o capitalismo chegou até aqui, favorecendo a concentração de renda de uma minoria e lançando na miséria um grande número de pessoas. A segunda indaga a respeito do cenário geopolítico em meio ao avanço da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da internet das coisas, que influencia o surgimento de uma sociedade do controle e as mudanças nas relações de trabalho. E a terceira considera a ameaça à vida no planeta, com o esgotamento dos recursos naturais para o consumo, com o desequilíbrio ambiental e o aquecimento global.
A pandemia veio acrescentar, ainda, uma questão a mais para a humanidade: como reagimos quando tudo aquilo que acreditamos que nos daria segurança e bem-estar se torna insuficiente diante de um vírus de alto poder de contágio? Ainda não se tem uma resposta a respeito disso. Trata-se de uma questão nova, que nos conduz a uma total revisão daqueles  valores que orientam a maneira como vivemos. A busca por respostas, que não serão  únicas nem definitivas, deve mobilizar agora todas as áreas do conhecimento humano, em todas as culturas e em todos os espaços. Esse vírus fez com que as pessoas parassem seu ritmo de vida a fim de que pudessem perceber que há algo mais que é preciso aprender juntos a respeito do nosso valor e de nossa condição humana. E temos aprendido coisas novas
Aprendemos que a vida não é feita de pressa ou prazos, e que precisamos de bem menos para viver. Pessoas têm encontrado novas formas de consumir, de partilhar os recursos, de produzir bens e serviços. De repente, as pessoas descobrem o valor da vida em família, o quanto os nossos idosos são importantes, como é possível deixar um legado significativo para as gerações futuras. As pessoas têm descoberto o valor da vida em comunidade, de encontrar novas formas de se relacionar com os vizinhos que enfrentam as mesmas circunstâncias que nós.
Aprendemos que a natureza precisa de um alívio. É sim possível parar o ritmo frenético das cidades, das fábricas e do comércio para dar tempo à natureza para que se recomponha nos permita um ar mais puro, um ambiente com menos lixo e com menor taxa de agressões ambientais. As pessoas estão aprendendo a reduzir  aquilo que descartam, a dar importância à reciclagem e a cuidar de assuntos como contaminação, proteção e preservação de uma forma prática, aplicada à necessidade de sobrevivência.
Aprendemos que a economia neoliberal é a pior face do Capitalismo, que acima do mercado está a vida. E vimos que é possível pará-la. De nada adiantará um mundo com tanta capacidade econômica se isso não for aplicado na promoção e implementação de medidas emergenciais para preservar a vida.  O capital acumulado não serve para nada se as pessoas morrerem nessa pandemia. E, lembremos de que pessoas também morrem de fome, de doenças graves, de violência e de exclusão. O vírus veio nos mostrar que o neoliberalismo fracassou, pois nunca precisamos tanto do Estado e das políticas públicas, sobretudo nas áreas de saúde, educação e assistência social. O poder econômico tem que estar a serviço da vida, e não o contrário. O poder econômico precisa ser usado para frear a ganância dos poderosos, para promover justiça, diminuir as desigualdades sociais e oferecer oportunidades iguais a todos.
Aprendemos que a solidariedade , essa sim, é o que realmente nos humaniza. Diante de uma ameaça deste porte, nossas ideologias se tornam inadequadas e sem sentido. Percebemos que estamos todos fragilizados, que o vírus não poupa ninguém. A mensagem de que habitamos numa mesma casa comum começa a ganhar força. Isso tem suas implicações. As soluções que serviram para a China podem servir para os Estados Unidos. O que Itália, Espanha e França enfrentam servem de alerta para o resto do mundo. Os recursos desenvolvidos por um podem atender a necessidade de todos.
Aprendemos que a Fé não precisa do templo, do domingo ou do clero. Ela precisa de algo que nos impulsione para aquilo que está além de nós mesmos. As estruturas religiosas jamais deveriam estar engessadas em fórmulas, hierarquias, calendários ou mesmo espaços sagrados. É preciso descobrir que não há nada mais sagrado que a vida, que santidade é cuidar da vida de tal modo que toda ela seja importante, que a grande sabedoria de viver é permitir que o outro desfrute das mesmas chances que eu tenho. A Fé se realiza no encontro com o outro e com o transcendente, com esse sentimento de pertença ao outro e ao transcendente, ao mesmo tempo.
Aprendemos o valor do conhecimento, da cultura, da educação e da ciência. O que seria de nós se não fossem as universidades e os centros de pesquisas para lutarem por buscas de soluções para os problemas? O que seria de nós, sem a Arte e a Literatura para superarmos o tédio desses dias? São contribuições que trabalham com o imaginário, que nos ajudam a sonhar e a ter esperança de que tudo isso vai passar e que, novamente, poderemos seguir nosso rumo.
Segundo o historiador israelense Yuval Noah Harari, em artigo no jornal inglês Financial Times, de 20 de março de 2020, a tempestade da pandemia passará, sobreviveremos, mas será outro planeta, já que muitas das medidas atuais de emergência deverão ser estabelecidas como rotinas fixas. O mundo que teremos depois dessa crise dependerá das decisões políticas que serão tomadas no decorrer dessa quarentena. Mas, passada a pandemia, teremos a chance de fazer a escolha se queremos retomar a vida de antes ou se queremos nos lançar em uma nova forma de viver.
Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, em artigo no jornal El País do dia 22 de março de 2020, disse: “Precisamos acreditar que, após o vírus, virá uma revolução humana”. Em meio aos acontecimentos, sobressai o exemplo daqueles que cuidam. Desde o modo correto de lavar as mãos até o desprendimento revelado ao se dedicarem ao serviço pelo outro, os profissionais de saúde nos ensinam como podemos cuidar e nos cuidarmos. A característica principal dessa “revolução humana” haverá de ser o cuidado, firmado no princípio da solidariedade entre todos e com todas as expressões da vida, ou não teremos aprendido nada. E os grandes revolucionários desse tempo serão aqueles que se levantam para cuidar da vida.
A quarentena vai acabar, a humanidade vencerá mais essa pandemia, isso é certo. Mas tudo o que não queremos – ou pelo menos tudo o que não deveria acontecer – é retomarmos as coisas que fazíamos do jeito que fazíamos anteriormente. A pergunta que precisa ser feita agora é: será realmente necessário fazermos as mesmas coisas que fazíamos, produzir as mesmas coisas que produzíamos, consumir do mesmo jeito que consumíamos e viver do mesmo modo que vivíamos? A resposta que nós, como humanidade, dermos à essa questão orientará a maneira como reagiremos às transformações que virão.
(Texto publicado originalmente no site do Coletivo Bereia >>.

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