segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Natal: libertação e esperança / Christmas: liberation and hope / Navidad: liberación y esperanza


O ventre em que aconteceu a gestação de Jesus sempre foi objeto de inquietação da Teologia. Maria não foi um instrumento insensível, um mero recipiente onde Deus semeou seu filho unigênito. Ela era uma pessoa. O título grego atribuído a ela é cercado de muitos significados: theotokos, que literalmente quer dizer “portadora de Deus”, uma expressão fortemente patriarcal. Porém, a primeira mulher que identificou Maria como a mulher que “portava” Deus a chamou de mãe. Isabel se se dirigiu à sua parenta, chamando-a de “a mãe do meu Senhor” (Lucas 1.43).
Ser mãe é algo sublime, carregado de expressão de humanidade. Não há uma mulher sequer que, ao engravidar, não seja tomada de um sentimento em relação à formação da criança, que não se preocupe em como vai ser a sua aparência, a sua saúde, o seu crescimento, as condições de cuidado. Imagine como isso se deu com Maria, vivendo numa comunidade de periferia, numa região dominada por um poder estrangeiro, marcada pela pobreza, cercada de gente sem muita expectativa de vida. As crianças da localidade não tinham um futuro promissor.
A maneira que Maria encontrou para expressar seu sentimento foi através do canto. Sua sensibilidade se transformou em poesia, expressa numa canção em forma de prece em que ela se coloca diante de Deus como alguém que descobre o seu papel histórico de gerar uma vida em sua vida. O Magnificat é um canto que vem da alma, que envolve todo o ser, que parte de alguém que sabe quem é, que se coloca diante de Deus, que reconhece seu lugar na história da redenção, que é marcado por expressões de adoração e de gratidão. Mas também é um canto de compromisso e engajamento, como expressão de alguém que sabe que está diante de uma tarefa maior do que sua capacidade, e que se levanta e se dispõem porque também sabe que quem fez o chamado não desampara jamais.
O canto de Maria permite identificar traços de sua personalidade, seus sonhos de menina, seus temores, como também sua compreensão da realidade que a cerca. No seu auge, ela entoa um brado político de libertação e esperança: Derrubou príncipes de seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de coisas boas os famintos e despediu de mãos vazias os ricos” (Lucas 1.52,53). Ela entendia a relação de poder que provocava opressão e desigualdade sobre sua gente. A causa da opressão estava na ação dos poderosos, a causa da pobreza estava na exploração dos ricos. E ela alimentava a esperança de que a redenção divina seria completa, libertando a humanidade de toda forma de opressão e exploração.
O Natal é a celebração da encarnação da justiça e do amor de Deus por uma humanidade que sofre os danos da sua própria maldade. Em Jesus de Nazaré, encontramos não só o perdão pela maldade humana, mas a possibilidade de libertação e toda forma de opressão e de exploração. A boa notícia da redenção não combina com as estruturas de poder nem com as relações que promovem desigualdade. A fé que emerge do encontro com Jesus não se nutre da ostentação, do preconceito, do orgulho e da vaidade, mas da esperança de que a graça salvadora e libertadora há alcançar a todos e todas que carecem dela. O Natal é tempo de libertação e de esperança.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Fé e Direitos Humanos: sinais históricos de tensões e aproximações / Faith and Human Rights: Historical Signs of Tensions and Approaches / Fe y derechos humanos: signos históricos de tensiones y enfoques


A luta pela defesa das liberdades individuais e contra as arbitrariedades do Estado é uma aspiração antiga. Norberto Bobbio, em A era dos direitos, fala de algumas ondas que marcaram a construção histórica desse desejo, que se transformou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que surgiu em 10 de dezembro de 1948. Ela diz em seu artigo 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
Falar em Direitos Humanos é tratar de uma construção histórica que vem sendo realizada há muito tempo pela humanidade. É possível situar a origem da preocupação com Direitos Humanos em 539 a.C., quando Ciro, O Grande, conquistou a cidade da Babilônia. Uma das suas ações para a consolidação do grande império persa foi o modo como tratou os escravos. Em um decreto, ele condenou o trabalho forçado e respeitou todas as crenças. Esse decreto, juntamente com outros, foi registrado num cilindro de barro conhecido hoje como o Cilindro de Ciro, que é considerado mundialmente como a primeira carta dos Direitos Humanos. Suas determinações são semelhantes aos quatro primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
Essa atitude influenciou os povos de um modo geral, inclusive a civilização greco-romana, que foi responsável pelas primeiras formulações do chamado Direito Natural. Entre as contribuições do Direito Natural greco-romano para a noção de Direitos Humanos estão as concepções éticas em relação à busca da felicidade e do bem-estar, como também a noção da política como a arte de se construir a vida em comunidade visando ao bem comum.
Entretanto, as grandes transformações no cuidado com a dignidade humana como um direito a todos os indivíduos vão acontecer com a aproximação entre a mensagem cristã e o pensamento ocidental, entre a tradição judaico-cristã e a tradição greco-romana, o que aconteceu a partir do século II da era cristã. Podemos alistar três momentos históricos significativos dessa aproximação.
O primeiro momento foi a compreensão de que todos somos iguais perante Deus. Partindo do princípio de que Deus não faz acepção de pessoas, a ideia de que fomos criados de um mesmo modo por um mesmo Deus, independente de cor da pele, etnia, classe social e sexualidade, foi uma grande revolução para o pensamento da época. A partir da modernidade, esse princípio será substituído pela ideia de que todos somos iguais perante a lei.
O segundo momento foi com a Reforma Protestante, que defendeu o princípio da laicidade do Estado, em substituição aos sistemas de poder dominados pelo clero. O Estado é uma construção que tem a participação de todos e deve ter suas ações voltadas para o bem de todos. Nesse Estado laico, a educação é para todos, o cuidado com a saúde deve ser um serviço do Estado a todos, e as leis devem garantir a liberdade de expressão da fé. Embora esses critérios não tenham sido perseguidos igualmente pelos Estados onde se deu a Reforma Protestante, nem as confissões protestantes tenham desenvolvido a mesma compreensão política, pelo menos a ideia inicial havia sido lançada.
O terceiro momento, já no século XX, corresponde ao período em que se começou a atribuir o prêmio Nobel da Paz a pessoas que se destacaram na defesa da cultura de paz. Desde então, a grande maioria dos premiados têm sido de pessoas religiosas atuantes em suas comunidades, comprometidas com a promoção da paz, não armamentista e não violenta. Dois grandes exemplos dessa luta são o líder hindu Mahatma Gandhi e o pastor batista Martin Luther King Jr, ambos vitimados durante a luta que empreenderam em favor da paz.
Em todos esses momentos, o que se depreende é que a realização da fé na esfera pública está e sempre esteve intimamente relacionada à defesa dos Direitos Humanos. Não há como imaginar a vivência da fé que ignora a necessidade do outro. Os Direitos Humanos, na concepção de quem assume uma vida de fé, têm rosto que é o do mais vulnerável, da vítima, do que sofre, do oprimido. Uma vivência de fé que não se abre para o que provoca dor, pobreza, desigualdade de oportunidades ou mesmo para a discriminação do outro é alienante e não serve para nada, a não ser para perpetuar as estruturas de dominação, de exploração e de cerceamento da liberdade.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Fake News e consciência: como produzimos (e acreditamos) em notícias falsas / Fake News and conscience: how we produce (and we believe) on false News / Noticias falsas y conciencia: cómo producimos (y creemos) en noticias falsas


Fake News e consciência são dois conceitos que não deveriam estar juntos numa mesma frase. Entretanto, os modos de produção das Fake News, bem como o jeito como elas são difundidas, assimiladas e cridas, têm muito a ver com o funcionamento da consciência. Um pouco disso pode ser percebido na canção de Ataulfo Alves, quando reclamou da atitude da amada, que era diferente da serviçal Amélia: “você não sabe o que é ter consciência”. Ele ainda guardava lembrança daquela mulher submissa com quem conviveu, ao ponto de acreditar que todas as mulheres deveriam ser assim.
O Facebook e o Instagram anunciaram em outubro que vão fazer a checagem do conteúdo para atribuir um rótulo de “informação falsa” nos posts e stories que contenham notícias mentirosas. Há dois problemas nisso: o primeiro é que Fake News não são meramente notícias mentirosas (a mentira nunca se mostra tão evidente); e a segunda é que a checagem de notícias é um serviço caro (e quem posta Fake News quer atingir algum ganho com isso). As medidas incluem a redução de acessos dos sites que propagam os conteúdos que forem rotulados.
O que tem sido chamado de Fake News? Inclui: notícias mentirosas, parciais, tendenciosas e até replicadas ou tiradas de um acontecimento antigo para se referir a um fato atual. Quem produz Fake News geralmente é quem está interessado em desviar a atenção, interferir nas escolhas e decisões das massas, induzir um determinado comportamento de consumo ou mesmo uma ideologia, destruir ou mesmo construir a imagem de algum ícone, celebridade ou personagem pública que precisa estar ou não em evidência num dado momento. Os motivos podem ser diversos. E aqueles que produzem Fake News atuam como think tanks, financiados por grandes corporações, grupos políticos e movimentos ideológicos cuja base pode estar num outro país. Ou seja, o combate à Fake News envolve uma estratégia de guerra internacional.
O anúncio de que um determinado conteúdo é falso ou mentiroso desperta ainda mais a curiosidade, visto que não estamos lidando apenas com a veiculação de informações, mas com os modos de produção de sentido e de interpretação. Entramos em uma área até então nebulosa da ciência: o que é a consciência e como ela trabalha. Apesar dos avanços da neurociência, os estudos da consciência ainda são uma grande incógnita que ocupa cientistas e filósofos. A consciência é considerada por muitos como o último limite do conhecimento a respeito da condição humana. Quando esse mistério for desvendado, novas possibilidades serão abertas para a Psicologia, para o tratamento de problemas Psiquiátricos e inclusive para a Inteligência Artificial.
A consciência é tanto uma forma de conhecimento de si, como também um processo de como nossa mente lida com experiências, emoções e informações que temos durante a vida toda. Tudo está gravado para ser usado nas várias situações e contextos que vivenciamos. Nesse processo, a consciência depende da memória, da linguagem e das emoções. Num procedimento rápido, nossa memória é capaz de encontrar respostas para cada situação no meio do que está guardado de alguma forma em algum canto de nossa mente. Pela consciência, desenvolvemos uma imagem de quem somos ao mesmo tempo em que produzimos sentidos e respostas para o que enfrentamos a fim de dar conta desse eu imaginado. O que não gostamos, deixamos escondido em algum lugar – nas sombras, como diria Jung –, mas que de algum modo insiste em aparecer.
Fake News é uma notícia que, embora seja falsa ou falseada, agrada essa consciência escondida, disfarçada que carregamos dentro de nós mesmos. A verdade sempre nos confronta diante daquilo que nos envergonha ou mesmo fere saberes que acumulamos ao longo de nossa história. É horrível descobrir que você foi enganado, que acreditou numa mentira ou que foi manipulado. É mais confortável continuar acreditando nas histórias que nos contaram do que assumir a insegurança de um fato novo que coloca em xeque nossas convicções, crenças e saberes.
Não, Fake News não é coisa inventada pelos tios nos grupos da família. Elas também não são notícias mentirosas simplesmente. Elas são um produto de nosso tempo. É bem verdade que Fake News sempre existiram. Mas o modo como elas acontecem hoje está ligado à própria complexidade da produção de conhecimento. Para que uma mentira ganhe fórum de verdade, não basta ser repetida várias vezes, como ensinava o nazista Goebbels. Isso é meme. Ela precisa ser produzida de tal modo que agrade à consciência de uma massa enganada e ferida.
Publicado originalmente no site do Coletivo Bereia. Disponível em: https://coletivobereia.com.br/fake-news-e-consciencia-como-produzimos-e-acreditamos-em-noticias-falsas/

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Teologia e Cultura: Aproximações e distanciamentos / Theology and Culture: Approximations and Distances / Teología y cultura: aproximaciones y distancias


Uma das tarefas do fazer teológico é pensar a Teologia em sua relação com a cultura. A cultura é um sistema de significados e, como tal, é próprio de nossa condição humana. É a cultura que faz da pessoa um ser humano. A partir da cultura, a vida em sociedade se organiza e se percebe a realidade vivenciada. Isso de dá pelo fato e a cultura se realizar através das representações e das ações das pessoas em um grupo social. O ser humano é o grande ator da cultura.
A cultura se expressa na história e em meio às vivências sociais. As ações humanas são histórica e socialmente orientadas, por isso é que as práticas das comunidades humanas ao longo do tempo deixam seus vestígios. Como um movimento que questiona valores e comportamentos vigentes na cultura, o cristianismo possui um vínculo histórico e cultural de modo a propor novas possibilidades de relações humanas.
Nesse sentido, o cristianismo se expressa como contracultura, e não contra a cultura, a favor da cultura ou mesmo acultural. E, por ser uma contracultura, o cristianismo contesta os valores que se opõe ou se distinguem do fenômeno cultural, como o individualismo, o consumismo, o materialismo e a falta de pensamento crítico.
Dessa forma, a Teologia compreende as manifestações culturais, especialmente a arte, como expressões do cuidado de Deus com a humanidade. Um dos aspectos relevantes da relação entre Teologia e cultura é que ela contribui para a formação de um compromisso de expressar a fé no contexto de uma cultura, nunca fora dela.
A discussão sobre Teologia e cultura requer domínio de alguns conceitos fundamentais. Um deles é o de secularização, que envolve o esvaziamento do sagrado, sobretudo na cultura ocidental e Moderna. Outro conceito é o da globalização como um processo de integração cultural que foi acentuado a partir da Revolução Industrial e ganhou novos contornos com a era da informática. E tem ainda o conceito de enculturação, que trata da influência recíproca entre fé e cultura.
Via de regra, a Teologia lida com duas constatações sobre a relação com a cultura. O primeiro é o de que Deus está no controle da história. Não se trata de uma noção meramente determinista, mas parte da compreensão de que os propósitos divinos se realizam na história. Parte da ideia de que nem sempre aquilo que parece negativo aos nossos olhos é ruim aos olhos de Deus, pelo fato de que ele pode usar nossas situações adversas para cumprir seus propósitos. Outra constatação é que a cultura secularizada é oposta aos propósitos divinos. A fé está sempre em confronto com a cultura dominante e muitas vezes pode ser encarada como uma ameaça.
A teologia envolve dois elementos estruturantes: o texto bíblico, representativo de uma cultura, e o contexto cultural, representativo da cultura dos leitores. De um modo geral, a teologia lida com o fato de que a Bíblia tem um valor supracultural e atemporal. Isso quer dizer que os princípios e valores que orientam a condição humana em cada cultura apontam para a necessidade de uma relação com o transcendente, e isso interfere na interpretação dos textos sagrados em um dado momento.
Chamamos de supracultura as disposições culturais que transcendem à própria cultura, visto que esta reflete a situação de tensão da ambiguidade humana em meio às situações vividas, na medida em que cada um procura construir caminhos para estabelecer relações com o sagrado. Do ponto de vista teológico, a cultura é uma representação de nossa interioridade: nossas angústias, nossas esperanças, nossos temores e nossos desejos. É da natureza humana ter uma abertura para o que está além de si mesmo. Neste anseio pelo eterno e pelo inefável, o homem se dá conta de sua finitude e de sua condição limitada ao expressar suas histórias, seus rituais, seus relacionamentos, suas tecnologias e suas crenças.
Por essa razão, a humanidade procura eternizar sua cultura – a partir das relações comunitárias – para encontrar algum fator que lhe dê segurança diante de suas dúvidas, diante do mal, diante da dor e diante da morte. Quando a Teologia aborda o conceito de cultura, ela nos ajuda a encontrar maneiras de atribuir sentido para a vida, de buscar caminhos para o resgate do que há de humano em nós e de construir um caminho para restaurar a relação perdida com Deus e consigo mesmo.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Exercícios espirituais e espiritualidade cristã / Spiritual Exercises and Christian Spirituality / Ejercicios Espirituales y Espiritualidad Cristiana


A espiritualidade não é uma palavra encontrada nas Escrituras. Ela também não começa no cristianismo. E também não está ligada à história bíblica ou judaico-cristã. A espiritualidade é anterior ao cristianismo, está presente em civilizações que existiram cerca de três mil anos antes de Cristo e que desenvolveram práticas de meditação e de vida contemplativa. Entretanto, foram os gregos antigos que desenvolveram um conjunto de práticas e exercícios voltados para um determinado modo de pensar a vida e de viver a partir de valores e princípios considerados elevados, ligados ao espírito, que pode ser chamado de espiritualidade.
A ideia de uma espiritualidade cristã foi adquirida a partir da aproximação do pensamento cristão com a Filosofia Ocidental e o pensamento ocidental, sobretudo em relação aos ensinos platônicos do cuidado de si. Sócrates foi o primeiro pensador a propor exercícios para adestrar o sujeito a ter uma vida digna de ser contemplada e imitada. Seus ensinos foram aprofundados por pensadores como Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio, todos os estoicos e até os neoplatônicos como Plotino. Esses primeiros filósofos entenderam a filosofia como uma maneira de viver, como uma arte de viver, como uma askesis, Palavra grega que quer dizer “exercício”.
Essa tese é levantada pelo filósofo francês Pierre Hadot, em seu livro Exercícios espirituais e Filosofia Antiga. Para Hadot, as correntes de pensamento dos primeiros filósofos estavam a serviço de um modo de vida orientado pela Filosofia, que visava transformar o sujeito e oferecer-lhe princípios para sua conduta no mundo. Ele não emprega a ideia de “exercícios espirituais” como práticas religiosas, nem mesmo como exercícios intelectuais ou morais, mas como exercícios do pensamento. Ele afirma que a Filosofia Antiga é um “exercício espiritual porque ela é um modo de vida, uma escolha de vida”. Mais adiante ele resume que é “uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser”. Hadot questiona a respeito do momento em que a Filosofia deixou de ser tratada como modo de vida, e passou a ser teórica e abstrata tal como a conhecemos hoje. Entretanto, reconhece que o cristianismo se apresentou como uma filosofia completa, visto que assimilou a tradição greco-romana dos exercícios espirituais como modo de vida.
Podemos falar de uma tradição dos exercícios espirituais como uma construção do cristianismo somente a partir do século II. Os primeiros exercícios espirituais cristãos foram desenvolvidos por Orígenes, posteriormente pelos monges cenobitas e os padres do deserto, conhecidos como anacoretas. A tradição dos exercícios espirituais cristãos, também chamada de ascese ou ascetismo, está ligada à história da experiência mística como uma orientação da relação com o sagrado, o divino ou o transcendente. A mística é um campo de estudos teológicos importante, desenvolvida, sobretudo, a partir dos textos atribuídos a Dionísio Areopagita, no século VI, com sua teologia apofática, oposta a uma teologia dogmática e propositiva.
Já no século XVI, Inácio de Loyola trouxe a tradição dos exercícios espirituais para dentro da esfera religiosa. Para ele, os exercícios espirituais consistem em um “modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal e mentalmente e outras atividades espirituais. [...] Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais também se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposição de sua vida para o bem da mesma pessoa” (em seu livro Exercícios espirituais).
Os exercícios espirituais inacianos são, na verdade, um processo que visa conduzir seus praticantes a uma experiência de libertação dos sentimentos desornados em relação à vontade de Deus, cujo objetivo é desenvolver o discernimento. O que se pretende é promover uma conversão do sujeito para uma vida de união com Cristo bem como a imersão na prática da missão cristã no mundo. Sempre que se fala de exercícios espirituais e de espiritualidade cristã, a proposta inaciana é lembrada como referência. O problema é que ela é uma resposta da contrarreforma católica, em oposição à Reforma Protestante e, por essa razão, pouco considerada nos meios do protestantismo.
A espiritualidade cristã que emerge dos evangelhos, no entanto, possui algumas características que diferem da tradição ocidental. Jesus chama seus discípulos para uma vida guiada pelo Espírito Santo, como um parákleto, alguém que se coloca ao lado como guia e defensor. Espiritualidade cristã é essencialmente vida no e pelo Espírito, vivida no contexto comunitário, inserida na realidade do mundo. Os evangelhos apontam algumas marcas dessa espiritualidade: a comunhão simbolizada pela eucaristia, o testemunho de vida transformada, o serviço em amor ao próximo, o compromisso pelo batismo, a missão de sinalizar o Reino de Deus no mundo, a oração e o exame das Escrituras.
Nós não encontramos nos evangelhos a necessidade de uma prática religiosa, de atividades devocionais e nem de um chamado à vida ascética. A espiritualidade cristã que pode ser percebida nos evangelhos aponta para um modo de viver – ou uma arte de viver – centrada em uma relação com a pessoa de Jesus e orientada pelos seus ensinos. Vida que remete à participação comunitária, ao cuidado com o outro, à atenção aos mais fragilizados e a uma prática de desprendimento em relação aos valores materiais. A espiritualidade cristã está ligada a uma ética e a uma práxis que visa transformar a vida do sujeito de forma integral.
Resgatar a espiritualidade contida nos evangelhos é fazer o caminho de volta a um tipo de cristianismo anterior ao surgimento do que ficou marcado como cristandade. Precisamos desenvolver uma espiritualidade na contemporaneidade, como um exercício de sabedoria, a partir de uma releitura dos evangelhos, tendo em vista a conquista de uma consciência de nossa humanidade como sujeitos ativos no mundo, que oriente nossa ação responsável diante das dores e alegrias no mundo neste tempo.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

América Latina, decolonialidade e religião: provocações a partir da crise na Bolívia / Latin America, decoloniality and religion: provocations from the crisis in Bolivia / América Latina, descolonialidad y religión: provocaciones de la crisis en Bolivia


A América Latina passa por um retrocesso no cenário político. Depois de um breve período de ascensão social e econômica, alavancado pelo acesso de segmentos progressistas ao governo de alguns países, assistimos ao avanço das forças tidas como conservadoras retomando espaços que sempre foram dominados por uma oligarquia reacionária e patrimonialista.
Veja um brevíssimo retrospecto: assistimos a um golpe de Estado em 2009-2010 em Honduras, no Paraguai em 2012 e no Brasil em 2016. Em todos esses atos, havia uma questão de fundo – a atenção para com os direitos sociais – e uma estratégia – o uso do aparato militar em alguns casos de forma clara e, no caso do Brasil, de forma branda. Nesse meio tempo, as forças representativas da direita venceram no Chile, Argentina e Colômbia. O Peru tem passado por um complexo processo de afirmação política. Já neste ano de 2019, assistimos às tentativas de levantes de direita na Venezuela. Porém, os protestos populares no Equador e no Chile e a vitória da esquerda nas eleições argentinas e uruguaia (ainda que no primeiro turno) acenderam o alerta conservador. A tentativa de golpe na Bolívia é um sintoma disso.
Embora o quadro seja preocupante, não podemos nos esquecer de que a realidade latino-americana segue uma trajetória que se repete. A história da América Latina é marcada pela luta constante entre uma oligarquia branca, colonizadora, e forças políticas representativas dos trabalhadores, dos povos originários, de quilombolas e de quem sempre foi tratado como minoria. Os regimes ditatoriais que aconteceram desde a década de 1960 são a prova disso.
Nos últimos levantes populares no Equador e no Chile, bem como no golpe de Estado em curso na Bolívia, pode se notar a face explícita de um fascismo presente. A história se repete como farsa. Oligarquias se valem do fascismo, do fundamentalismo religioso e do neoliberalismo para exercerem o poder como sempre fizeram. Tempos difíceis se aproximam, de muita luta por parte dos oprimidos. O que as forças políticas conservadoras não contam, porém, é que existe uma grande massa de pobres e miseráveis que não suportam mais a opressão.
Retomando uma afirmação de Boaventura de Souza Santos, em Epistemologias do sul, a América Latina é resultado de um processo de formação marcado por três grandes influências: o colonialismo, o patriarcado e o capitalismo. Porém, precisamos acrescentar mais um elemento nesse processo, que é a presença marcante da religião calcada na concepção sacrificial e punitiva, que exige vítimas para satisfazer as necessidades do poder. As elites sempre se valeram da religião para fortalecer as estruturas de dominação, e, nesses episódios mais recentes, para dar lugar a uma mentalidade fascista e neoliberal.
O colonialismo foi superado historicamente, mas as estruturas da colonialidade ainda resistem. O patriarcalismo reproduz o discurso dominante da supremacia branca. O capitalismo procura dar conta de uma agenda neoliberal, que retira direitos sociais e favorece o capital financeiro internacional, e não mais o capital produtivo. E tudo isso debaixo dos olhares consensuais da religião. Primeiramente com a bênção do clero católico romano, ultimamente com o apoio do fundamentalismo religioso tanto evangélico quanto carismático.
Quando o fascismo se aproveita da religião para dominar, aumenta sua força destruidora de forma avassaladora. Quando o neoliberalismo faz uso da religião, se torna o mais pernicioso e iníquo sistema econômico que já existiu. É a nova face do estado exceção que estabelece uma forma de dominação que produz mais desigualdade e injustiças sociais, que põe as instituições democráticas sob risco constante e despreza as conquistas do Estado Democrático de Direito. Resistiremos.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Uma Teologia a partir das vítimas: análise da poética de Augusto dos Anjos / A Theology from the Victims: Analysis of Augusto dos Anjos' Poetics / Una teología de las víctimas: análisis de la poética de Augusto dos Anjos


A discussão sobre a relação entre teologia e literatura traz consigo duas questões orientadoras. A primeira é a respeito de se a teologia é uma forma de produção literária. A segunda é se a literatura é um lugar para o olhar teológico. Essas duas questões se justificam na medida em que teologia e literatura lidam com o imaginário e as representações simbólicas de nossa relação com o mundo, com o outro e com o sagrado. Essa relação desperta a necessidade de se narrar a experiência e de que ambas sejam expressas por meio da linguagem com todas as implicações que isso envolve.
Por essa razão, não há um único modo de tratar dessa relação. Ela é por si mesmo plural, pois envolve o humano e suas muitas formas de expressar sua existência. A teologia se dirige ao humano para falar de Deus por meio de metáforas assim como a literatura busca dar sentido ao humano como ser no mundo. Cada uma, a seu modo, contribui para a construção de uma imagem do humano como ser no mundo que permite o diálogo com outras formas de conhecimento.
O papel da teologia e da literatura não é o de transmitir a mensagem verdade eterna e imutável, mas o de conduzir o homem a uma reflexão crítica de si, um olhar inquietante a respeito dos conflitos e contradições que envolvem as relações humanas. Elas convidam a uma atitude que vai além daquilo que pode ser racionalizado ou explicado por meio de uma relação causal e que remete a um dizer que não seja objetivante.
A teologia hoje se depara com a exigência de dar conta da vida e da existência humana diante de dois fenômenos já identificados por teólogos da contemporaneidade. O primeiro é o da realidade da fragmentação da teologia, conforme disse Karl Rahner (2008), que resulta em sua obsolescência como pressuposto para fé. O segundo é a noção de cristianismo arreligioso, proposto por Dietrich Bonhoeffer, que conduz a uma mudança de atitude da teologia diante do mundo plural que emergiu no contexto da pós-modernidade.
A literatura, especialmente a poesia, tem em si a capacidade de atualizar, por meio da linguagem, a experiência de produção de sentido. Por isso mesmo, a literatura provoca um constante questionamento entre as formas literárias e as possibilidades de leitura da realidade. O espaço poético se torna um lugar de convergência entre a experiência de presença no mundo e uma abertura para o que está além, para o transcendente.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, nasceu no Engenho Pau d’Arco, no município de Sapé, Estado da Paraíba, em 20 de abril de 1884. Escreveu poesias desde a infância, bacharelou-se em Direito e veio morar no Rio de Janeiro depois de enfrentar problemas com a oligarquia paraibana. Em 1912, publicou seu único livro de poemas, Eu. Morreu no dia 12 de novembro de 1914, em Leopoldina (MG).
“Versos íntimos” é um soneto, com versos decassílabos. A partir da sua leitura, é possível encontrar os dilemas vividos em um tempo de transformações e a crítica à realidade social e histórica do país. O texto é marcado por uma percepção da ambiguidade e da fragilidade humanas diante das contradições e tudo aquilo que transcende à própria condição humana.
Uma poesia que retrata o pessimismo do autor e a decepção diante da condição humana. Crítica ao parnasianismo. Embora esteja inserida na arte poética do Simbolismo, alguns veem sua poesia como antissimbolista. Já se vê na arte poética de Augusto dos Anjos traços do que será a poesia modernista brasileira.
Nela, encontramos questionamentos que despertam a necessidade de um olhar teológico.
Quem se importa com o sofrimento humano? Algum sentimento de angústia tomou conta do poeta.
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável! (ANJOS, 1971, p. 146).
O que esperar de pessoas que vivem em meio à falta de compaixão? O poeta é tomado de um desprezo para com quem ele se relaciona.
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera. (ANJOS, 1971, p. 146).
Qual consequência da falta de solidariedade? A angústia do poeta só o remete à reclusão.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja. (ANJOS, 1971, p. 146).
O que fazer diante da trágica condição humana? O poeta apela para uma autopunição como único consolo para si.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija! (ANJOS, 1971, p. 146).
O modo como Augusto dos Anjos se expressa encontra reflexo na narrativa bíblica de Eclesiastes. “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade (Eclesiastes 1.2, na versão Revista e Corrigida de Almeida). A maneira como o livro bíblico do Eclesiastes se inicia descreve bem o momento em que vivemos. A vaidade tem a ver com o grande vazio que se tornou a vida. Tem a ver com aquilo que fazemos para fugir da verdade sobre nós mesmos, daquilo que fazemos para não encararmos a nossa realidade. Numa outra versão da Bíblia, “tudo é uma grande inutilidade [...] nada faz sentido”. Fazendo um paralelo com a teologia de Eclesiastes, a poesia augustiana propõe um retorno a si, como uma reclusão, uma escuta de si, diante das amarguras da desumanidade.
Gilles Lipovetsky chamou nosso tempo de “era do vazio”, que dá título a um de seus livros em que analisa o fenômeno social da pós-modernidade. Vivemos num tempo marcado pelo enfraquecimento da sociedade e dos costumes, que carece de novas formas de afirmação de sua individualidade. Uma sociedade que se baseia no excesso de informação e no estímulo à satisfação das nossas necessidades mais emergentes, no direito a ser eu mesmo, sem imposição de regras sociais. A lógica do vazio está no isolamento do ser social e na valorização do individual. Quando falamos, portanto, de vaidade, estamos nos referindo a esse vazio, em que a vida é como um nada.
O próprio autor do Eclesiastes desejava descobrir o que todos nós queremos saber: o que faz a vida ter sentido? Ele disse: “[...] Eu queria saber o que vale a pena, debaixo do céu, nos poucos dias da vida humana.” (Eclesiastes 2.3) Ele procurou a felicidade e o sentido da vida no dinheiro, no poder, na fama e no sexo, mas não encontrou o que procurava. Depois de relatar uma trajetória de conquistas e de busca de prazer, ele conclui: “Contudo, quando avaliei tudo o que as minhas mãos haviam feito e o trabalho que tanto me esforçava para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há nenhum proveito no que se faz debaixo do sol.” (Eclesiastes 2.11).

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Bem Viver e Decolonialidade: uma abordagem a partir dos discursos de Jesus / Living Well and Decoloniality: An Approach from Jesus' Discourses / Buen Vivir y decolonialidad: una aproximación desde los discursos de Jesús


A cultura ocidental vivencia uma crise profunda que coloca em questão os valores relativos à vida e ao próprio modelo civilizatório que vem sendo adotado, sobretudo a partir da Modernidade. A humanidade chegou a um ponto em que a desigualdade social, a ascensão de formas autoritárias de poder e o aquecimento global colocam em xeque o padrão desenvolvimentista e consumista que vem sendo praticado pelas sociedades atualmente.
É nesse sentido que emerge uma cosmovisão que se baseia na mentalidade dos povos originários no contexto latino-americano, voltada para um novo paradigma que pode nos ajudar a superar os problemas que temos enfrentado. Trata-se do Bem Viver como princípio organizador das relações com a natureza, abrangendo aspectos sociais, econômicos, políticos e espirituais.
O Bem Viver tem a ver com a experiência das comunidades e povos indígenas na América Latina, com um conjunto de elementos que podem nos inspirar a repensar valores e práticas da cultura contemporânea. O trabalho de resgate dessa forma de pensar tem mobilizado antropólogos, cientistas sociais e políticos bem como teólogos para apontar para a humanidade uma nova utopia no sentido de se construir uma sociedade mais solidária e sustentável.
O Bem Viver vivenciado pelas culturas indígenas difere dos ensinamentos éticos do Ocidente, como a busca pela vida boa, do bem-estar e da felicidade. Ele se opõe à exploração e à dominação. Por isso, deve ser reinterpretado para se tornar um projeto de vida concreto, capaz de revolucionar nossas maneiras de pensar, nossas formas de interagir com a natureza e nossas relações humanas.
Assim como não podemos falar de uma única experiência cultural dos povos originários da América Latina, também não é possível compreender o Bem Viver a partir de um único viés. Precisamos falar de varias formas de Bem Viver, que podem ser percebidas através das várias linguagens desses mesmos povos. Sendo assim, podemos falar de um tratamento da vida em sua plenitude, de um modo de conviver com a natureza e as pessoas, de contentamento e até de um jeito de se relacionar que leva em consideração a temporalidade, a alteridade e a relação com a natureza.
De um modo geral, o Bem Viver procura superar a dicotomia homem-natureza trazida pelos colonizadores europeus. De acordo com essa mentalidade, a América Latina deveria servir como fornecedora de recursos naturais e de mão de obra para dar conta do padrão de vida das nações que se consideravam desenvolvidas. Entretanto, esse modelo tem se mostrado insuficiente e superado, sobretudo a partir da década de 1980, que coincide com o neoliberalismo que se levantou na economia, ao mesmo tempo em que a natureza começou a dar sinais de esgotamento de seus recursos renováveis.
O Bem Viver, então, se apresenta como um pensamento em construção, que procura resgatar os saberes dos povos originários, sobretudo das comunidades andinas, acompanhado por uma reflexão acadêmica a respeito dos movimentos sociais e da necessidade de implementação de políticas públicas voltadas para a superação dos graves problemas decorrentes da economia exploratória e de mercado. Uma das marcas desse processo de construção foi a inserção do Bem Viver nas leis fundamentais do Equador e da Bolívia, assim como o surgimento de várias experiências de aplicação das práticas em comunidades em várias partes do continente.
O Bem Viver, portanto, é um conceito plural que precisa ser analisado a partir da interação com outros saberes voltados para o cuidado com a natureza, à crítica ao modelo socioeconômico que orienta o consumo e a uma reelaboração do modo de pensar a vida e o bem-estar nos dias atuais. O Bem Viver é, por assim dizer, uma forma decolonial de pensar, ou seja, se se desvencilhar da influência da mentalidade colonizadora e construir respostas a partir de sua própria experiência cultural. É uma forma de pensar em aberto, o que torna possível inclusive dialogar com outros saberes tradicionais e buscar respostas que emanam da experiência de povos marginalizados e explorados em outras partes do mundo. Segundo a particularidade de cada povo, emergem conceitos que se complementam e apontam caminhos para o diálogo.
Uma das possibilidades de diálogo é com a Teologia. Os povos originários da América Latina foram influenciados por uma visão cristã dualista, que opõe corpo e alma, céu e inferno, mundo e espiritualidade. A aproximação da teologia com a ideia do Bem Viver passa pelo resgate da relação entre o homem e a natureza como uma unidade integradora, na medida em que ambos estão interligados e são coexistentes.
Para dialogar com as formas do Bem Viver, uma das possibilidades é fazer uma releitura dos discursos de Jesus a respeito do sentido da vida e dos valores imprescindíveis para uma vida digna no mundo. Jesus não se preocupou apenas com uma vida no porvir, mas com a vivência de forma plena já aqui nesse tempo presente. Ele ensinou princípios de vida, deixou mandamentos, fez advertências e recomendou práticas para que as pessoas pudessem viver bem umas com as outras e também experimentassem uma vida de realizações no mundo.
A aproximação dos ensinos de Jesus com o Bem Viver nos ajuda a perceber que a mensagem do evangelho é para toda criatura, que se atualiza e se insere no contexto das culturas para promover o resgate do que há de mais humano.

domingo, 1 de setembro de 2019

A teia da vida: a biodiversidade como bênção divina / The web of life: biodiversity as a divine blessing / La red de la vida: la biodiversidad como una bendición divina


Todos nós fazemos parte de uma teia de vida, maravilhosamente complexa e única, que foi criada pelas mãos de Deus. Essa é a ideia que tem mobilizado cristãos para interceder por um mundo mais sustentável e justo, onde todos possam viver de modo digno e ainda venhamos garantir às gerações futuras as mesmas condições de existência que hoje temos.
Vivemos hoje uma realidade desconcertante: a crise ambiental que coloca em risco a vida no planeta e que tem como causa principal a ação do próprio homem. Essa crise tem cinco sintomas: (1) a biodiversidade vem sendo reduzida; (2) os ecossistemas vêm sendo destruídos; (3) os recursos naturais renováveis estão sendo esgotados; (4) a poluição tem aumentado; e (5) há um maior risco de desastres ambientais provocados pela ação do homem. Essa crise é resultado de uma desarticulação entre os processos cíclicos da vida na natureza e as técnicas de extração, transformação e emprego dos recursos que ela oferece. E a causa é clara: é preciso dar conta da demanda de consumo de uma sociedade cada vez mais exigente em termos de bem-estar, segurança e padrões de beleza e saúde.
Dentre as consequências da crise que vêm sendo apontadas por vários estudiosos da questão ambiental, duas são alarmantes. A primeira é que o planeta não dispõe de recursos naturais suficientes para atender à necessidade de todas as pessoas, conforme o hábito de consumo que a sociedade industrial e do capital desenvolveu. Se as pessoas mais pobres consumirem o mesmo que os mais ricos, serão necessários pelo menos mais dois planetas como o nosso. O segundo é que a vida humana na Terra está em risco de extinção, por conta do aquecimento global, que já se pode ser sentido com os vários efeitos de desequilíbrio nas geleiras e camadas polares, nos cumes das cordilheiras, nos grandes biomas como a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga e Mata Atlântica, entre outros no nosso país e também no mundo.
Diante desse quadro de crise, surge a necessidade de se pensar a vida a partir de paradigmas distintos daqueles que levaram a humanidade ao caos ecológico que nos deparamos. O teólogo brasileiro Leonardo Boff, em seu livro Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, entende que é preciso compreender a Terra como um organismo dinâmico e complexo, que possui identidade e harmonia. Para isso, surge a necessidade de se formar um novo paradigma, que supere a lógica da razão instrumental, e se valorize mais uma razão simbólica e cordial, que envolve todos os nossos sentidos e sentimentos, que aponta para uma atitude de encantamento e que desperte a gratidão por ser parte de uma totalidade de vida.
Esse cuidado com a vida remete a um conjunto integrado de ações, que deve envolver uma dimensão científica que seja capaz de compreender o impacto da ação humana sobre o meio ambiente, uma dimensão política que estabeleça políticas públicas e princípios de governança vinculados a compromissos globais, uma dimensão ética que seja capaz de questionar nossas ações humanas diante das condições de vida no planeta e o enfrentamento responsável dessa crise, e uma dimensão de espiritualidade que aponte para a fé e a esperança de que seremos capazes de juntar esforços para cuidarmos de nossa casa comum e de superarmos os grandes obstáculos que estão no meio do caminho.
Em meio a uma diversidade de formas de vida, há também uma diversidade de culturas que nos ajuda a compreender a humanidade como uma família que convive numa mesma comunidade cósmica enfrentando os mesmos desafios e caminhando para um destino comum. Tudo isso precisa ser amado e cuidado a fim de que seja possível florescer a vida em sua plenitude em todos os seus aspectos. Uma das formas de se fazer isso é resgatar o sentido bíblico da criação, na metáfora do cuidado com o jardim já presente no Gênesis.
A crise ambiental destrói a diversidade das condições de vida na Terra. A perda da biodiversidade está vinculada também às condições de pobreza, visto que são os pobres e migrantes que mais sentem os efeitos da ruína dos sistemas naturais que sustentam a vida. Para estancarmos essa tragédia, precisamos dar um sim à vida. Isso implica compreendermos que toda a forma de vida assim como todo modo como ela se manifesta é criação divina. Deus ama a diversidade, por isso criou a natureza desse modo. Temos uma dupla tarefa no cuidado com a vida: devemos respeitar a diversidade como também temos a responsabilidade de preservá-la. E pessoas que afirmam amarem a Deus devem demonstrar o seu amor pela sua criação. Uma espiritualidade que cuida da criação começa por compreender a natureza e culmina em colocar-se a serviço da vida em sua diversidade como o mundo criado e amado por Deus.
A Bíblia começa dizendo que Deus reconheceu que tudo na criação foi “muito bom”. Cada espécie foi cuidadosamente criada e reflete aspectos do cuidado divino com a vida. Quando uma pequena criatura, por menor que seja, é extinta, desaparece também a chance de contemplarmos a riqueza do amor de Deus por sua criação. Cristãos de um modo geral têm o dever moral de dar uma resposta a essa crise ambiental, como expressão de justiça e de zelo pela dignidade da vida em toda sua complexidade e especificidade, como parte da missão.

domingo, 25 de agosto de 2019

O Espírito da Evangelização/ The Spirit of Evangelization / El espíritu de la evangelización


A evangelização é uma característica básica e essencial da ação pastoral cristã. O verbo “evangelizar” designa o ato de anunciar a boa notícia a respeito da mensagem e vida de Jesus. Aquele que prega o evangelho é chamado de “evangelista”. A própria palavra evangelho vem de uma expressão grega que quer dizer “boa notícia”. Ela foi usada pelo primeiro evangelista, Marcos, para designar o conjunto de relatos a respeito de Jesus Cristo.
O sentido bíblico da evangelização é anunciar a boa notícia de que Deus ama a toda criação com a voz e com a vida. Essa relação entre palavra e ação é que consiste na essência da evangelização. Teólogos ligados à área de missão concordam em afirmar que a evangelização se dá através do diálogo e da comunicação, visto que ambas as atividades estão interligadas. Uma está presente na outra. Não há comunicação possível onde não há diálogo, assim como não há diálogo quando não há algo relevante para se comunicar.
A mensagem de salvação trazida pelo evangelho é sempre nova para um mundo que se perdeu de si mesmo. Ao longo da história humana, as várias tentativas de encontrar solução para os dilemas vividos pela humanidade resultaram em fracassos. Podemos dizer que nenhuma corrente de pensamento, teoria ou mesmo religião encontrou uma resposta para o conflito humano. A boa notícia é que o cristianismo remete à relação com uma pessoa, que assumiu plenamente o humano em sua vida e ensino, e que essa relação produz salvação, libertação e vida. A boa notícia é um convite amoroso para seguir Jesus Cristo como caminho, verdade e vida.
Evangelizar é uma ação para a qual o Espírito Santo capacita a todo que é alcançado pela graça. Todo cristão é, por natureza, um evangelista. Não é uma chamada especial, como uma vocação, mas um jeito de viver o evangelho de tal modo que a própria maneira como realizamos o diálogo com o mundo e nos aproximamos das pessoas para servi-los já é anúncio do evangelho.
Jesus delegou a obra da evangelização aos seus discípulos como uma tarefa urgente. Em Mateus 24.14, Jesus diz que a pregação do evangelho a todas as pessoas é um prenúncio do fim: “E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações, e então virá o fim”. E em João 9.14, ele diz para aproveitarmos a ocasião para trabalhar pelo evangelho: “Enquanto é dia, precisamos realizar a obra daquele que me enviou. A noite se aproxima, quando ninguém pode trabalhar”. Durante seu ministério, Jesus capacitou, comissionou e enviou seus discípulos para pregar o evangelho.
O apóstolo Paulo, por sua vez, apresenta a tarefa da evangelização sob três aspectos: (1) evangelizar é um propósito: “Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão-somente puder terminar a corrida e completar o ministério que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do evangelho da graça de Deus” (Atos 20:24); (2) evangelizar é uma obrigação “Contudo, quando prego o evangelho, não posso me orgulhar, pois me é imposta a necessidade de pregar. Ai de mim se não pregar o evangelho!” (1 Coríntios 9.16); (3) e também é uma necessidade: “Mas, que importa? O importante é que de qualquer forma, seja por motivos falsos ou verdadeiros, Cristo está sendo pregado, e por isso me alegro. De fato, continuarei a alegrar-me” (Filipenses 1.18). Para essa tarefa, todo tempo é oportuno: “Pregue a palavra, esteja preparado a tempo e fora de tempo [...]” (2 Timóteo 4.2).
Trilhar o caminho da fé é, acima de tudo, ser um anúncio vivo do que Jesus Cristo realiza. Quando os discípulos de Francisco de Assis perguntavam-lhe sobre como seria a obra da evangelização, ele dizia: “pregue o evangelho, se necessário use palavras”. Nada fala tão alto a respeito da mensagem de Jesus do que a própria conduta daquele que afirma que crê e o segue. Crer em Jesus é abrir-se para um Outro, que nos interpela e nos remete de volta para o outro a quem devemos amar e servir.
As condições de vida no mundo nunca foram favoráveis à evangelização. A história da igreja é marcada pela perseguição quer seja de ordem policial, política ou ideológica. O cristianismo subsistiu diante dos cenários históricos dos mais hostis em todo o mundo. Por essa razão, sempre será um grave equívoco defender determinada bandeiras políticas, morais ou ideológicas. O cristão deve sempre ser portador da boa nova de salvação, um anunciador da justiça, da paz e da alegria que encontramos em Jesus Cristo.
É preciso ressaltar ainda que evangelizar não é alcançar adeptos, falar de uma doutrina, implantar uma ordem moral ou defender a religião. Evangelizar é dizer ao mundo com a voz e com a vida que há esperança para a humanidade perdida. É resultado de uma experiência de amor à vida, da alegria de fazer parte da família de Deus, de desenvolver uma espiritualidade engajada com as dores do mundo e uma disposição de assumir o lugar de intercessor daqueles que sofrem.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Amazônia em chamas: um desastre em nossa casa comum / Amazon Burns: A Disaster in Our Common Home / Arde la Amazonia: un desastre en nuestro hogar común:


O mundo encontra-se perplexo diante do aumento dos incêndios na Amazônia. Só no Brasil, o aumento foi de 82% em relação ao mesmo período do ano anterior, que é conhecido como um tempo em que as queimadas são comuns. O que surpreende desta vez é que o aumento dos incêndios é resultado de uma política equivocada de controle do desmatamento, com incentivo à exploração e a falta de respeito aos povos amazônicos. Enquanto a Amazônia arde, o mundo grita por socorro. O Grupo Fé e Política: Reflexões emitiu Nota em Defesa da Amazônia, somando-se às muitas vozes que se pronunciam nesse sentido. Eis a nota:
Nota em Defesa da Amazônia
"As nações se iraram; e chegou a tua ira. Chegou o tempo de julgares [...] e de destruir os que destroem a terra" (Apocalipse 11.18)
Manifestamos nosso profundo pesar e preocupação com os recentes acontecimentos relativos às dezenas de focos de incêndio que destroem parte da floresta amazônica, sobretudo em território brasileiro. Essa tragédia que afeta a maior biodiversidade do planeta prejudica comunidades locais, povos indígenas, espécies de plantas e animais, cultura e economia local, mas acima de tudo representa um grave risco para o equilíbrio ambiental global e coloca em risco toda forma de vida.
Compreendemos que a responsabilidade é de todos, quer sejam autoridades locais, regionais, nacionais e mundiais, lideranças religiosas, judiciais, educacionais, civis e militares, quer sejam cidadãos comuns. Entretanto, não podemos deixar de registrar que o quadro geral se agrava em função das atuais políticas brasileiras de cuidado com o meio ambiente e das atitudes do governo que enfraquecem as organizações ambientalistas diante do poder do capital. Diante de um governo que não assume suas responsabilidades e transfere competências, os danos são irreversíveis de uma política de extermínio da vida em todos os aspectos.
“Por causa disso a terra pranteia, e todos os seus habitantes desfalecem; os animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar estão morrendo” (Oseias 4.3).
A questão não se trata mais de um problema social ou político, mas de definição do futuro e destino da vida humana. Estamos diante de um fenômeno que traz à luz o valor da vida, em que nos inserimos numa mesma realidade para a qual necessitamos de todos os recursos que a natureza dispõe para existirmos. É urgente que as autoridades, tanto dos países que formam a Amazônia Legal quanto da ONU e da comunidade internacional, se mobilizem para a preservação da Amazônia e assumam posições efetivas pelo fim do desmatamento, pelo respeito aos povos locais e pela proteção da biodiversidade.
Por essa razão, unimos nossas vozes às vozes de todos que, independente de suas convicções, se filiam a um ideal de lutar pela existência e assumem o compromisso de ser a comunidade daqueles que amam a natureza porque amam a Deus que a criou. A Amazônia é um patrimônio humano que precisa ser cuidado em toda a sua extensão cultural, civilizatória e biológica. Declaramos a nossa fé, como diz as Escrituras, “de que a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Romanos 8.21).
Agosto de 2019.
Grupo Fé e Política: Reflexões
Foto: El País, edição digital de 22/8/2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/21/album/1566384483_259997.html?id_externo_rsoc=TW_CC

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Fidelidade / Faithfulness / Fidelidad


O tema da fidelidade faz falta nesses tempos líquidos. A fidelidade é a qualidade daquele que é fiel. E pessoas fiéis a seus princípios, valores e planos são raras atualmente. A palavra tem origem no latim fides, que poderia significar tanto algo que é digno de confiança quanto a adesão de alguém a um princípio religioso ou a uma crença. Trata-se da virtude necessária para desenvolver relacionamentos, mas também para caracterizar uma conduta que dá sustentação para realizar negócios e até para construir planos futuros.
Muitos confundem com lealdade, com bom caráter e até com um modo religioso de ser. Porém, fidelidade é mais do que é isso. Para o filósofo Andrés Comte Sponville, aquela pessoa que é portadora dessa grande virtude é alguém em primeiro lugar fiel a si mesmo. “O espírito fiel é o próprio espírito”, diz ele. A fidelidade nunca é um valor isolado, nem mesmo algo que você possa escolher possuir entre tantos outros valores. Antes, ela dá causa a outras virtudes e valores necessários para a nossa existência como pessoas e para a nossa convivência com outros.
Por essa razão, ela se torna o fator que nos identifica como pessoas. É a fidelidade de si para consigo. Isso envolve tanto um exercício de memória, que nos remete aos valores e princípios que orientam nossas escolhas, mas também um aprendizado, que faz com que se priorize determinadas ações em detrimento de outras. Certa vez, Montesquieu afirmou: “O fundamento de meu ser e de minha identidade é puramente moral: ele está na fidelidade à fé que jurei a mim mesmo. Não sou realmente o mesmo de ontem; sou o mesmo unicamente porque eu me confesso o mesmo, porque assumo um certo passado como sendo meu, e porque pretendo, no futuro, reconhecer meu compromisso presente como sempre meu”.
A infidelidade é o apagamento dessa memória constitutiva, que faz com que os valores sejam diluídos provocando instabilidade, falta de segurança e desencanto com a vida. O que seria da Justiça se não fosse a fidelidade do justo? O que seria do amor se não fosse a fidelidade dos amantes? O que seria da paz se não fosse a fidelidade dos pacificadores? O que seria da verdade se não fosse a fidelidade dos que têm compromisso com ela?
Na narrativa bíblica, a fidelidade aparece como uma qualidade divina. Deus se apresenta como um Deus fiel, que mantém sua aliança, que é digno da confiança. Nada pode mudar essa qualidade, nem mesmo o pecado ou a apostasia. Deus sempre se mantém fiel ao que ele é e ao que prometeu, e age desse modo porque ama. O amor é a atitude que motiva a sua bondade. Esse amor fiel se transforma num convite para orientar a vida de acordo com os propósitos e mandamentos divinos.
A fidelidade divina torna-se um paradigma para avaliar a relação do homem com o sagrado. Pessoas fiéis são confiáveis, amáveis e admiradas por isso. O Novo Testamento apresenta a fidelidade como uma das características do fruto do Espírito Santo presente na vida do que crê (Gálatas 5.22). Isso lembra que Deus capacita pessoas, por meio do seu Espírito, a serem fiéis, uma vez que temos muita dificuldade de agir desse modo por nós mesmos. Jesus contou a parábola em que elogia a atitude dos servos fiéis, que foram capazes de agir de forma prudente mesmo na ausência de alguém que lhes vigiasse. A recompensa de Jesus para os servos fiéis é a bênção abundante, como participantes da alegria divina: “Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco; eu o porei sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu senhor! (Mateus 25.23).
Ser fiel em tempo de crise se constitui um grande desafio. A história de Israel foi marcada por sucessivos atos de infidelidade e de arrependimentos. Um dos escritores que se ocupou com esse tema na Bíblia de forma contundente foi o profeta Oseias, que encarnou a mensagem da graça a um povo que precisava resgatar o sentido da fidelidade no seu modo de se relacionar com Deus, uns com os outros e com o mundo.
Oseias exerceu seu ministério profético entre os anos 752-722 a.C. no território compreendido pelo que ficou conhecido como reino do norte. A nação israelita tinha se dividido após o reinado de Salomão. Das doze tribos que constituíam Israel, dez se uniram ao norte e mantiveram o nome e duas formaram uma nova nação ao sul, chamada de Judá. Israel tornou-se um estado instável, governado por líderes opressores e corruptos. Durante o reinado de Jeroboão II, começou uma sucessão de atentados e golpes de estado que fragilizaram a vida moral, política e econômica dos israelitas, resultando na dominação dos assírios e o período de cativeiro.
Oseias começou a profetizar numa época em que Israel experimentava uma certa estabilidade econômica. As lideranças israelitas se tornaram gananciosas, explorando os mais pobres e desenvolvendo uma espiritualidade distante dos ensinamentos da tradição hebraica. A maneira como Oseias sente o chamado para exercer o ministério profético difere de todos os demais profetas do Antigo Testamento. Ele teve que encarnar o que Deus estava sentindo em relação aos problemas sociais a partir do seu próprio casamento.
Curiosamente, o nome Oseias quer dizer “salvação”. Ele é reconhecido na Teologia como o profeta da graça, da compaixão, pois sua mensagem revela um profundo amor de Deus não correspondido pelo seu povo. O tema da fidelidade perpassa todo o conteúdo do livro. Primeiramente, dando ênfase à fidelidade de Deus ao seu amor pelo seu povo; depois, chamando as pessoas a um arrependimento e à retomada de uma prática da fidelidade; mas também podemos falar da fidelidade do profeta à sua mensagem, mesmo em meio a circunstâncias tão controversas no casamento com uma mulher infiel.
Oseias é reconhecido na literatura judaica, sobretudo o Talmude, como o maior profeta de sua geração. Seu livro está incluído na coletânea dos profetas menores, sendo o primeiro e maior deles. Sua mensagem é marcada pela denúncia a toda forma de opressão, de repreensão aos líderes corruptos e ignorantes que conduziam o povo à ruína. Ele também contesta a maneira como as pessoas desenvolviam sua espiritualidade e praticavam a religião de forma superficial e hipócrita. Entretanto, ele também anuncia o amor de Deus, que sempre se mostra fiel e misericordioso. Ele chama o povo ao conhecimento de Deus, não de uma forma intelectual, mas como acolhida ao seu amor.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Cristianismo como commodity / Christianity as commodity / El cristianismo como mercancía


A religião entrou para o mercado. Este é um fenômeno típico da religiosidade no século XX, sobretudo no que diz respeito às formas que o cristianismo tem assumido na sociedade ocidental. Isso se percebe claramente a partir da performance dos pregadores, do formato dos cultos, dos produtos religiosos oferecidos, das propagandas das igrejas e seus eventos, da estratégia das chamadas megaigrejas, do layout dos sites religiosos, dos títulos dos best-sellers, dos filmes com temáticas religiosas e dos programas religiosos no rádio e na televisão.
Este fenômeno está presente até mesmo nas religiões não cristãs, que oferecem produtos e serviços em uma sociedade marcada pelo consumo, atendendo a demandas de indivíduos que se comportam como consumidores. Essa realidade transforma o modo como as organizações religiosas agem e orienta a formação de grupos religiosos a partir do comportamento de indivíduos ávidos em adquirir bens e serviços que venham satisfazer necessidades realização pessoal e busca de bem-estar e felicidade. Essa condição não só incrementa o mercado religioso, como também promove a competição religiosa e favorece o aumento da oferta de soluções fáceis e rápidas para as aflições humanas.
O cristianismo já tem em si alguns elementos mercadológicos: ele possui uma marca, que é a cruz; tem um apelo, que é a proposta de nova vida a partir da fé em Jesus Cristo, em que o indivíduo é instado a assumir sua forma no mundo; e implica uma estratégia de comunicação, que é a evangelização como anúncio da boa notícia do amor de Deus a toda criatura. Entretanto, esses elementos vão adquirir novos contornos com o processo de mercantilização que se dá a partir da Modernidade. Dois fenômenos estão presentes nesse processo: o primeiro é o da secularização, em que se verifica o colapso da religião instituída frente à humanização crescente e afirmação da liberdade; o segundo é o do pluralismo religioso, em que novas expressões de espiritualidade e de religiosidade encontram espaço diante da mudança de valores e da preocupação com aquilo que pode proporcionar segurança e bem-estar como novos sentidos para a ideia de salvação.
Dois pesquisadores da Universidade de Lausanne, Suíça, Jean-Claude Usunier e Jörg Stolz, organizaram um trabalho a respeito da “marketização” da fé, cujo título é Religions as brands: new perspectives on the marketization of religion and spirituality. Eles identificam sete fatores históricos para o que podemos chamar de tratamento da fé como mercadoria.
1) O fim da imposição das normas religiosas, que procuravam enquadrar o comportamento a partir de crenças e de práticas fundadas em uma moral.
2) A valorização da liberdade de escolha individual, o que estimulou o comportamento do consumidor contemporâneo.
3) A mudança de valores, com ênfase na autorrealização, na afirmação do eu (do self).
4) Aumento da renda, o que “empodera” os indivíduos e os estimula ao consumo e ao investimento em lazer e entretenimento.
5) A busca por segurança, que se converte em cuidados com a saúde, o bem-estar e a proteção individual aqui e agora, em substituição ao ideal metafísico oferecido pela religião.
6) O papel da mídia, que amplia o conteúdo informativo das pessoas a respeito da vida, do mundo e dos outros. Inclui-se aí a mídia social e sua capacidade de proporcionar maior interatividade e exposição do eu.
7) Aumento da mobilidade tanto social quanto de espaço. As pessoas se locomovem mais rapidamente de um lugar para outro, de uma posição social para outra e até de uma opinião para outra, o que aumenta a competitividade e diversidade de ofertas.
No seu processo de transformação histórica, o cristianismo começou como um movimento, tornou-se uma instituição no período medieval e assumiu a forma do mercado com a Modernidade. Com a contemporaneidade, o cristianismo assume de vez sua estratégia de mercado. Nesses tempos mercadológicos, a missão se volta para a captação de adeptos, o culto assimila as formas de entretenimento e a mensagem procura satisfazer as pessoas em suas necessidades imediatas. Com isso, religiosos necessitam se especializar em gestão como se fossem empresários, as mais avançadas estratégias de marketing são adaptadas à realidade religiosa, evangelistas usam táticas de venda da fé como um produto e os que ministram cultos se comportam como animadores de auditório.
Atualmente, não é estranho tratar grupos religiosos como organizações sem fins lucrativos ou não governamentais, visto que, tais como as antigas missões, elas também estão voltadas para a solução de problemas humanos e sociais. E muitas ações cristãs comunitárias e de solidariedade estão mais identificadas com ideais promovidos por ONGs do que com os valores do Reino de Deus. Outro fator que tem levado igrejas cristãs a se envolverem com uma lógica de mercado tem sido a crescente oferta de respostas às necessidades humanas por movimentos e entidades seculares, sob a forma de autoajuda, de cuidados com o corpo e com as emoções e até de práticas que promovem o bem-estar e a realização pessoal nos ambientes do trabalho, das relações familiares e das amizades.
Quais as consequências dessas transformações para a experiência religiosa e para a espiritualidade? A primeira delas é o surgimento de uma religião individualizada, ao gosto do freguês. Cada vez mais, as pessoas buscam o que poderíamos chamar de “religião de alta performance”, que é aquela que oferece um serviço religioso de alta qualidade, com boa música, bons oradores e um ambiente confortável e agradável. Os cultos passam a se preocupar mais em oferecer um bom momento para os espectadores, com um formato mais parecido com os programas de auditório e de shows. Nessas experiências, a pessoa quer se sentir livre para fazer suas escolhas de crer, de assumir compromissos e até de mudar comportamentos, como se estivessem em um shopping.
A segunda é o surgimento de um mercado de bens religiosos, como a promoção de festas, eventos significativos tanto para celebração da vida como para aplacar sofrimentos, tais como batismos, casamentos e funerais, narrativas sobre a causa dos problemas sociais e humanos, promoção de rituais mágicos para o alívio da dor e promoção de uma sensação de bem-estar pessoal, oferta de promessas de sucesso e vitória que só poderão ser realizadas no futuro, especialmente num mundo vindouro. A religião assim se torna um bem, que tem um preço e se destina a um consumo pessoal. Jesus é bom porque cura, liberta e ajuda a emagrecer. Dessa forma, as igrejas precisam engajar-se no mercado para renovar o interesse individual em seus produtos.
A terceira é a maneira de encarar a divindade como um meio para realização dos desejos pessoais. Nesse sentido, o dinheiro ocupa o lugar de Deus, cujo valor está atrelado a si mesmo, que se basta para atender ao fim desejado. É a realização do que Jesus chamou de culto a Mamom, termo hebraico que quer dizer literalmente dinheiro, que ele usou para descrever o poder das riquezas materiais na orientação de nossa conduta e de nossa personalidade. Jesus afirmou que Nenhum servo pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará ao outro, ou se dedicará a um e desprezará ao outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Lucas 16.13).
Curiosamente, Usunier e Stolz iniciam sua obra citando Karl Barth: “A igreja não pode engajar-se em um mercado. A igreja não pode colocar-se em um pedestal, criar-se, adorar a si mesma. Ninguém pode servir a Deus enquanto ao mesmo tempo se ocupa de servir ao diabo e ao mundo”. Em tempos de “commoditização” da fé, assumir um compromisso de retomar o ensino de Jesus é um ato revolucionário.

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