segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Teologia e Cultura: Aproximações e distanciamentos / Theology and Culture: Approximations and Distances / Teología y cultura: aproximaciones y distancias


Uma das tarefas do fazer teológico é pensar a Teologia em sua relação com a cultura. A cultura é um sistema de significados e, como tal, é próprio de nossa condição humana. É a cultura que faz da pessoa um ser humano. A partir da cultura, a vida em sociedade se organiza e se percebe a realidade vivenciada. Isso de dá pelo fato e a cultura se realizar através das representações e das ações das pessoas em um grupo social. O ser humano é o grande ator da cultura.
A cultura se expressa na história e em meio às vivências sociais. As ações humanas são histórica e socialmente orientadas, por isso é que as práticas das comunidades humanas ao longo do tempo deixam seus vestígios. Como um movimento que questiona valores e comportamentos vigentes na cultura, o cristianismo possui um vínculo histórico e cultural de modo a propor novas possibilidades de relações humanas.
Nesse sentido, o cristianismo se expressa como contracultura, e não contra a cultura, a favor da cultura ou mesmo acultural. E, por ser uma contracultura, o cristianismo contesta os valores que se opõe ou se distinguem do fenômeno cultural, como o individualismo, o consumismo, o materialismo e a falta de pensamento crítico.
Dessa forma, a Teologia compreende as manifestações culturais, especialmente a arte, como expressões do cuidado de Deus com a humanidade. Um dos aspectos relevantes da relação entre Teologia e cultura é que ela contribui para a formação de um compromisso de expressar a fé no contexto de uma cultura, nunca fora dela.
A discussão sobre Teologia e cultura requer domínio de alguns conceitos fundamentais. Um deles é o de secularização, que envolve o esvaziamento do sagrado, sobretudo na cultura ocidental e Moderna. Outro conceito é o da globalização como um processo de integração cultural que foi acentuado a partir da Revolução Industrial e ganhou novos contornos com a era da informática. E tem ainda o conceito de enculturação, que trata da influência recíproca entre fé e cultura.
Via de regra, a Teologia lida com duas constatações sobre a relação com a cultura. O primeiro é o de que Deus está no controle da história. Não se trata de uma noção meramente determinista, mas parte da compreensão de que os propósitos divinos se realizam na história. Parte da ideia de que nem sempre aquilo que parece negativo aos nossos olhos é ruim aos olhos de Deus, pelo fato de que ele pode usar nossas situações adversas para cumprir seus propósitos. Outra constatação é que a cultura secularizada é oposta aos propósitos divinos. A fé está sempre em confronto com a cultura dominante e muitas vezes pode ser encarada como uma ameaça.
A teologia envolve dois elementos estruturantes: o texto bíblico, representativo de uma cultura, e o contexto cultural, representativo da cultura dos leitores. De um modo geral, a teologia lida com o fato de que a Bíblia tem um valor supracultural e atemporal. Isso quer dizer que os princípios e valores que orientam a condição humana em cada cultura apontam para a necessidade de uma relação com o transcendente, e isso interfere na interpretação dos textos sagrados em um dado momento.
Chamamos de supracultura as disposições culturais que transcendem à própria cultura, visto que esta reflete a situação de tensão da ambiguidade humana em meio às situações vividas, na medida em que cada um procura construir caminhos para estabelecer relações com o sagrado. Do ponto de vista teológico, a cultura é uma representação de nossa interioridade: nossas angústias, nossas esperanças, nossos temores e nossos desejos. É da natureza humana ter uma abertura para o que está além de si mesmo. Neste anseio pelo eterno e pelo inefável, o homem se dá conta de sua finitude e de sua condição limitada ao expressar suas histórias, seus rituais, seus relacionamentos, suas tecnologias e suas crenças.
Por essa razão, a humanidade procura eternizar sua cultura – a partir das relações comunitárias – para encontrar algum fator que lhe dê segurança diante de suas dúvidas, diante do mal, diante da dor e diante da morte. Quando a Teologia aborda o conceito de cultura, ela nos ajuda a encontrar maneiras de atribuir sentido para a vida, de buscar caminhos para o resgate do que há de humano em nós e de construir um caminho para restaurar a relação perdida com Deus e consigo mesmo.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Exercícios espirituais e espiritualidade cristã / Spiritual Exercises and Christian Spirituality / Ejercicios Espirituales y Espiritualidad Cristiana


A espiritualidade não é uma palavra encontrada nas Escrituras. Ela também não começa no cristianismo. E também não está ligada à história bíblica ou judaico-cristã. A espiritualidade é anterior ao cristianismo, está presente em civilizações que existiram cerca de três mil anos antes de Cristo e que desenvolveram práticas de meditação e de vida contemplativa. Entretanto, foram os gregos antigos que desenvolveram um conjunto de práticas e exercícios voltados para um determinado modo de pensar a vida e de viver a partir de valores e princípios considerados elevados, ligados ao espírito, que pode ser chamado de espiritualidade.
A ideia de uma espiritualidade cristã foi adquirida a partir da aproximação do pensamento cristão com a Filosofia Ocidental e o pensamento ocidental, sobretudo em relação aos ensinos platônicos do cuidado de si. Sócrates foi o primeiro pensador a propor exercícios para adestrar o sujeito a ter uma vida digna de ser contemplada e imitada. Seus ensinos foram aprofundados por pensadores como Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio, todos os estoicos e até os neoplatônicos como Plotino. Esses primeiros filósofos entenderam a filosofia como uma maneira de viver, como uma arte de viver, como uma askesis, Palavra grega que quer dizer “exercício”.
Essa tese é levantada pelo filósofo francês Pierre Hadot, em seu livro Exercícios espirituais e Filosofia Antiga. Para Hadot, as correntes de pensamento dos primeiros filósofos estavam a serviço de um modo de vida orientado pela Filosofia, que visava transformar o sujeito e oferecer-lhe princípios para sua conduta no mundo. Ele não emprega a ideia de “exercícios espirituais” como práticas religiosas, nem mesmo como exercícios intelectuais ou morais, mas como exercícios do pensamento. Ele afirma que a Filosofia Antiga é um “exercício espiritual porque ela é um modo de vida, uma escolha de vida”. Mais adiante ele resume que é “uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser”. Hadot questiona a respeito do momento em que a Filosofia deixou de ser tratada como modo de vida, e passou a ser teórica e abstrata tal como a conhecemos hoje. Entretanto, reconhece que o cristianismo se apresentou como uma filosofia completa, visto que assimilou a tradição greco-romana dos exercícios espirituais como modo de vida.
Podemos falar de uma tradição dos exercícios espirituais como uma construção do cristianismo somente a partir do século II. Os primeiros exercícios espirituais cristãos foram desenvolvidos por Orígenes, posteriormente pelos monges cenobitas e os padres do deserto, conhecidos como anacoretas. A tradição dos exercícios espirituais cristãos, também chamada de ascese ou ascetismo, está ligada à história da experiência mística como uma orientação da relação com o sagrado, o divino ou o transcendente. A mística é um campo de estudos teológicos importante, desenvolvida, sobretudo, a partir dos textos atribuídos a Dionísio Areopagita, no século VI, com sua teologia apofática, oposta a uma teologia dogmática e propositiva.
Já no século XVI, Inácio de Loyola trouxe a tradição dos exercícios espirituais para dentro da esfera religiosa. Para ele, os exercícios espirituais consistem em um “modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal e mentalmente e outras atividades espirituais. [...] Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais também se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposição de sua vida para o bem da mesma pessoa” (em seu livro Exercícios espirituais).
Os exercícios espirituais inacianos são, na verdade, um processo que visa conduzir seus praticantes a uma experiência de libertação dos sentimentos desornados em relação à vontade de Deus, cujo objetivo é desenvolver o discernimento. O que se pretende é promover uma conversão do sujeito para uma vida de união com Cristo bem como a imersão na prática da missão cristã no mundo. Sempre que se fala de exercícios espirituais e de espiritualidade cristã, a proposta inaciana é lembrada como referência. O problema é que ela é uma resposta da contrarreforma católica, em oposição à Reforma Protestante e, por essa razão, pouco considerada nos meios do protestantismo.
A espiritualidade cristã que emerge dos evangelhos, no entanto, possui algumas características que diferem da tradição ocidental. Jesus chama seus discípulos para uma vida guiada pelo Espírito Santo, como um parákleto, alguém que se coloca ao lado como guia e defensor. Espiritualidade cristã é essencialmente vida no e pelo Espírito, vivida no contexto comunitário, inserida na realidade do mundo. Os evangelhos apontam algumas marcas dessa espiritualidade: a comunhão simbolizada pela eucaristia, o testemunho de vida transformada, o serviço em amor ao próximo, o compromisso pelo batismo, a missão de sinalizar o Reino de Deus no mundo, a oração e o exame das Escrituras.
Nós não encontramos nos evangelhos a necessidade de uma prática religiosa, de atividades devocionais e nem de um chamado à vida ascética. A espiritualidade cristã que pode ser percebida nos evangelhos aponta para um modo de viver – ou uma arte de viver – centrada em uma relação com a pessoa de Jesus e orientada pelos seus ensinos. Vida que remete à participação comunitária, ao cuidado com o outro, à atenção aos mais fragilizados e a uma prática de desprendimento em relação aos valores materiais. A espiritualidade cristã está ligada a uma ética e a uma práxis que visa transformar a vida do sujeito de forma integral.
Resgatar a espiritualidade contida nos evangelhos é fazer o caminho de volta a um tipo de cristianismo anterior ao surgimento do que ficou marcado como cristandade. Precisamos desenvolver uma espiritualidade na contemporaneidade, como um exercício de sabedoria, a partir de uma releitura dos evangelhos, tendo em vista a conquista de uma consciência de nossa humanidade como sujeitos ativos no mundo, que oriente nossa ação responsável diante das dores e alegrias no mundo neste tempo.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

América Latina, decolonialidade e religião: provocações a partir da crise na Bolívia / Latin America, decoloniality and religion: provocations from the crisis in Bolivia / América Latina, descolonialidad y religión: provocaciones de la crisis en Bolivia


A América Latina passa por um retrocesso no cenário político. Depois de um breve período de ascensão social e econômica, alavancado pelo acesso de segmentos progressistas ao governo de alguns países, assistimos ao avanço das forças tidas como conservadoras retomando espaços que sempre foram dominados por uma oligarquia reacionária e patrimonialista.
Veja um brevíssimo retrospecto: assistimos a um golpe de Estado em 2009-2010 em Honduras, no Paraguai em 2012 e no Brasil em 2016. Em todos esses atos, havia uma questão de fundo – a atenção para com os direitos sociais – e uma estratégia – o uso do aparato militar em alguns casos de forma clara e, no caso do Brasil, de forma branda. Nesse meio tempo, as forças representativas da direita venceram no Chile, Argentina e Colômbia. O Peru tem passado por um complexo processo de afirmação política. Já neste ano de 2019, assistimos às tentativas de levantes de direita na Venezuela. Porém, os protestos populares no Equador e no Chile e a vitória da esquerda nas eleições argentinas e uruguaia (ainda que no primeiro turno) acenderam o alerta conservador. A tentativa de golpe na Bolívia é um sintoma disso.
Embora o quadro seja preocupante, não podemos nos esquecer de que a realidade latino-americana segue uma trajetória que se repete. A história da América Latina é marcada pela luta constante entre uma oligarquia branca, colonizadora, e forças políticas representativas dos trabalhadores, dos povos originários, de quilombolas e de quem sempre foi tratado como minoria. Os regimes ditatoriais que aconteceram desde a década de 1960 são a prova disso.
Nos últimos levantes populares no Equador e no Chile, bem como no golpe de Estado em curso na Bolívia, pode se notar a face explícita de um fascismo presente. A história se repete como farsa. Oligarquias se valem do fascismo, do fundamentalismo religioso e do neoliberalismo para exercerem o poder como sempre fizeram. Tempos difíceis se aproximam, de muita luta por parte dos oprimidos. O que as forças políticas conservadoras não contam, porém, é que existe uma grande massa de pobres e miseráveis que não suportam mais a opressão.
Retomando uma afirmação de Boaventura de Souza Santos, em Epistemologias do sul, a América Latina é resultado de um processo de formação marcado por três grandes influências: o colonialismo, o patriarcado e o capitalismo. Porém, precisamos acrescentar mais um elemento nesse processo, que é a presença marcante da religião calcada na concepção sacrificial e punitiva, que exige vítimas para satisfazer as necessidades do poder. As elites sempre se valeram da religião para fortalecer as estruturas de dominação, e, nesses episódios mais recentes, para dar lugar a uma mentalidade fascista e neoliberal.
O colonialismo foi superado historicamente, mas as estruturas da colonialidade ainda resistem. O patriarcalismo reproduz o discurso dominante da supremacia branca. O capitalismo procura dar conta de uma agenda neoliberal, que retira direitos sociais e favorece o capital financeiro internacional, e não mais o capital produtivo. E tudo isso debaixo dos olhares consensuais da religião. Primeiramente com a bênção do clero católico romano, ultimamente com o apoio do fundamentalismo religioso tanto evangélico quanto carismático.
Quando o fascismo se aproveita da religião para dominar, aumenta sua força destruidora de forma avassaladora. Quando o neoliberalismo faz uso da religião, se torna o mais pernicioso e iníquo sistema econômico que já existiu. É a nova face do estado exceção que estabelece uma forma de dominação que produz mais desigualdade e injustiças sociais, que põe as instituições democráticas sob risco constante e despreza as conquistas do Estado Democrático de Direito. Resistiremos.

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