segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Natal: libertação e esperança / Christmas: liberation and hope / Navidad: liberación y esperanza


O ventre em que aconteceu a gestação de Jesus sempre foi objeto de inquietação da Teologia. Maria não foi um instrumento insensível, um mero recipiente onde Deus semeou seu filho unigênito. Ela era uma pessoa. O título grego atribuído a ela é cercado de muitos significados: theotokos, que literalmente quer dizer “portadora de Deus”, uma expressão fortemente patriarcal. Porém, a primeira mulher que identificou Maria como a mulher que “portava” Deus a chamou de mãe. Isabel se se dirigiu à sua parenta, chamando-a de “a mãe do meu Senhor” (Lucas 1.43).
Ser mãe é algo sublime, carregado de expressão de humanidade. Não há uma mulher sequer que, ao engravidar, não seja tomada de um sentimento em relação à formação da criança, que não se preocupe em como vai ser a sua aparência, a sua saúde, o seu crescimento, as condições de cuidado. Imagine como isso se deu com Maria, vivendo numa comunidade de periferia, numa região dominada por um poder estrangeiro, marcada pela pobreza, cercada de gente sem muita expectativa de vida. As crianças da localidade não tinham um futuro promissor.
A maneira que Maria encontrou para expressar seu sentimento foi através do canto. Sua sensibilidade se transformou em poesia, expressa numa canção em forma de prece em que ela se coloca diante de Deus como alguém que descobre o seu papel histórico de gerar uma vida em sua vida. O Magnificat é um canto que vem da alma, que envolve todo o ser, que parte de alguém que sabe quem é, que se coloca diante de Deus, que reconhece seu lugar na história da redenção, que é marcado por expressões de adoração e de gratidão. Mas também é um canto de compromisso e engajamento, como expressão de alguém que sabe que está diante de uma tarefa maior do que sua capacidade, e que se levanta e se dispõem porque também sabe que quem fez o chamado não desampara jamais.
O canto de Maria permite identificar traços de sua personalidade, seus sonhos de menina, seus temores, como também sua compreensão da realidade que a cerca. No seu auge, ela entoa um brado político de libertação e esperança: Derrubou príncipes de seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de coisas boas os famintos e despediu de mãos vazias os ricos” (Lucas 1.52,53). Ela entendia a relação de poder que provocava opressão e desigualdade sobre sua gente. A causa da opressão estava na ação dos poderosos, a causa da pobreza estava na exploração dos ricos. E ela alimentava a esperança de que a redenção divina seria completa, libertando a humanidade de toda forma de opressão e exploração.
O Natal é a celebração da encarnação da justiça e do amor de Deus por uma humanidade que sofre os danos da sua própria maldade. Em Jesus de Nazaré, encontramos não só o perdão pela maldade humana, mas a possibilidade de libertação e toda forma de opressão e de exploração. A boa notícia da redenção não combina com as estruturas de poder nem com as relações que promovem desigualdade. A fé que emerge do encontro com Jesus não se nutre da ostentação, do preconceito, do orgulho e da vaidade, mas da esperança de que a graça salvadora e libertadora há alcançar a todos e todas que carecem dela. O Natal é tempo de libertação e de esperança.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Fé e Direitos Humanos: sinais históricos de tensões e aproximações / Faith and Human Rights: Historical Signs of Tensions and Approaches / Fe y derechos humanos: signos históricos de tensiones y enfoques


A luta pela defesa das liberdades individuais e contra as arbitrariedades do Estado é uma aspiração antiga. Norberto Bobbio, em A era dos direitos, fala de algumas ondas que marcaram a construção histórica desse desejo, que se transformou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que surgiu em 10 de dezembro de 1948. Ela diz em seu artigo 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
Falar em Direitos Humanos é tratar de uma construção histórica que vem sendo realizada há muito tempo pela humanidade. É possível situar a origem da preocupação com Direitos Humanos em 539 a.C., quando Ciro, O Grande, conquistou a cidade da Babilônia. Uma das suas ações para a consolidação do grande império persa foi o modo como tratou os escravos. Em um decreto, ele condenou o trabalho forçado e respeitou todas as crenças. Esse decreto, juntamente com outros, foi registrado num cilindro de barro conhecido hoje como o Cilindro de Ciro, que é considerado mundialmente como a primeira carta dos Direitos Humanos. Suas determinações são semelhantes aos quatro primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
Essa atitude influenciou os povos de um modo geral, inclusive a civilização greco-romana, que foi responsável pelas primeiras formulações do chamado Direito Natural. Entre as contribuições do Direito Natural greco-romano para a noção de Direitos Humanos estão as concepções éticas em relação à busca da felicidade e do bem-estar, como também a noção da política como a arte de se construir a vida em comunidade visando ao bem comum.
Entretanto, as grandes transformações no cuidado com a dignidade humana como um direito a todos os indivíduos vão acontecer com a aproximação entre a mensagem cristã e o pensamento ocidental, entre a tradição judaico-cristã e a tradição greco-romana, o que aconteceu a partir do século II da era cristã. Podemos alistar três momentos históricos significativos dessa aproximação.
O primeiro momento foi a compreensão de que todos somos iguais perante Deus. Partindo do princípio de que Deus não faz acepção de pessoas, a ideia de que fomos criados de um mesmo modo por um mesmo Deus, independente de cor da pele, etnia, classe social e sexualidade, foi uma grande revolução para o pensamento da época. A partir da modernidade, esse princípio será substituído pela ideia de que todos somos iguais perante a lei.
O segundo momento foi com a Reforma Protestante, que defendeu o princípio da laicidade do Estado, em substituição aos sistemas de poder dominados pelo clero. O Estado é uma construção que tem a participação de todos e deve ter suas ações voltadas para o bem de todos. Nesse Estado laico, a educação é para todos, o cuidado com a saúde deve ser um serviço do Estado a todos, e as leis devem garantir a liberdade de expressão da fé. Embora esses critérios não tenham sido perseguidos igualmente pelos Estados onde se deu a Reforma Protestante, nem as confissões protestantes tenham desenvolvido a mesma compreensão política, pelo menos a ideia inicial havia sido lançada.
O terceiro momento, já no século XX, corresponde ao período em que se começou a atribuir o prêmio Nobel da Paz a pessoas que se destacaram na defesa da cultura de paz. Desde então, a grande maioria dos premiados têm sido de pessoas religiosas atuantes em suas comunidades, comprometidas com a promoção da paz, não armamentista e não violenta. Dois grandes exemplos dessa luta são o líder hindu Mahatma Gandhi e o pastor batista Martin Luther King Jr, ambos vitimados durante a luta que empreenderam em favor da paz.
Em todos esses momentos, o que se depreende é que a realização da fé na esfera pública está e sempre esteve intimamente relacionada à defesa dos Direitos Humanos. Não há como imaginar a vivência da fé que ignora a necessidade do outro. Os Direitos Humanos, na concepção de quem assume uma vida de fé, têm rosto que é o do mais vulnerável, da vítima, do que sofre, do oprimido. Uma vivência de fé que não se abre para o que provoca dor, pobreza, desigualdade de oportunidades ou mesmo para a discriminação do outro é alienante e não serve para nada, a não ser para perpetuar as estruturas de dominação, de exploração e de cerceamento da liberdade.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Fake News e consciência: como produzimos (e acreditamos) em notícias falsas / Fake News and conscience: how we produce (and we believe) on false News / Noticias falsas y conciencia: cómo producimos (y creemos) en noticias falsas


Fake News e consciência são dois conceitos que não deveriam estar juntos numa mesma frase. Entretanto, os modos de produção das Fake News, bem como o jeito como elas são difundidas, assimiladas e cridas, têm muito a ver com o funcionamento da consciência. Um pouco disso pode ser percebido na canção de Ataulfo Alves, quando reclamou da atitude da amada, que era diferente da serviçal Amélia: “você não sabe o que é ter consciência”. Ele ainda guardava lembrança daquela mulher submissa com quem conviveu, ao ponto de acreditar que todas as mulheres deveriam ser assim.
O Facebook e o Instagram anunciaram em outubro que vão fazer a checagem do conteúdo para atribuir um rótulo de “informação falsa” nos posts e stories que contenham notícias mentirosas. Há dois problemas nisso: o primeiro é que Fake News não são meramente notícias mentirosas (a mentira nunca se mostra tão evidente); e a segunda é que a checagem de notícias é um serviço caro (e quem posta Fake News quer atingir algum ganho com isso). As medidas incluem a redução de acessos dos sites que propagam os conteúdos que forem rotulados.
O que tem sido chamado de Fake News? Inclui: notícias mentirosas, parciais, tendenciosas e até replicadas ou tiradas de um acontecimento antigo para se referir a um fato atual. Quem produz Fake News geralmente é quem está interessado em desviar a atenção, interferir nas escolhas e decisões das massas, induzir um determinado comportamento de consumo ou mesmo uma ideologia, destruir ou mesmo construir a imagem de algum ícone, celebridade ou personagem pública que precisa estar ou não em evidência num dado momento. Os motivos podem ser diversos. E aqueles que produzem Fake News atuam como think tanks, financiados por grandes corporações, grupos políticos e movimentos ideológicos cuja base pode estar num outro país. Ou seja, o combate à Fake News envolve uma estratégia de guerra internacional.
O anúncio de que um determinado conteúdo é falso ou mentiroso desperta ainda mais a curiosidade, visto que não estamos lidando apenas com a veiculação de informações, mas com os modos de produção de sentido e de interpretação. Entramos em uma área até então nebulosa da ciência: o que é a consciência e como ela trabalha. Apesar dos avanços da neurociência, os estudos da consciência ainda são uma grande incógnita que ocupa cientistas e filósofos. A consciência é considerada por muitos como o último limite do conhecimento a respeito da condição humana. Quando esse mistério for desvendado, novas possibilidades serão abertas para a Psicologia, para o tratamento de problemas Psiquiátricos e inclusive para a Inteligência Artificial.
A consciência é tanto uma forma de conhecimento de si, como também um processo de como nossa mente lida com experiências, emoções e informações que temos durante a vida toda. Tudo está gravado para ser usado nas várias situações e contextos que vivenciamos. Nesse processo, a consciência depende da memória, da linguagem e das emoções. Num procedimento rápido, nossa memória é capaz de encontrar respostas para cada situação no meio do que está guardado de alguma forma em algum canto de nossa mente. Pela consciência, desenvolvemos uma imagem de quem somos ao mesmo tempo em que produzimos sentidos e respostas para o que enfrentamos a fim de dar conta desse eu imaginado. O que não gostamos, deixamos escondido em algum lugar – nas sombras, como diria Jung –, mas que de algum modo insiste em aparecer.
Fake News é uma notícia que, embora seja falsa ou falseada, agrada essa consciência escondida, disfarçada que carregamos dentro de nós mesmos. A verdade sempre nos confronta diante daquilo que nos envergonha ou mesmo fere saberes que acumulamos ao longo de nossa história. É horrível descobrir que você foi enganado, que acreditou numa mentira ou que foi manipulado. É mais confortável continuar acreditando nas histórias que nos contaram do que assumir a insegurança de um fato novo que coloca em xeque nossas convicções, crenças e saberes.
Não, Fake News não é coisa inventada pelos tios nos grupos da família. Elas também não são notícias mentirosas simplesmente. Elas são um produto de nosso tempo. É bem verdade que Fake News sempre existiram. Mas o modo como elas acontecem hoje está ligado à própria complexidade da produção de conhecimento. Para que uma mentira ganhe fórum de verdade, não basta ser repetida várias vezes, como ensinava o nazista Goebbels. Isso é meme. Ela precisa ser produzida de tal modo que agrade à consciência de uma massa enganada e ferida.
Publicado originalmente no site do Coletivo Bereia. Disponível em: https://coletivobereia.com.br/fake-news-e-consciencia-como-produzimos-e-acreditamos-em-noticias-falsas/

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