quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Natal Fraterno / Christmas Fraternal / Navidad fraternal

O Natal lembra que Deus visitou a humanidade, se fez gente e viveu entre nós. É a declaração mais singela, porém a mais convincente, de que não estamos sozinhos. Deus vem a nós para tomar parte de nossa luta e, assim, nos ajudar a vencer o medo da solidão e da morte.

É a história de um projeto divino que vem sendo costurado há muitos anos. Na revelação bíblica, o desejo de Deus já havia sido dito: “Estabelecerei a minha habitação entre vocês e não os rejeitarei. Andarei entre vocês e serei o seu Deus, e vocês serão o meu povo” (Levítico 26.11,12).

E o desejo divino se realizou. Maria anunciou: “Louvado seja o Senhor, o Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo” (Lucas 1.68). O apóstolo João descreveu: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade” (João 1.14). E o apóstolo Paulo confirmou aquela palavra do Levítico, acrescentado que “[...] somos santuário do Deus vivo [...]” (2 Coríntios 6.16), porque Ele habita entre nós.

A história do Natal é de encorajamentos, superações e resistências. Fala de uma comunidade pobre, de uma mãe solteira, de um pai adotivo, de um bebê perseguido, da companhia de humildes, de adoradores de outras culturas e experiências religiosas, de uma família migrante. Deus escolheu as formas mais desprezíveis para conferir a elas dignidade e graça, os ingredientes necessários para seguir em frente.

O Deus que se faz presente entre nós encoraja a lutarmos em tempos difíceis. A pandemia ajudou a realçar problemas humanos que estavam bem disfarçados, como a prepotência dos poderosos, o ataque aos Direitos Humanos, a carência de justiça social e a afronta que é a desigualdade por motivos econômicos.

O Natal é o tempo de lembrarmos que Deus acolhe os mais pobres, dá força aos que estão cansados, concede honra aos humildes e encoraja os explorados e vítimas da maldade. Ele também destrói toda a soberba e desbarata todo poder. Tudo para fazer com que não estejamos sozinhos, para que todos nos sintamos incluídos em seu projeto de fazer da humanidade uma grande família de muitos irmãos e irmãs.

sábado, 7 de novembro de 2020

Biden é eleito novo Presidente dos Estados Unidos: a democracia revigorada / Biden elected new President of the United States: a reinvigorated democracy / Biden elegido nuevo presidente de los Estados Unidos: una democracia revitalizada

Depois de quatro dias de apuração após a eleição de 3 de novembro de 2020, os Estados Unidos da América conhecem quem será o seu novo presidente a partir de 20 de janeiro de 2021. O candidato democrata somou a maioria de cadeira do colégio eleitoral, superando, assim, o atual presidente e candidato Donald Trump. A volta do Partido Democrata ao poder representa uma grande conquista para aqueles que lutam contra o preconceito racial e pelos direitos dos grupos identitários.

Quando foi eleito em 2016, Trump representou um retrocesso no processo democrático de tal modo que afetou o mundo inteiro. Os reflexos da política reacionária de Trump estão nos protestos antirracistas, como Vidas Negras Importam (Lack Lives Matters). A vitória de Biden é uma conquista histórica por várias razões: primeiramente, põe fim às ameaças que Trump simboliza; em segundo lugar, Biden teve o maior número de votos em toda história e, em terceiro, pela primeira vez uma mulher negra, Kamala Harris, se elegeu como vice-presidente dos Estados Unidos.

A grande luta travada nas eleições norte-americanas foi entre a democracia e as forças conservadoras. O conservadorismo se aliou ao que há de pior na política, inclusive utilizando-se de um falso discurso religioso que arregimentou grandes setores evangélicos. A extrema-direita assumiu para si a pauta conservadora, com argumentos fundamentalistas e simpáticas a ideias fascistas, mas cobrou um alto preço: o de tutelar a democracia.

O mundo vem assistindo ao avanço das forças reacionárias e do fascismo, que se apropria, sobretudo, de discursos religiosos. Entretanto, uma nova tendência emerge, que é a do desenvolvimento de uma atitude de bom senso e de diálogo, sensível à ameaça aos Direitos Humanos, à crise do capitalismo e aos problemas ambientais. Esses reflexos encontram-se presentes também na América Latina, com a eleição de representantes de esquerda na Argentina e na Bolívia, como também a vitória no plebiscito contra a constituição ditatorial do Chile.

A democracia norte-americana tem servido como modelo para o exercício das democracias modernas desde o século XIX. Embora possua um sistema eleitoral antigo, que faz uso de procedimentos arcaicos em um mundo tecnologicamente avançado, o cidadão norte-americano se orgulha disso e se envolve com muito interesse em todo o processo, com a participação de muitos voluntários. Sem dúvida, já existem sistemas eleitorais mais avançados, com uso de tecnologia de ponta e segura. O próprio modelo eleitoral brasileiro é um deles. Porém, o modo de tratar o sistema democrático nos Estados Unidos é peculiar ao seu processo histórico.

A eleição de Joe Biden traz novos ares para a democracia no mundo. Em termos de política interna norte-americana, é um sinal de vitalidade e de retomada da força das instituições democráticas daquele país, que estiveram ameaçadas durante o mandato de Trump. Mas também é um sinal de que a democracia norte-americana precisa renovar seus atores. Biden foi eleito com 77 anos de idade. Bill Clinton se elegeu com 46 anos e Barack Obama com 48, ambos também do Partido Democrata.

O resultado dessas eleições terá, sem dúvida alguma, reflexos na política brasileira. A atitude de alinhamento com Trump, adotada por Bolsonaro, chega ao seu final. Sobretudo nas áreas de política externa e de cuidado com o meio ambiente, o governo brasileiro terá que rever suas estratégias e trabalhar com uma perspectiva de diálogo mais afinada com as tendências que o mundo aponta. O mundo tende pelo caminho da multilateralidade, da cooperação entre as economias e da garantia de direitos identitários.

Que os ventos que sopram na democracia dos Estados Unidos soprem também por aqui.

(Foto: CNN Brasil).

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Um apelo à fraternidade / An appeal to fraternity / Un llamado a la fraternidad


A fé cristã é um apelo à fraternidade. A mensagem de Jesus é um chamado à vida em comunhão, que corresponde a viver uns com os outros numa relação de afinidade que se aproxima com a vida em família em que todos se reconheçam como irmãos. Jesus mesmo se apresentou como um irmão e tratou a todos como seus irmãos e irmãs. A palavra origina-se do latim “frater”, que quer dizer irmão. Trata-se de uma relação entre pessoas que não se dá apenas por consanguinidade, mas que o transcende e estabelece o respeito à dignidade de cada um bem como a garantia da igualdade de direitos entre todos.

A palavra fraternidade remete a um relacionamento dentro de uma convivência social. E isso tem implicações políticas, não apenas sociais ou afetivas. As organizações, movimentos e grupos sociais que levantam a bandeira da fraternidade se baseiam em princípios que defendem a democracia, a igualdade de direitos e o respeito à liberdade de todos e todas.

A cultura ocidental aproximou o conceito de fraternidade aos de igualdade e de liberdade. Essa relação envolve a decisão consciente de viver em sociedade de tal modo que todos sejam tratados em direitos e oportunidades de forma equitativa. Esse princípio está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz em seu artigo primeiro: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

O lema da fraternidade associada à igualdade e à liberdade nasceu do ideal iluminista e motivou a Revolução Francesa no final do século XVIII, em busca de uma sociedade mais justa e livre da tirania. Essa tríade passou a representar a luta pelos ideais de democracia e de conquistas de direitos civis em todo o mundo. Entretanto, o ideal de liberdade sempre foi limitado, assim como a igualdade tem sido tratada de forma precária e a fraternidade vista como uma ilusão.

O sentido de fraternidade está diretamente associado aos de cidadania, amizade e solidariedade. Nesses tempos de globalização, o tema da fraternidade emerge como uma exigência para a construção de um mundo mais justo e pacífico. Cada vez mais, despontam apelos para uma ação consciente em que os gestos fraternos se despontem acima dos moralismos e legalismos como uma superação ao individualismo e o autoritarismo.

Hanna Arendt, em Homens em tempos sombrios, fala da fraternidade como um modo de agir humano para aqueles grupos de pessoas que sofrem perseguições ou são escravizados, que se tornam párias da sociedade, como se fossem dotados de alguma força interior para encontrar dignidade em si mesmos. É uma forma de resistência que faz com que os excluídos se aproximem entre si e construam novos espaços de existência. Esse modo de enfrentar a rejeição desperta sentimentos de generosidade, de compaixão, de cordialidade e de bondade que as pessoas em tais condições dificilmente seriam capazes de desenvolver entre si em outras circunstâncias.

A fraternidade cria as condições para se viver em comunidade a partir do exercício e do direito à igualdade e à liberdade. A vida comunitária só encontra legitimidade quando todos e todas desfrutam das mesmas condições de liberdade e de acesso igual às mesmas oportunidades. A fraternidade, portanto, se configura como uma condição cultural que emerge em meio às ameaças à vida para preservar e resgatar o sentido da vida comum.

Jesus fez da ideia de fraternidade um dos elementos norteadores de sua mensagem. Ele disse que devemos nos tratar como irmãos e irmãs. Ele recomendou para que ninguém fosse chamado ou agisse como mestre, pai ou chefe do outro porque “[...] todos vocês são irmãos” (Mateus 23.8). E ele mesmo chamou aos seus seguidores de seus irmãos e irmãs: “Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Marcos 3.35).

A Bíblia trata a fraternidade a partir do princípio do amor. Ela recomenda o exercício da expressão de amor fraternal: Seja constante o amor fraternal” (Hebreus 13:1). Os apóstolos tinham esse ensinamento comum. Paulo disse: “Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a si próprios” (Romanos 12.10). E Pedro também concordou: “Quanto ao mais, tenham todos o mesmo modo de pensar, sejam compassivos, amem-se fraternalmente, sejam misericordiosos e humildes” (1 Pedro 3:8).

A chamada para a prática da fraternidade e do amor fraternal tem se tornado um apelo urgente num mundo sob tensão. O papa Francisco editou em 2020 sua terceira encíclica em que faz uma reflexão sobre esse tema, com o sugestivo título Fratelli Tutti, que quer dizer “somos todos irmãos”. Ele diz: “perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (FRANCISCO, 2020, § 6).

Desenvolver um sentimento fraterno e promover a fraternidade são formas de cuidarmos do mundo em que vivemos. E cuidar do mundo significa cuidarmos uns dos outros e de nossa casa comum. Isso implica transformar nossa vivência no mundo como espaço de cuidado, compreendendo que todas as criaturas, tanto pessoas como a natureza, são essenciais para a preservação da vida. O apelo à fraternidade é um convite a aprendermos a nos tratarmos como irmãos e irmãs que convivem em harmonia.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Orar como Jesus orou / Pray like Jesus prayed / Orar como Jesús oró

Jesus orou. Essa afirmação que os relatos dos evangelhos e a carta aos Hebreus nos trazem é um convite para repensarmos a maneira como cristãos lidam com a oração. E mais, deve servir como estímulo para a humanidade incluir a oração como uma prática saudável para a vida.

Jesus é alguém que sabe a respeito de oração mais do que qualquer outra pessoa porque ele esteve em ambos os lados da intercessão. Ele orou enquanto viveu entre os homens e continua a interceder por nós. Não só Jesus orou como também é em nome dele que cristãos em todo o mundo oram.

Veja um levantamento das referências bíblicas sobre a relação de Jesus com a oração:

Jesus teve uma vida de oração:

Durante os seus dias de vida na terra, Jesus ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, sendo ouvido por causa da sua reverente submissão” (Hebreus 5.7).

E intercede por nós para sempre:

Portanto ele é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por meio dele, aproximam-se de Deus, pois vive sempre para interceder por eles” (Hebreus 7.25).

Ensinos de Jesus sobre a oração:

Então Jesus contou aos seus discípulos uma parábola, para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e nunca desanimar” (Lucas 18.1).

E eu farei o que vocês pedirem em meu nome, para que o Pai seja glorificado no Filho. O que vocês pedirem em meu nome, eu farei” (João 14.13-14).

Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto. Então seu Pai, que vê no secreto, o recompensará. E quando orarem, não fiquem sempre repetindo a mesma coisa, como fazem os pagãos. Eles pensam que por muito falarem serão ouvidos” (Mateus 6.6,7).

Mas esta espécie só sai pela oração e pelo jejum” (Mateus 17.21).

E lhes disse: ‘Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; mas vocês estão fazendo dela um ‘covil de ladrões’” (Mateus 21.13).

E tudo o que pedirem em oração, se crerem, vocês receberão” (Mateus 21.22).

Vigiem e orem para que não caiam em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mateus 26.41).

Ele lhes disse: ‘Quando vocês orarem, digam: Pai! Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino. Dá-nos cada dia o nosso pão cotidiano. Perdoa-nos os nossos pecados, pois também perdoamos a todos os que nos devem. E não nos deixes cair em tentação’” (Lucas 11.2-4).

Vocês, orem assim: ‘Pai nosso, que estás nos céus! Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia. Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal, porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém’” (Mateus 6.9-13).

Por isso lhes digo: Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta. Pois todo o que pede, recebe; o que busca, encontra; e àquele que bate, a porta será aberta” (Lucas 11.9,10).

Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai que está no céu dará o Espírito Santo a quem o pedir!” (Lucas 11.13).

A alguns que confiavam em sua própria justiça e desprezavam os outros, Jesus contou esta parábola: ‘Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro, publicano. O fariseu, em pé, orava no íntimo: Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens: ladrões, corruptos, adúlteros; nem mesmo como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador. Eu lhes digo que este homem, e não o outro, foi para casa justificado diante de Deus. Pois quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado’” (Lucas 18.9-14).

Momentos em que Jesus orou:

1.       Quando foi batizado. Lucas 3.21-22.

2.       Antes de escolher seus discípulos. Lucas 6.12-13.

3.       Durante a madrugada. Marcos 1.35.

4.       Em lugares solitários. Lucas 5.16.

5.       Servindo de exemplo. Lucas 11.1-4.

6.       Após alimentar uma multidão. Mateus 14.23 e Marcos 6.46.

7.       Quando recebeu as crianças. Mateus 19.13.

8.       Depois de ser rejeitado. Mateus 11.25-26.

9.       Quando indagou sobre sua identidade. Lucas 9.18.

10.   No monte da transfiguração. Mateus 17.1-2 e Lucas 9.28-29.

11.   Diante da sepultura de Lázaro. João 11.41-42.

12.   Prometeu pedir pelo Consolador. João 14.16.

13.   Durante a última ceia com seus discípulos. Mateus 26.26-27.

14.   Em sua oração de despedida. João 17.1-26.

15.   Intercedeu em favor de Pedro. Lucas 21.32.

16.   No Getsêmani. Mateus 26.39-44, Marcos 14.32 e Lucas 22.41-44.

17.   Na cruz, Jesus fez três orações. Lucas 23.34, Marcos 15.34, Lucas 23.46.

sábado, 12 de setembro de 2020

Motivações para despertar a nossa paixão pelo cuidado da criação / Motivations to awaken our passion for the care of creation / Motivaciones para despertar nuestra pasión por el cuidado de la creación

A vida cristã nesses tempos de grandes transformações requer dos cristãos uma conversão radical. É preciso desenvolver uma consciência nova, uma mudança de entendimento, uma nova orientação a respeito de nosso modo de viver, de conviver, de crer e de organizar a vida em sociedade. Essa é a perspectiva da metamorphousthe e anakainwsei (palavras gregas empregadas por Paulo em Romanos 12.2 para se referir à transformação e renovação da mente) conforme proposta pelo Evangelho: uma mudança integral a partir do encontro com Jesus.

A vida de Francisco, o santo dos pobres, é um convite a pensar em como viver de forma intensa, nos dias atuais, as consequências do encontro com Jesus. Num tempo em que o testemunho de maus cristãos fala mais alto e sobressai nas mídias como exemplo do que há de pior no mundo, ser alguém que encarna a mensagem de amor, de perdão, de comunhão, de fé, de confiança, de esperança, de alegria e de discernimento que emana do evangelho é algo desafiador e tremendamente necessário.

Francisco de Assis nasceu em 1181 e viveu até o ano de 1226. Atuou como mercador, serviu como um soldado e viveu sua juventude como um burguês até o encontro com Jesus. Sua conversão desencadeou um processo lento de mudanças que o transformaram em alguém que se fez pobre junto aos pobres. Francisco encarnou a mensagem do amor ensinada por Jesus que conduz a ações concretas de cuidado com o próximo, de perdão, de acolhimento e de escuta do outro.

Francisco foi um pacifista, numa época em que a igreja promovia a solução de conflitos com uso de armas e violência. Ele foi também alguém que renunciou a riqueza, num tempo em que a igreja mantinha os privilégios dos mais abastados. Ele creu num Cristo mais humano, pobre e humilde, enquanto a cristandade enfatizava o glorioso, “pantocrator”, triunfalista, assentado num trono distante. Ele também optou por uma vida de comunhão plena com a criação em geral num tempo de total indiferença e falta de respeito com a natureza. Chamava a todos e todas de seus irmãos e irmãs.

Em seu Testamento, Francisco se apresentou como o irmão menor ou o “menor de vossos servos”, numa atitude de respeito e unidade com o corpo de Cristo. No encontro que teve com o comandante do exército islâmico, sultão Malik al Kamil, foi reconhecido como um promotor e mensageiro da paz. O sultão teria dito: “se os cristãos fossem como você, não haveria guerra entre nós”. Já em sua oração, deixou uma proposta de vida de serviço e dedicação ao outro, para a promoção da paz e da comunhão. E no “Cântico das Criaturas”, ele louvou ao Senhor por toda a criação, chamando a cada elemento – como o Sol, a Lua, o vento e até a morte – de irmão e irmã.

O princípio de Francisco para viver intensamente as consequências do seu encontro com Jesus está na proposta de observar o Evangelho como regra de vida (conforme o capítulo I da Regula Bullata). Sua vida inspirou a muitos relatos sobre sua santidade, motivou muitos jovens a abraçarem a obra da sua Ordem dos Frades Menores e promoveu uma renovação da fé cristã no mundo. Por essa razão, foi chamado por Dante Alighieri, na Divina Comédia, como “a luz que inspirou o mundo”.

A conversão radical que se requer dos cristãos passa pelos caminhos da construção de uma espiritualidade que seja mais humana e solidária, que atenda ao chamado divino de encarnar no mundo o amor uns pelos outros, de colocar a vida inteira a serviço do cuidado da criação e a exerce com criatividade nossos dons e talentos de forma relevante para o mundo. Ocupar o nosso tempo e o nosso pensamento nisso é um esforço urgente e necessário.

domingo, 2 de agosto de 2020

O Reino entre nós / El reino entre nosotros / The Kingdom Among Us


“[...] eis que o reino de Deus está entre vós” (Lucas 17.21).
 Jesus disse que o seu Reino não é deste mundo (João 18.36), mas é a esfera de realização da vontade de Deus entre nós (Mateus 6.10). Jesus ensinou seus discípulos a orarem assim, a buscarem o Reino (Mateus 6.33), que o Reino pertence aos pobres (Lucas 6.20), aos que sofrem perseguição por causa da justiça (Mateus 5.10) e às crianças (Mateus 19.14), dado aos humildes como um presente divino (Lucas 12.32). Essas afirmações de Jesus nos permitem entender que o Reino de Deus é uma esfera de cuidado: cuidado de Deus pela humanidade e cuidado para com o próximo.
O Reino de Deus abrange a integralidade de nossas relações na esfera pública. Não é uma experiência exterior, subjetiva, mas algo que se realiza em nossos espaços de convivência e de existência. Por essa razão, o Reino de Deus tem uma dimensão social e política, visto que nos impulsiona a viver publicamente a nossa humanidade como pessoas libertas e conduzidas em uma nova experiência de vida no Espírito.
Não se trata de uma ruptura com o mundo, mas da imersão do divino e do sagrado em nossas relações. É um acontecimento histórico que oferece oportunidades de contemplar a presença salvífica do Senhor no mundo, que traz vida e libertação a todos. Mas também é um acontecimento cósmico, pois restaura a esperança de redenção para toda a criação.
O Reino de Deus implica uma proposta de transformação do mundo a partir da mudança da pessoa, trazendo novos valores, princípios e condutas. Para entrar no Reino de Deus é preciso romper com o reino do mundo, dominado por estruturas de poder, sistemas de dominação e sentimentos de ganância. Não existem vínculos possíveis com formas de governo ou de domínio, nem mesmo em nome de uma supremacia divina. Tentativas humanas de implantar o Reino de Deus na Terra sempre resultaram em alienação, exploração e opressão, sobretudo dos mais vulneráveis.
O convite para entrar no Reino é amoroso, e requer acolhida em amor. A vida no Reino é voltada para a prática da justiça, para a promoção da paz, para a vida em comunhão, para o bem de toda a criação e para a construção de uma nova alegria de viver. Jesus garantiu que o Reino não vem de forma espetacular nem pode ser notado em um lugar ou outro: “[...] O reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali [...]” (Lucas 17.20,21). Não é algo que está num céu distante, nem mesmo num determinado lugar ou num tempo da história. A realidade do Reino perpassa toda relação humana e se manifesta como ação redentora que nos habilita para uma vida digna no mundo e nos prepara para a vida eterna com Deus.
Pertencer a esse Reino implica abraçar a proposta do Evangelho de viver neste mundo com uma nova mentalidade, aquela que coloca a vida a serviço do outro e que tem o cuidado de promover o bem comum. Serviço e cuidado são duas faces de nossas ações como cidadãos do Reino: servimos uns aos outros em espírito de solidariedade e cuidamos uns dos outros como participantes da unidade do corpo de Cristo. Servir e cuidar são expressões de entrega, renúncia e doação de si em favor da dignidade da vida. Jesus também ensinou seus discípulos a fazerem assim. Ele também disse que em seu Reino os maiores são aqueles que servem. E quem serve cuida.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Ver o mundo como Deus vê / See the world as God sees / Mirar el mundo como Dios ve


Miqueias foi um profeta que viveu cerca de 2 mil e 800 anos antes de nós. Embora tenha vivido um tempo tão distante, ele testemunhou um cenário de injustiça, de violação de direitos sobre a terra e do uso político da religião para a exploração dos mais pobres que se parece muito com o que acontece em nosso tempo.
A origem e a formação de Miqueias dão conta de que ele foi um homem que experimentou na sua própria pele os efeitos daquilo que testemunhou. Ele era um homem do campo, que viveu numa cidade interiorana e que assistiu a muitos atos de injustiça e de exploração. Ele ouviu as histórias da sua gente, seus relatos de fé, suas crenças, seus temores e esperanças. Foi o que o ajudou a ter uma ideia clara do estado de coisas que a sociedade vivia.
Embora não tenhamos muita informação a respeito de sua vocação profética ou até mesmo de sua trajetória de vida. Temos sua profecia, que nasce de uma visão e que aponta para o curso da história. Por conta de sua experiência com Deus e de sua vida comunitária com aqueles que creem, podemos afirmar que Miqueias lançou um olhar sobre o mundo e sobre a vida como se Deus mesmo estivesse vendo com os olhos do seu profeta.
Há três sentidos desse olhar. O primeiro é o sentido histórico. Deus não está indiferente ao curso da história. Antes, ele lida com a história humana a partir de dois princípios: o da liberdade, na medida em que respeita as escolhas humanas, e o da responsabilidade, visto que Ele não age como um controlador do tempo e das circunstâncias. Entretanto, Deus intervém historicamente através da vida de seus profetas, de homens e mulheres a quem usa para sinalizar sua justiça, graça, amor e misericórdia.
O segundo é o do comprometimento com os mais vulneráveis, com as vítimas e com os espoliados, e não com os poderosos e vitoriosos. Deus também levanta quem defenda a luta dos mais fracos, dos pobres deste mundo. Ele conclama seu povo para ser a comunidade que está a serviço dos que sofrem violência, exploração e perda de liberdade e direitos, daqueles que não têm voz.
O terceiro é o da esperança. Deus está cuidando do futuro da criação. A obra da redenção tem uma finalidade, que é a de restaurar o que está perdido. A esperança é esse princípio que orienta nossa fé e ação no mundo em todo tempo, desde a esperança de superação do que nos causa dor até mesmo a esperança de novos céus e nova terra.
Miqueias se levanta como um anunciador do Deus da vida, que proclama libertação e esperança para todos e todas. Anunciar o Deus da vida é proclamar justiça social, propor uma economia em que pobres e excluídos tenham direito a uma vida digna, que luta em defesa da criação e que celebra a alegria de viver de forma livre neste mundo.
Deus vê o mundo através dos olhares daqueles que sofrem. O profeta precisava exercitar o seu olhar para ver o mundo como Deus vê. Ele teria que ser o portador de uma mensagem de vida para aquela sociedade. Porém, não poderia ignorar as causas das profundas desigualdades que havia nela. Da mesma forma, não poderia deixar de declarar o que deveria acontecer para que os rumos fossem corrigidos. Com Miqueias aprendemos como é possível marcarmos nossa conduta de tal modo que não sejamos coniventes com aquilo que causa dor no mundo.

domingo, 3 de maio de 2020

Cuidado com a família / Take care of your family / Cuida a tu familia


Em seu livro A casa e a rua, o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta fala que há um “entre”. A casa e a rua são categorias sociológicas fundamentais onde construímos nossas relações sociais, morais e até espirituais. Não são apenas espaços geográficos, mas o lugar onde construímos nossa existência ética e cultural, onde desenvolvemos emoções e até uma estética que carregamos por toda a vida.
A casa é vista como o espaço do dever, enquanto a rua é o da liberdade. A casa corresponde à vida privada; já a rua é a esfera pública. A casa é sempre vista como um aprisionamento, lugar de reclusão, de sossego e de descanso, mas, por isso mesmo, um lugar seguro e protegido. A rua é o espaço da luta, da festa, do imprevisível, marcado pela insegurança e pela descoberta do novo. E a vida se constrói nesse entre casa e rua, entre o privado e o público, entre o que devo e o que posso, entre o permitido e o desejado.
A família vive essa tensão que envolve a circulação entre a casa e a rua. Ela é um espaço para se refugiar e para se realizar como pessoa, mas também para construir o sentido básico de vida em sociedade. Valores básicos e essenciais para a vida comum são primeiramente desenvolvidos na família, tais como o respeito, a tolerância, a generosidade, a gratidão, o perdão, o afeto e até mesmo a liberdade.
Frequentemente se diz que a família está sob ameaça, mas pouco ouvimos falar a respeito de onde vêm essas ameaças, quem são os principais responsáveis por ela. Talvez isso se deva ao fato de que os responsáveis por nossas famílias somos nós mesmos e que, muito acertadamente, somos também suas principais ameaças. Na medida em que somos dotados de necessidades e de fragilidades, nós também nos tornamos coparticipantes das deficiências e aspectos negativos que afetam a convivência familiar. Porém, somos também chamados para sermos cuidadores.
O modo com que cuidamos de nossa vida em família tem a ver com o nosso sistema de crenças e valores, com os nossos padrões de organização pessoal e até com os processos de comunicação que praticamos. Ou seja, a vida em família depende, em muito, da maneira como enfrentamos e resolvemos nossos problemas, da nossa flexibilidade em nos adaptarmos a diversas situações e da nossa capacidade de expressarmos opiniões e sentimentos. Tudo isso se reflete em nosso convívio em família, que são os nossos próximos mais próximos.
O autor de Provérbios diz que: Quem causa problemas à sua família herdará somente vento [...]” (Provérbios 11.29). Isso nos lembra uma relação de causa e efeito. A Bíblia está cheia de relatos de famílias que enfrentaram problemas causados por membros que agiram com insensatez, irresponsabilidade ou até mesmo por ignorância. Entretanto, ela nos mostra que enfrentar problemas em família não é o fim da linha. Há esperança para a família mesmo em meio aos conflitos que se enfrenta dentro dela.
Nesse tempo de quarentena e de isolamento social temos aprendido que a casa é o espaço mais seguro para estarmos e para exercermos cuidado uns dos outros, assim como encorajarmos uns aos outros. Esse tempo é de aprendizado mútuo, de nos conhecermos melhor e de construirmos relações mais sólidas.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Qual o lugar de Deus em tempos difíceis? / What is God's place in difficult times? / ¿Cuál es el lugar de Dios en tiempos difíciles?


Nossa geração não tinha vivido até então um tempo como esse, marcado por uma pandemia. A última que se tem notícia foi em 1918, por ocasião da chamada “gripe espanhola”, que matou mais pessoas do que a própria guerra mundial que acontecia naquele tempo. Tivemos outras epidemias, sem dúvida, que afetaram grupos sociais e regiões – como o da Aids, do vírus Ebola, do vírus Influenza, para falar das mais recentes – mas nada se compara à proporção que o Coronavírus tem alcançado. Nós nos surpreendemos ao verificar que a humanidade não estava preparada para enfrentar esse fenômeno. Tanto a ciência, quanto as estruturas econômicos e os poderes políticos acreditavam que poderiam superar todos os problemas humanos, que teríamos todas as respostas e que seríamos capazes de vencer até os limites da morte. Inclusive a igreja não estava preparada para isso, sem saber como dar uma palavra de consolo para as pessoas que estão sofrendo.
Em tempos difíceis, levanta-se uma questão: qual é o lugar de Deus? Onde Ele está? A resposta tem a ver com o mesmo lugar que Jesus ocupa. Deus está onde Jesus toma forma. Um texto bíblico importante para entender isso é aquele que fala de Jesus como uma pedra angular: “À medida que se aproximam dele, a pedra viva — rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus e preciosa para ele — vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo” (1 Pedro 2.4,5). Esse texto lembra que há uma maneira de Deus cuidar das nossas dores, feridas e fraquezas. O modo de Deus nos alcançar com sua graça com sua ação de consolo é através da pessoa de Jesus Cristo, que se faz presente entre nós, que age em nós por meio do seu Espírito.
Pedro diz que Jesus é essa pedra rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus para nos dar esperança e mudar a nossa realidade. Jesus é tudo o que temos. Jesus é o bem mais precioso que os cristãos possuem. E essa pedra preciosa, que é o modo de Deus cuidar da humanidade, nos chama para sermos como cristos no mundo. Cristo quer tomar forma no mundo através da nossa vida. Jesus escolheu gente como a gente para ser a presença dele no mundo, portadores de esperança e de uma palavra de vida para esse mundo que sofre. Deus está conosco através desse Jesus vivo que se manifesta por meio das pessoas que aceitaram o privilégio de encarnar o amor de Deus para o mundo. Os cristãos precisam ser para o mundo a encarnação da mensagem de amor, de paz, de esperança, de libertação e de justiça que Deus trouxe para o mundo através da pessoa de Jesus. Deus está conosco desse modo em que Jesus toma forma em nossa vida, até mesmo nas horas mais difíceis. Jesus também experimentou a dor, a perda, a tristeza e até mesmo a agonia da morte para que pudesse dizer que é possível anunciar vida para um mundo perdido.
Se Jesus é a resposta de Deus para um mundo em crise, tem algumas perguntas que se tornam inevitáveis. A primeira delas é: quem é Deus diante da crise, da dor da humanidade, desse fenômeno que parou o mundo inteiro? Não importa qual seja a sua definição sobre Deus, é preciso dizer que Ele é maior do que a crise. E se Deus é maior, Ele tem poder suficiente para agir na vida daqueles sofrem nesse momento. Ele é maior até que todos as nossas certezas e crenças, e está pronto a abençoar.
A segunda pergunta é: se Deus é tão grande assim, o que Deus faz em tempos difíceis? O que Ele deve estar fazendo nessa hora? Por que ele ainda não eliminou esse vírus, ou não curou as pessoas, ou não deu inteligência para os cientistas descobrirem logo uma vacina? A resposta que temos é que Deus está trabalhando incansavelmente em favor da humanidade. Deus continua trabalhando através do seu cuidado por toda a criação, desde a criação. A Bíblia diz que, após criar todas as coisas, Ele descansou da criação. Mas ele não parou de trabalhar pelo cuidado de toda criação. E, ao agir como Criador, Ele deu a todas as suas criaturas a capacidade de se autorreproduzir e de autocuidar, de gerar nova vida e ter liberdade de agir. E isso é prova do seu amor. Ele não é um Deus despótico, dominador, controlando quem vive e quem morre, quem sofre e quem se livra. Todas as criaturas podem viver de forma livre. O trabalho de Deus é o de garantir a nossa liberdade, para sermos pessoas livres. Ele nos dá força e coragem para vivermos a nossa liberdade no mundo. É o maior milagre que Deus pode realizar na nossa vida, o de nos dar a esperança de poder seguir em frente apesar da dor, da tragédia e todas as aflições. Ele nos dá força e coragem para passarmos por tempos difíceis. Essa é a sua resposta ao nosso clamor.
Mas a outra pergunta que fazemos na hora da dor é: onde Ele está na hora da crise? Cadê Deus? Ele está entre nós. Deus está ao lado dos que sofrem, sentido sua dor, aflição e temor. E Ele quer cuidar de nós, nos abraçar, demonstrar seu amor. Muitas vezes Deus se manifesta que está entre nós através do seu silêncio. Ele prometeu que estaria conosco. Toda a Escritura está cheia de suas promessas. Ele prometeu aos patriarcas da fé, também o fez através dos salmos, dos profetas e, finalmente, da pessoa de Jesus. Deus não está nem acima nem abaixo, Ele está entre nós. Não abriu mão de seguir em frente conosco.
Ao fazer a pergunta “quem é Deus?”, lembre-se: Ele é maior. Ao perguntar “o que Ele faz?”, lembre-se: Ele nos dá força e coragem. E ao perguntar “onde ele está?”, lembre-se: Ele está entre nós. Deus é maior que nossas aflições, Ele está pronto a nos fortalecer e encorajar, Ele está pronto a nos acolher em amor.
(Mensagem apresentada durante o período da quarentena por conta da pandemia do Coronavírus e do Covid-19).

sábado, 18 de abril de 2020

Lições do Sofrimento / Lessons of suffering / Lecciones de sufrimiento


O sofrimento não ocorre à revelia da vida. Há lições a serem aprendidas, apesar de ele tomar parte da nossa existência como um intruso. Ninguém o busca ou o deseja, mas ele acontece. Volta e meia enfrentamos situações que provocam dor, aflição, perda, medo, ansiedade e tormentas. Ele nos inquieta como um vilão em nossa vida. O sofrimento produz efeitos significativos, embora não identifiquemos de maneira fácil a sua causa.
Vivemos numa época em que se dá muita ênfase ao bem-estar e ao conforto. Dificilmente lembramos que a vida é marcada muitas vezes por lutas, por esforço e por situações desagradáveis. Esquecemos que o dia mal pode chegar a qualquer instante. Ninguém está isento disso, todos podemos passar por momentos difíceis, de angústia, que nos levam ao choro, que nos tiram a paz e que até desassossegam o nosso coração. Isso faz lembrar o poeta espanhol do século XVII, Calderón de la Barca, que se pergunta que mal fez para merecer o sofrimento. Ele então diz: “O maior delito do homem é ter nascido”.
O sofrimento não nos ajuda a entender suas razões. Porém, quando não entendemos a dor, temos a tendência de espiritualiza-la com a pergunta “porque comigo, Deus?”, como se houvesse uma conspiração sobrenatural contra nós. É inevitável indagar, mas precisamos compreender que o sofrimento não é produzido por Deus. Ele é resultado de nossa vida num mundo marcado por incertezas e contradições. O tempo todo estamos expostos aos nossos limites, à dor e até à finitude.
O sofrimento não precisa de justificativa, nem há um sentido para ele. Porém, é sempre uma oportunidade para crescermos como pessoas e nos aperfeiçoarmos. É bom que se diga que o sofrimento não tem essa finalidade, ninguém sofre para ter um estímulo na vida. Mas quando o infortúnio ou a tragédia nos acometem, precisamos ressignificá-lo, olhá-lo com outros olhos. Ele não acontece como obra do acaso meramente. Ele pode servir como uma oportunidade para melhorar a vida.
Em meio ao sofrimento, podemos entender melhor como Deus está conosco e como ele cuida de nós. Precisamos reconhecer que ele está disposto a estender o seu braço forte e nos abraçar de um jeito que só Ele sabe fazer. Descobrimos que Ele tem um modo peculiar de nos acolher, que Ele tem cuidado de nós, que quer tocar em nosso coração, quer trabalhar em nossa vida e fazer com que possamos dar um salto de qualidade apesar da dor, do sofrimento, da perda, da tragédia, das tribulações e até das tentações. Deus sabe lidar com nossas dores.
Há lições a serem aprendidas no meio da tormenta, em que o sofrimento se transforma num mestre de vida. Elas estão expressas na Bíblia. O apóstolo Paulo nos apontou a trilha da aprendizagem com o sofrimento. Veja o texto em que ele escreveu sobre isso: Não só isso, mas também nos gloriamos nas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” (Romanos 5.3,4).
Há três lições a serem aprendidas com o sofrimento. A primeira delas é a lição da perseverança. A dor, a angústia e o medo nos paralisam. Mas quando vêm sobre nós, essa não é a hora de desistir. Quando passar por grandes tribulações, não desanime. O apóstolo Tiago escreveu: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma” (Tiago 1.2-4). Quando enfrentamos um obstáculo, isso não é o fim. Temos que entendê-lo como um desafio para seguirmos adiante.
A segunda lição tem a ver com o caráter. Que tipo de pessoa é você quando enfrenta o sofrimento? Quem sou eu diante da dor? Se o problema vier, não ceda. Não faça negociações a respeito da sua dignidade, de sua condição como pessoa, de sua confiança no poder de Deus. Faça o que você o que você tem competência para fazer. Conselho do apóstolo Paulo: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações” (2 Coríntios 1.3,4). Lembre-se que somos observados o tempo todo. Na hora do sofrimento, temos a oportunidade de servirmos como testemunhas da fé, da esperança e da confiança no cuidado de Deus sobre nós.
A terceira lição é a da esperança. Quando vier o sofrimento, não pare, siga adiante. Não perca a esperança. É ela que nos impulsiona a seguirmos em frente, a crermos que existem novas possibilidades além da dura realidade que enfrentamos. Fé e esperança são atitudes que estão interligadas. Não existe uma sem a outra. Elas servem para crermos que Deus está no controle e para termos esperança de que suas promessas se cumprem. Palavra do apóstolo Paulo: “Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada” (Romanos 8.18). Lembre-se sempre: aquilo que enfrentamos agora não se compara com a glória que Deus tem preparado para todos nós. Há vitória no final de nossa luta. A luta daquele que confia no Senhor já é marcada pela vitória.
São lições que nos fortalecem e nos ajudam a cuidar dos que amamos. Se você passa por um momento de sofrimento, persevere, mantenha o seu caráter firme, tenha esperança. Há uma bênção nas Escrituras para aqueles que passam por aflições: “O Deus de toda a graça, que os chamou para a sua glória eterna em Cristo Jesus, depois de terem sofrido durante pouco de tempo, os restaurará, os confirmará, lhes dará forças e os porá sobre firmes alicerces” (1 Pedro 5.10).
(Mensagem apresentada durante o período da quarentena por causa da pandemia causada pelo Coronavírus e a doença Covid-19).

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Para onde foi Deus? / Where did God go? / ¿A dónde fue Dios?

No aforismo 125 do seu livro Gaia ciência, Nietzsche fala de um louco que carregava uma lanterna acesa em plena luz do dia e corria pela praça dizendo que estava a procura de Deus. Como muitos daqueles que se encontravam na praça não acreditavam em Deus, essa atitude provocou risos e zombaria. Porém, o louco salto no meio da turba que fazia galhofa, olhou para cada um deles severamente e disse: “Para onde foi Deus? É o que vou dizer. Nós o matamos – vocês e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos! Mas como fizemos isso?”
O louco, então, passa a fazer várias indagações a respeito de como não nos demos conta, ao longo de nossa existência, das grandes transformações decorrentes da ausência de Deus no mundo. Um grande vazio tomou conta da vida humana ao mesmo tempo em que nos tornamos insensíveis ao ponto de não percebermos que a humanidade lançou Deus para fora de suas relações. Com isso, a humanidade se viu impelida a desenvolver artifícios e argumentos que pudessem substituir a presença de Deus, como se tivesse que criar deuses a partir dos próprios homens. E isso lançou a humanidade numa outra maneira de encarar a história, que é relativa aos tempos modernos, como se fossem os momentos mais nobres de toda a vida humana na Terra. Foi nesse ponto que o louco parou de falar, e todos os seus zombadores ficaram em silêncio.
Após essa cena, o louco jogou sua lanterna no chão, que se espatifou e se quebrou. Ele entendeu que tinha chegado cedo demais, pois as pessoas ainda não estavam preparadas para compreender o que estão fazendo com a vida. Os grandes acontecimentos precisam de tempo para serem discernidos. E quanto a essas transformações decorrentes da ausência de Deus, ainda vai levar um tempo para que a humanidade se dê conta do que está a acontecer ainda hoje como consequência.
Nietzsche termina a história do louco de forma muito curiosa. Naquele mesmo dia, ele entrou em uma igreja e cantou um réquiem de exaltação ao eterno Deus. Mas foi expulso e questionado sobre suas ideias. Nietzsche disse que ele teria repetido as mesmas coisas e ainda teria acrescentado: “Para que servem essas igrejas, se não são os túmulos de Deus?” A igreja se tornou como um mausoléu. Monumentos suntuosos, mas que só servem para guardar restos mortais de alguém, que pode até ter feito algo de muito significativo, mas que hoje não faz o menor sentido.
Talvez alguém ache que essa narrativa toda esteja desconectada da realidade histórica a respeito da fé cristã, que foi escrita por alguém que assumiu a tarefa de atacar o cristianismo como um inimigo. Porém, quando olhamos para os evangelhos e encontramos algumas parábolas contadas por Jesus, podemos entender que essa história do louco não é estranha. Ela serve como uma metáfora para demonstrar como a própria cristandade contribui para esse cenário ocidental em Deus foi lançado para fora do mundo.
Voltando à pergunta do louco: “Mas como fizemos isso?” Há três modos como a cultura ocidental moderna, com base na herança cristã, lançou Deus para fora do mundo. Primeiro, por afirmar a capacidade da razão suficiente, em que o indivíduo pode dar conta de si mesmo. Segundo, pela maneira como a ciência foi construída, como um modo de conhecer que é capaz de encontrar todas as respostas sem a necessidade da fé, em que a espiritualidade não é considerada para explicar os fenômenos, inclusive os humanos. E, terceiro, pelo pensamento dualista que separa matéria e espírito, corpo e alma, objeto e sujeito, natureza e cultura, fato e história, mundo físico e mundo espiritual, natural e sobrenatural, ignorando que tudo está interligado num todo complexo. Nesses contextos, Deus não tem lugar. O que restou foi a necessidade de inventar formas morais que obriguem as pessoas a práticas que servem como substitutos de Deus para suas vidas. Assim se tornou a religião, firmada no ensino da obediência como sinal de que faz a vontade de Deus.
Durante seu ministério, Jesus alertou as pessoas do risco de lidar com a fé e a relação com Deus distante da realidade e da vida. Ele contou algumas parábolas que sinalizavam os distanciamentos possíveis com respeito a quem Deus é o espaço que Ele ocupa na história humana. Essas parábolas nem sempre são bem compreendidas até hoje, e, talvez por isso mesmo, são pouco estudadas nas igrejas atualmente. Elas ajudam a compreendermos a vida, os ensinos e missão de Jesus de forma completa, vinculada a uma compreensão de nossa condição de existência no mundo. São elas: a parábola dos lavradores maus, a parábola do administrador astuto, a parábola da rede com toda sorte de peixe e a parábola do sinal do tempo. Elas apresentam um olhar diferenciado a respeito da pessoa e mensagem de Jesus que nos remetem a novas formas de aplicação em nossa vida.
A grande revelação de Deus na pessoa de Jesus Cristo é o Seu cuidado para com a humanidade toda. A história contada e registrada de Jesus nos evangelhos serve como uma grande metáfora que demonstra o cuidado de Deus por todos nós. Esse cuidado é expressão do amor pela humanidade inteira, como um esforço de resgatar o que há de mais humano em todos nós. Um cuidado que é estendido a toda criatura e a toda criação, em que ninguém pode ficar de fora, excluído ou rejeitado. E também um cuidado que aponta para a esperança, como possibilidade de superação daquilo que nos desumaniza. A partir da leitura dessas parábolas, podemos crer no cuidado de Deus através de Jesus por toda a criação.
Jesus chamou as pessoas que viviam uma vida de aparência por sua religiosidade de “sepulcros caiados”. E ainda acrescentou: “Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mateus 23.28). E ainda mais: Jesus denunciou que tais pessoas olham para o passado, para aqueles que mataram os profetas, e ainda dizem que não teriam feito nem permitido tal maldade. A igreja de hoje repete os mesmos erros quando não se abre para rever a maneira como tem colocado em prática os ensinos de Jesus a respeito do cuidado sobre toda a criação e não corrige sua caminhada para viver o evangelho como sinal do cuidado de Deus.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Como será a vida depois da quarentena? / How will be the life after quarantine? / ¿Cómo será la vida después de la cuarentena?


O mundo que conhecíamos até o começo deste ano não existe mais. E não será mais o mesmo quando a quarentena por conta da pandemia provocada pelo Coronavírus terminar. Sim, a quarentena vai acabar, a pandemia vai passar e a vida retomará seu rumo. Mas o mundo não será mais do mesmo jeito, os relacionamentos não serão mais os mesmos e, muito provavelmente,  não nutriremos as mesmas ideias e ideais.
A pandemia do Covid-19 tem sido uma experiência dolorosa em todo o planeta. Os relatos das pessoas em quarentena, das famílias enlutadas e das perdas econômicas formam um quadro muito triste que permanecerá por muitos anos na memória dessa geração. Embora se possa acreditar que há uma vida pós-quarentena, a única coisa que se pode afirmar sobre ela é que o mundo não voltará ao normal.
Os epicentros dessa pandemia têm sido as grandes cidades. O vírus ganhou urbanidade, está inserido na polis. Portanto, alcançou dimensão política. A batalha contra ele não é biológica simplesmente, mas, também, política. O uso político da Medicina, da Epidemiologia, da Infectologia vai determinar os caminhos a seguir. Para o bem ou para o mal. As decisões que tomarmos agora serão decisivas para o que virá quando tudo isso passar.
Há um aprendizado promovido pelo sofrimento. As épocas de calamidade deixam marcas profundas na vida social, e as pessoas em geral experimentam uma transformação no seu modo de pensar e de ver o mundo. E isso também acontece com a humanidade. Após períodos de grandes epidemias, ou mesmo de grandes guerras ou de cataclismos, o mundo procurou encontrar novas alternativas para a vida. Um bom exemplo disso foi o período da peste negra, que varreu o Ocidente. Associada ao avanço das forças otomanas sobre a Europa e à necessidade de encontrar respostas para os graves dilemas humanos, a cultura ocidental se abriu para uma nova mentalidade no campo das Artes, da Ciência, da Política e da Religião com o movimento renascentista. Ideias humanistas de valorização da liberdade e da dignidade da pessoa humana, bem como a afirmação da capacidade do homem pensar por si mesmo, resultaram no que conhecemos como mundo moderno ou modernidade.
Neste mundo de agora, açoitado por uma crise sem precedentes, será urgente refletirmos sobre três grandes questões. A primeira relaciona-se à forma como o capitalismo chegou até aqui, favorecendo a concentração de renda de uma minoria e lançando na miséria um grande número de pessoas. A segunda indaga a respeito do cenário geopolítico em meio ao avanço da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da internet das coisas, que influencia o surgimento de uma sociedade do controle e as mudanças nas relações de trabalho. E a terceira considera a ameaça à vida no planeta, com o esgotamento dos recursos naturais para o consumo, com o desequilíbrio ambiental e o aquecimento global.
A pandemia veio acrescentar, ainda, uma questão a mais para a humanidade: como reagimos quando tudo aquilo que acreditamos que nos daria segurança e bem-estar se torna insuficiente diante de um vírus de alto poder de contágio? Ainda não se tem uma resposta a respeito disso. Trata-se de uma questão nova, que nos conduz a uma total revisão daqueles  valores que orientam a maneira como vivemos. A busca por respostas, que não serão  únicas nem definitivas, deve mobilizar agora todas as áreas do conhecimento humano, em todas as culturas e em todos os espaços. Esse vírus fez com que as pessoas parassem seu ritmo de vida a fim de que pudessem perceber que há algo mais que é preciso aprender juntos a respeito do nosso valor e de nossa condição humana. E temos aprendido coisas novas
Aprendemos que a vida não é feita de pressa ou prazos, e que precisamos de bem menos para viver. Pessoas têm encontrado novas formas de consumir, de partilhar os recursos, de produzir bens e serviços. De repente, as pessoas descobrem o valor da vida em família, o quanto os nossos idosos são importantes, como é possível deixar um legado significativo para as gerações futuras. As pessoas têm descoberto o valor da vida em comunidade, de encontrar novas formas de se relacionar com os vizinhos que enfrentam as mesmas circunstâncias que nós.
Aprendemos que a natureza precisa de um alívio. É sim possível parar o ritmo frenético das cidades, das fábricas e do comércio para dar tempo à natureza para que se recomponha nos permita um ar mais puro, um ambiente com menos lixo e com menor taxa de agressões ambientais. As pessoas estão aprendendo a reduzir  aquilo que descartam, a dar importância à reciclagem e a cuidar de assuntos como contaminação, proteção e preservação de uma forma prática, aplicada à necessidade de sobrevivência.
Aprendemos que a economia neoliberal é a pior face do Capitalismo, que acima do mercado está a vida. E vimos que é possível pará-la. De nada adiantará um mundo com tanta capacidade econômica se isso não for aplicado na promoção e implementação de medidas emergenciais para preservar a vida.  O capital acumulado não serve para nada se as pessoas morrerem nessa pandemia. E, lembremos de que pessoas também morrem de fome, de doenças graves, de violência e de exclusão. O vírus veio nos mostrar que o neoliberalismo fracassou, pois nunca precisamos tanto do Estado e das políticas públicas, sobretudo nas áreas de saúde, educação e assistência social. O poder econômico tem que estar a serviço da vida, e não o contrário. O poder econômico precisa ser usado para frear a ganância dos poderosos, para promover justiça, diminuir as desigualdades sociais e oferecer oportunidades iguais a todos.
Aprendemos que a solidariedade , essa sim, é o que realmente nos humaniza. Diante de uma ameaça deste porte, nossas ideologias se tornam inadequadas e sem sentido. Percebemos que estamos todos fragilizados, que o vírus não poupa ninguém. A mensagem de que habitamos numa mesma casa comum começa a ganhar força. Isso tem suas implicações. As soluções que serviram para a China podem servir para os Estados Unidos. O que Itália, Espanha e França enfrentam servem de alerta para o resto do mundo. Os recursos desenvolvidos por um podem atender a necessidade de todos.
Aprendemos que a Fé não precisa do templo, do domingo ou do clero. Ela precisa de algo que nos impulsione para aquilo que está além de nós mesmos. As estruturas religiosas jamais deveriam estar engessadas em fórmulas, hierarquias, calendários ou mesmo espaços sagrados. É preciso descobrir que não há nada mais sagrado que a vida, que santidade é cuidar da vida de tal modo que toda ela seja importante, que a grande sabedoria de viver é permitir que o outro desfrute das mesmas chances que eu tenho. A Fé se realiza no encontro com o outro e com o transcendente, com esse sentimento de pertença ao outro e ao transcendente, ao mesmo tempo.
Aprendemos o valor do conhecimento, da cultura, da educação e da ciência. O que seria de nós se não fossem as universidades e os centros de pesquisas para lutarem por buscas de soluções para os problemas? O que seria de nós, sem a Arte e a Literatura para superarmos o tédio desses dias? São contribuições que trabalham com o imaginário, que nos ajudam a sonhar e a ter esperança de que tudo isso vai passar e que, novamente, poderemos seguir nosso rumo.
Segundo o historiador israelense Yuval Noah Harari, em artigo no jornal inglês Financial Times, de 20 de março de 2020, a tempestade da pandemia passará, sobreviveremos, mas será outro planeta, já que muitas das medidas atuais de emergência deverão ser estabelecidas como rotinas fixas. O mundo que teremos depois dessa crise dependerá das decisões políticas que serão tomadas no decorrer dessa quarentena. Mas, passada a pandemia, teremos a chance de fazer a escolha se queremos retomar a vida de antes ou se queremos nos lançar em uma nova forma de viver.
Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, em artigo no jornal El País do dia 22 de março de 2020, disse: “Precisamos acreditar que, após o vírus, virá uma revolução humana”. Em meio aos acontecimentos, sobressai o exemplo daqueles que cuidam. Desde o modo correto de lavar as mãos até o desprendimento revelado ao se dedicarem ao serviço pelo outro, os profissionais de saúde nos ensinam como podemos cuidar e nos cuidarmos. A característica principal dessa “revolução humana” haverá de ser o cuidado, firmado no princípio da solidariedade entre todos e com todas as expressões da vida, ou não teremos aprendido nada. E os grandes revolucionários desse tempo serão aqueles que se levantam para cuidar da vida.
A quarentena vai acabar, a humanidade vencerá mais essa pandemia, isso é certo. Mas tudo o que não queremos – ou pelo menos tudo o que não deveria acontecer – é retomarmos as coisas que fazíamos do jeito que fazíamos anteriormente. A pergunta que precisa ser feita agora é: será realmente necessário fazermos as mesmas coisas que fazíamos, produzir as mesmas coisas que produzíamos, consumir do mesmo jeito que consumíamos e viver do mesmo modo que vivíamos? A resposta que nós, como humanidade, dermos à essa questão orientará a maneira como reagiremos às transformações que virão.
(Texto publicado originalmente no site do Coletivo Bereia >>.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Como cristãos enfrentam grandes epidemias? / How do Christians face major epidemics? / ¿Cómo enfrentan los cristianos grandes epidemias?


Uma das decisões que a maioria dos países tem tomado para tentar impedir a propagação do Coronavírus é a orientação para evitar as aglomerações e o contato social. Sem levar em consideração toda consequência social e econômica que tal decisão provoca, isso afeta diretamente a forma de ser das igrejas, sobretudo as evangélicas, que se baseiam principalmente no relacionamento afetuoso, nas reuniões celebrativas e no contato físico do abraço, do aperto de mão e da troca de beijos. Muitos líderes se levantaram para desafiar essa medida, enquanto outros recomendam a prudência. Os primeiros alegam a liberdade de culto; Já para os segundos, a igreja pode demonstrar sabedoria para encontrar novas formas de adorar e de servir usando as novas tecnologias.
O problema não é novo. A história da humanidade é atravessada por pandemias, epidemias, pestes e pragas. Os cristãos nunca agiram de forma indiferente a elas desde o surgimento da igreja. Ao contrário, envolveram-se diretamente com cada problema de tal forma que a maneira como enfrentaram a doença, o contágio, o sofrimento e até a morte influenciou de forma decisiva o modo como a sociedade passou a compreender a fé cristã. O jeito como cristãos agiram em cada situação não só atraiu a simpatia das pessoas como também serviu de exemplo para decisões dos governos diante dos males.
Uma das primeiras grandes epidemias que envolveram a atuação dos cristãos ficou conhecida como Peste Antonina, no século II, ao tempo do imperador romano Marco Aurélio. Essa peste causou grande devastação em Roma, no ano 166, espalhou-se por toda a Itália e durou até o ano 189. O próprio imperador Marco Aurélio foi um dos infectados. Essa epidemia é considerada como um marco importante para o início do declínio do império romano como também para a aproximação da igreja cristã com o Estado.
Na época, surgiram duas lendas a respeito da origem da peste antonina: alguns achavam que ela foi provocada por punição divina por violarem a promessa de não saquearem a cidade de Selêucia; outros acreditavam que tudo começou quando uma tumba de ouro foi violada, no templo de Apolo, na Babilônia. Mas havia até quem culpasse os cristãos, pois teriam irritado aos deuses com sua mensagem e crescimento. Houve inclusive, em 177, um levante contra os cristãos, acusados que foram de canibalismo e incesto, conduzindo muitos à morte pela recusa a algumas leis romanas e por ofensa aos deuses.
Entretanto, a ação dos cristãos chamou a atenção das pessoas pela mensagem de esperança que proclamavam, em contraste com a mentalidade do medo e da punição. O discurso cristão apontava para o sentido da vida e da morte, mas também falava de esperança de superação das aflições nesta vida e na vida futura. E ainda havia o consolo para os familiares daqueles que morreram como cristãos, com a promessa de que receberiam uma recompensa no céu. Essa era a essência da mensagem da salvação pela fé em Jesus Cristo. Além do forte discurso salvífico, muitos cristãos arriscavam suas próprias vidas, expondo-se ao contágio, para levar consolo e cuidado para quem sofria o flagelo da doença. Enquanto o Estado romano e a sociedade em geral baniam os doentes para longe e os excluíam da convivência, os cristãos se ofereciam para cuidar deles.
No século III, uma nova peste assolou o Ocidente, de 249 a 262, ainda mais letal. O bispo Dionísio de Alexandria assim registrou sobre a atitude da sociedade em geral: “No início da doença, eles empurraram os doentes para longe e expulsavam seus próprios entes queridos de casa, jogando-os nas estradas, antes mesmo de morrerem, e tratando cadáveres não enterrados como terra, esperando assim evitar a propagação e o contágio da doença fatal; mas, mesmo fazendo tudo o que podiam, achavam que seria difícil escapar”. Os cristãos, porém, serviam aos doentes e muitos morreram contaminados. Isso serviu de testemunho vivo sobre o amor e a misericórdia cristãos. Assim se expressou o bispo Dionísio: “Muitos de nossos irmãos cristãos mostraram amor e lealdade ilimitados, nunca poupando a si mesmos e pensando apenas no seu próximo. Indiferentes ao perigo, eles cuidaram dos enfermos, atendendo a todas as suas necessidades e ministrando-os em Cristo, e com eles partiram desta vida serenamente felizes; pois foram infectados por outros com a doença, provocando em si mesmos a doença de seus vizinhos e aceitando alegremente suas dores”. E, na biografia de Dionísio, foi registrado: “Não há nada de extraordinário em apreciar meramente nosso próprio povo com as devidas atenções de amor, mas esse alguém pode se tornar perfeito, que deve fazer algo mais do que homens ou publicanos pagãos, alguém que, vencendo o mal com o bem, e praticando uma bondade misericordiosa como a de Deus, deveria amar seus inimigos também… Assim, o bem foi feito a todos os homens, não apenas à família da fé”.
Essa demonstração de cuidado amoroso e serviço altruísta impactou o mundo ocidental e promoveu um crescimento exponencial da igreja à medida que aqueles que foram beneficiados pela maneira como foram cuidados se convertiam. Enquanto a preocupação da sociedade em geral era com se preservar e se proteger, os cristãos se ofereceram para servir a todos num espírito de comunhão, sem preconceito e sem distinções, aproveitando aquela oportunidade para testemunhar a nova vida em Cristo.
Um gesto que deixou marcas na história foi a criação das santas casas de misericórdia. Em 1498, surgiu em Lisboa, a primeira delas, criada pela Rainha Leonor, viúva do Rei Dom João II, para cuidar dos doentes e inválidos em uma época de muitas tragédias provocadas por guerras e epidemias. Era também o tempo dos grandes descobrimentos. A ordem religiosa que foi criada para cuidar das santas casas era formada por pessoas movidas por um sentimento de solidariedade. Logo elas se espalharam pela Europa, Ásia e África, chegando também às Américas. Atualmente, existem mais de 2.000 santas casas em diversas cidades do Brasil.
Em 1527, Lutero foi indagado sobre como cristãos deveriam se portar diante de uma “praga mortal”. O mundo já havia experimentado a peste negra dois séculos antes, que varreu a Europa. Ele escreveu, por essa razão, uma carta intitulada Se Alguém Deve Fugir de uma Praga Mortal, na qual trata das responsabilidades dos cristãos em tempos de calamidades, principalmente quando se refere a pestes e pragas. O cuidado com os doentes não se limita aos profissionais de saúde. Os ministros são exortados a cuidarem dos mais doentes, dos moribundos e dos fragilizados, a fim de promover consolo e encorajamento. Ele desafiou aos cristãos em geral a encontrarem oportunidades de cuidarem dos doentes como se estivessem cuidando do próprio Cristo. Mas ele também orientou aos fiéis a agirem com prudência e a não se exporem ao perigo sem necessidade. O cristão tem o dever de cuidar do seu corpo como um exercício de santidade. Ele defendia que cristãos deveriam respeitas as medidas sanitárias e as quarentenas, cuidados pessoais com a higiene e a buscar socorro médico em caso de necessidade. Ele compreendia que Deus deu sabedoria aos médicos para saberem cuidar das pessoas da mesma forma que deu os remédios como dádivas para nossa saúde.
Durante essa nova pandemia no mundo, cristãos de todas as partes reagem de forma a colocarem suas vidas a serviço do cuidado. Há uma mobilização de igrejas e pastores responsáveis para encontrar formas criativas de manterem a adoração e a comunhão usando as novas tecnologias, mas sem abrirem mão de cuidarem uns dos outros respeitando as práticas de higiene e prevenção recomendadas pela Organização Mundial de Saúde. Quem se coloca contrário a isso recebe severas críticas e reprovações. Um dos exemplos vem da cidade de Bérgamo, na Itália, que registrou a morte de sete padres numa semana por terem contraído o Coronavírus e contraído a doença durante a prática da confissão e do cuidado com os enfermos. O bispo local, monsenhor Francesco Beschi, assim se pronunciou: “a generosidade dos sacerdotes continua, estamos próximos das pessoas, com as devidas precauções, mas conscientes de que, por um lado, carregamos Jesus e, por outro, podemos tornar-nos portadores do vírus”.
Agora, quando o mundo inteiro é afetado pela pandemia do Coronavírus e a doença Covid-19, os cristãos são chamados mais uma vez e desafiados a se colocarem a serviço dos que se encontram aflitos. Esse não é um momento de angústia ou de medo, mas de assumir o desafio da comunhão, do serviço e do testemunho. Na parábola das ovelhas e dos bodes, Jesus disse às ovelhas: “estive doente e vocês cuidaram de mim”. E todos perguntaram: “quando te vimos doente?”. Aos justos, Jesus respondeu: “o que vocês fizeram aos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25.36, 39 e 40).

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