A
discussão sobre a relação entre teologia e literatura traz consigo duas
questões orientadoras. A primeira é a respeito de se a teologia é uma forma de
produção literária. A segunda é se a literatura é um lugar para o olhar
teológico. Essas duas questões se justificam na medida em que teologia e
literatura lidam com o imaginário e as representações simbólicas de nossa
relação com o mundo, com o outro e com o sagrado. Essa relação desperta a
necessidade de se narrar a experiência e de que ambas sejam expressas por meio
da linguagem com todas as implicações que isso envolve.
Por
essa razão, não há um único modo de tratar dessa relação. Ela é por si mesmo
plural, pois envolve o humano e suas muitas formas de expressar sua existência.
A teologia se dirige ao humano para falar de Deus por meio de metáforas assim
como a literatura busca dar sentido ao humano como ser no mundo. Cada uma, a
seu modo, contribui para a construção de uma imagem do humano como ser no mundo
que permite o diálogo com outras formas de conhecimento.
O
papel da teologia e da literatura não é o de transmitir a mensagem verdade
eterna e imutável, mas o de conduzir o homem a uma reflexão crítica de si, um
olhar inquietante a respeito dos conflitos e contradições que envolvem as relações
humanas. Elas convidam a uma atitude que vai além daquilo que pode ser
racionalizado ou explicado por meio de uma relação causal e que remete a um
dizer que não seja objetivante.
A
teologia hoje se depara com a exigência de dar conta da vida e da existência
humana diante de dois fenômenos já identificados por teólogos da
contemporaneidade. O primeiro é o da realidade da fragmentação da teologia,
conforme disse Karl Rahner (2008), que resulta em sua obsolescência como
pressuposto para fé. O segundo é a noção de cristianismo arreligioso, proposto
por Dietrich Bonhoeffer, que conduz a uma mudança de atitude da teologia diante
do mundo plural que emergiu no contexto da pós-modernidade.
A
literatura, especialmente a poesia, tem em si a capacidade de atualizar, por
meio da linguagem, a experiência de produção de sentido. Por isso mesmo, a
literatura provoca um constante questionamento entre as formas literárias e as
possibilidades de leitura da realidade. O espaço poético se torna um lugar de
convergência entre a experiência de presença no mundo e uma abertura para o que
está além, para o transcendente.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, nasceu no Engenho Pau
d’Arco, no município de Sapé, Estado da Paraíba, em 20 de abril de 1884.
Escreveu poesias desde a infância, bacharelou-se em Direito e veio morar no Rio
de Janeiro depois de enfrentar problemas com a oligarquia paraibana. Em 1912,
publicou seu único livro de poemas, Eu.
Morreu no dia 12 de novembro de 1914, em Leopoldina (MG).
“Versos
íntimos” é um soneto, com versos decassílabos. A partir da sua leitura, é
possível encontrar os dilemas vividos em um tempo de transformações e a crítica
à realidade social e histórica do país. O texto é marcado por uma percepção da
ambiguidade e da fragilidade humanas diante das contradições e tudo aquilo que
transcende à própria condição humana.
Uma
poesia que retrata o pessimismo do autor e a decepção diante da condição
humana. Crítica ao parnasianismo. Embora esteja inserida na arte poética do
Simbolismo, alguns veem sua poesia como antissimbolista. Já se vê na arte
poética de Augusto dos Anjos traços do que será a poesia modernista brasileira.
Nela,
encontramos questionamentos que despertam a necessidade de um olhar teológico.
Quem
se importa com o sofrimento humano? Algum sentimento de angústia tomou conta do
poeta.
Vês?! Ninguém
assistiu ao formidável
Enterro de
tua última quimera.
Somente a
Ingratidão – esta pantera –
Foi tua
companheira inseparável! (ANJOS,
1971, p. 146).
O que esperar de pessoas que vivem em meio à falta de compaixão? O
poeta é tomado de um desprezo para com quem ele se relaciona.
Acostuma-te à
lama que te espera!
O Homem, que,
nesta terra miserável,
Mora, entre
feras, sente inevitável
Necessidade
de também ser fera. (ANJOS,
1971, p. 146).
Qual consequência da falta de solidariedade? A angústia do poeta
só o remete à reclusão.
Toma um
fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo,
amigo, é a véspera do escarro,
A mão que
afaga é a mesma que apedreja. (ANJOS, 1971, p. 146).
O que fazer diante da trágica condição humana? O poeta apela para
uma autopunição como único consolo para si.
Se a alguém
causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa
mão vil que te afaga,
Escarra nessa
boca que te beija! (ANJOS, 1971, p. 146).
O
modo como Augusto dos Anjos se expressa encontra reflexo na narrativa bíblica
de Eclesiastes. “Vaidade de vaidades, diz
o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”
(Eclesiastes 1.2, na versão Revista e Corrigida de Almeida). A maneira como o
livro bíblico do Eclesiastes se inicia descreve bem o momento em que vivemos. A
vaidade tem a ver com o grande vazio que se tornou a vida. Tem a ver com aquilo
que fazemos para fugir da verdade sobre nós mesmos, daquilo que fazemos para
não encararmos a nossa realidade. Numa outra versão da Bíblia, “tudo é uma grande inutilidade [...] nada
faz sentido”. Fazendo um paralelo com a teologia de Eclesiastes, a poesia
augustiana propõe um retorno a si, como uma reclusão, uma escuta de si, diante
das amarguras da desumanidade.
Gilles Lipovetsky
chamou nosso tempo de “era do vazio”, que dá título a um de seus livros em que
analisa o fenômeno social da pós-modernidade. Vivemos num tempo marcado pelo
enfraquecimento da sociedade e dos costumes, que carece de novas formas de
afirmação de sua individualidade. Uma sociedade que se baseia no excesso de
informação e no estímulo à satisfação das nossas necessidades mais emergentes,
no direito a ser eu mesmo, sem imposição de regras sociais. A lógica do vazio
está no isolamento do ser social e na valorização do individual. Quando
falamos, portanto, de vaidade, estamos nos referindo a esse vazio, em que a
vida é como um nada.
O próprio autor
do Eclesiastes desejava descobrir o que todos nós queremos saber: o que faz a
vida ter sentido? Ele disse: “[...] Eu
queria saber o que vale a pena, debaixo do céu, nos poucos dias da vida
humana.” (Eclesiastes 2.3) Ele procurou a felicidade e o sentido da vida no
dinheiro, no poder, na fama e no sexo, mas não encontrou o que procurava.
Depois de relatar uma trajetória de conquistas e de busca de prazer, ele
conclui: “Contudo, quando avaliei tudo o
que as minhas mãos haviam feito e o trabalho que tanto me esforçava para
realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há nenhum
proveito no que se faz debaixo do sol.” (Eclesiastes 2.11).