sábado, 9 de setembro de 2023

Justiça Ambiental: desigualdade, desproporcionalidade e responsabilidade dos riscos / Environmental Justice: inequality, disproportionality and responsibility for risks / Justicia Ambiental: desigualdad, desproporcionalidad y responsabilidad por los riesgos

Nos dias atuais, assistimos a biodiversidade ser perdida em velocidade nunca vista antes. O futuro de nossas crianças e jovens está ameaçado pelas consequências das mudanças climáticas. É urgente que haja uma mudança de mentalidade a fim de que haja tratamento justo na distribuição de oportunidades entre todas as criaturas. A Justiça nos chama a uma conversão de natureza ecológica. À medida que nos juntarmos a esse rio poderoso de Justiça e Paz criamos esperança de um mundo melhor para todos e todas.

Para reverter o atual cenário da crise ambiental, as ações individuais não são suficientes, embora imprescindíveis. Precisamos de um poderoso movimento de Justiça, aliada à Paz, a fim de cobrar as ações de governos e do setor produtivo por mudanças. Esses são os principais responsáveis pela emissão dos gases poluentes e de resíduos que são lançados na natureza, bem como pelas políticas públicas que envolvem a preservação do meio ambiente.

A Justiça ambiental, que também é social, climática, hídrica e alimentar, envolve o pagamento de dívidas históricas. As conferências do clima promovidas pela ONU já reconheceram que, em nível global, as nações com mais poder e controle da riqueza têm o dever de lidar de forma justa e honesta em favor das comunidades que mais sofrem com os fenômenos ambientais e climáticos.

Preservar a biodiversidade, manter a expectativa de aumento do clima do planeta abaixo de 1,5° C de aquecimento global, promover responsabilização dos danos ecológicos, garantir acesso a direitos às comunidades mais afetadas pelos fenômenos climáticos e ambientais, buscar soluções justas e urgentes para acesso à água e à alimentação para todos e todas. Essas são ações que reacendem a esperança de um mundo melhor para todos e todas, para que um rio poderoso de justiça e paz inunde a vida no planeta.

O profeta Isaías anunciou no passado que Deus estava realizando uma grande obra de Justiça para toda a humanidade: “Pois estou prestes a realizar algo novo. Vejam, já comecei! Não percebem? Abrirei um caminho no meio do deserto, farei rios na terra seca” (Isaías 43.19). Sua misericórdia, bondade e amor, que são os Seus modos fazer Justiça, iriam fluir em abundância até nos desertos. Nos lugares onde há desigualdade e onde os riscos recaem mais sobre os oprimidos e carentes, ali vai jorrar o manancial de Justiça e de Paz que vêm do Senhor.

Somos convidados a nos juntarmos a esse rio de justiça e de paz em favor da criação e fazer convergir todos os nossos esforços em favor de uma nova mentalidade em que todos e todas tenham direito à Justiça ambiental, à Justiça climática, à Justiça hídrica e à Justiça alimentar. Como os afluentes se unem para formar um caudaloso rio, assim devemos agir juntos para que a Justiça e a paz fluam de forma poderosa.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Diante da finitude / Facing finitude / Frente a la finitud

Lembra-te de como é passageira a minha vida. Terás criado em vão todos os homens?” (Salmos 89.47).

Em pleno século 21, a humanidade ainda não aprendeu a lidar com a morte, embora seja uma realidade tão presente na vida de nossas famílias e de nossa sociedade, seja pela sua chegada lenta ou sorrateira, seja pelo seu acometimento súbito. As novas tecnologias podem até ajudar a controlar sua proximidade, mas não podem evitar que ela aconteça.

A morte não pode ser tratada como uma mera separação entre corpo e mente ou alma. Ela marca o fim de uma existência. Todos nós sabemos que a vida não dura para sempre, porém temos muita dificuldade para lidar com a proximidade da morte. O limite da vida do de ser é conhecido em filosofia e psicologia como finitude. É a característica do que é finito. O sentido de finitude nos ajuda a compreender melhor o valor da vida e a aprender a como aproveitar as oportunidades que ela os traz. Encarar a finitude é enfrentar a realidade da vida sem ilusões.

Freud argumenta que o modo civilizado com que temos tratado a morte tem dado lugar a um sentimento e a uma necessidade de vivermos além dos nossos recursos. A nossa vida é única e breve e, por mais que possamos tentar evitar a proximidade do seu fim, precisamos aproveitar melhor o nosso tempo de vida. Quando passamos a olhar a vida e a morte com mais naturalidade e admitimos a transitoriedade e a brevidade da vida, podemos agir com mais autenticidade, mais amor e mais coragem.

A Bíblia afirma que a pessoa sábia pensa na morte. “Quem só pensa em se divertir é tolo; quem é sábio pensa também na morte” (Eclesiastes 7.4 NTLH). O princípio bíblico apresentado por Jesus é: morra para viver, e não apenas viva para morrer. Disse Jesus: Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a vida por minha causa, a encontrará” (Mateus 16.25). Pensar na morte é compreender que a vida é muito mais do que uma questão de temporalidade.

Sêneca afirmou, em Sobre a brevidade da vida, que “não é da morte que temos medo, mas de pensar nela”. Esse medo de pensar na morte tem mobilizado a vida da humanidade e alimentado o sonho pela imortalidade. “De todas as coisas que movem o homem, uma das principais é o terror da morte”, disse Ernest Becker, no livro A negação da morte.

A questão que se levanta é: como conduziríamos nossa vida se soubéssemos o dia em que ela irá terminar? Quanto tempo ainda temos aqui para realizarmos tudo aquilo que desejamos de bom para as pessoas que amamos? Manuel Bandeira escreveu no poema Consoada: Quando a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável), / Talvez eu tenha medo, / Talvez sorria, ou diga: / – Alô, iniludível! / O meu dia foi bom, pode a noite descer. / (A noite com os seus sortilégios.) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar”.

Diante da certeza da finitude, a melhor decisão que podemos tomar é investir no que vai durar para sempre. Uma vez que não ficaremos aqui de forma permanente, muitas preocupações que temos se mostram desnecessárias, principalmente em relação ao futuro. “Nunca tenha medo de confiar um futuro desconhecido a um Deus conhecido”. Essa frase é de Corie Ten Boom, uma sobrevivente do Nazismo.

O ciclo vida e morte é um duro aprendizado. Nós, maus alunos”, argumenta Lya Luft, no artigo O ciclo da vida, publicado na Revista Veja de 27 de agosto de 2014. Temos em nós mesmos o desejo pela eternidade. Ao comentar essa constatação, C.S. Lewis argumenta: “Eu descobri em mim mesmo desejos os quais nada nesta Terra pode satisfazer. A única explicação lógica é que eu fui feito para outro mundo”.

A sensação de que aqui não é o nosso lugar só pode ter uma explicação: fomos gerados por um amor eterno e para desejarmos a eternidade. Uma vida que anseia pela eternidade encara as circunstâncias da vida com maior esperança. E isso conduz a um modo de vida que possa fazer valer a penas desfrutarmos do tempo que temos aqui.

Não podemos viver o quanto queremos, e morreremos mesmo se não quisermos”, afirmou Santo Agostinho. Foi ele mesmo que fez a conhecida oração sobre a morte: “A morte não é nada. Apenas fiz a passagem para o outro lado: é como se estivesse escondido no quarto ao lado. Eu sempre serei eu e tu serás sempre tu. O que éramos antes um para o outro o somos ainda”. Diante da realidade da morte, só nos resta viver de modo digno enquanto ela não chega.

No livro Um mês para viver, os autores Kerry e Chris Shook propõem um exercício prático durante 30 dias para refletir sobre como poderíamos viver de forma apaixonada, completamente amorosa, aprendendo humildemente e agindo corajosamente. A ideia é viver de tal modo como se cada momento fosse o último da vida. Isso implica uma nova atitude marcada pelo amor, pelo perdão, pela integridade e pelo ensusiasmo. Essa reflexão sobre a finitude tem o poder de gerar mais vida.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Desafio para a obra missionária: o lugar do outro / Challenge for missionary work: the place of the other / Desafío para la obra misionera: el lugar del otro

A obra missionária, tal como a conhecemos hoje, é resultado de estratégias que o cristianismo desenvolveu a partir da colonização. As atividades missionárias, via de regra, são definidas com termos retirados das práticas de intervenção desenvolvidas pelo colonialismo ocidental. Expressões como cruzada, conquista e campo missionário são representativas dessa forma de lidar com a evangelização mundial.

O maior desafio da obra missionária em pleno século 21 é resgatar o sentido do envio que está presente no discurso de Jesus e dos primeiros cristãos. Não se tratava de implantar um domínio ou um novo princípio moral, mas de se viver o evangelho da graça de forma plena no contexto de uma nova cultura como testemunhas do amor de Deus. Por essa razão, os primeiros seguidores de Jesus foram chamados de cristãos, por serem as melhores representações de Cristo no mundo.

Fazer missão é fazer um movimento na direção do outro, para dentro de sua realidade concreta de vida no mundo. A principal tarefa da obra missionária, que é evangelizar, não se restringe a conquistar novos adeptos para a religião cristã. Evangelizar é anunciar a boa notícia de que uma nova vida é possível.

O mundo em que a igreja está inserida é completamente diferente tanto dos cristãos primitivos quanto da época das conquistas territoriais do Ocidente e do desenvolvimento das estratégias de missões modernas. Entretanto, a demanda por uma igreja que esteja em sintonia com as necessidades das pessoas permanece como um incômodo chamado para repensar o modo como realizamos a obra missionária hoje.

A igreja é a comunidade dos que são chamados a sair de sua posição de conforto e fazer um movimento para dentro do mundo, não para fora ou para longe dele. A palavra grega ekklesia lembra isso. Ela é iniciada com a preposição ek-, que tem o sentido de um movimento para fora.

A igreja se reúne para orar uns pelos outros, para cuidar uns dos outros, para encorajar uns aos outros e para instruir uns aos outros. Mas o espaço de reunião não é seu local de permanência. A igreja não existe para viver enclausurada num lugar sagrado. Ela existe para fazer diferença no mundo. A igreja só é igreja quando faz o movimento em direção ao outro em suas condições concretas de vida no mundo.

Quais são os desafios para a evangelização mundial e para a obra missionária no mundo atual? Podemos alistar algumas:

- Restaurar a dignidade humana.

- Promover justiça.

- Semear a paz.

- Reacender a esperança.

- Praticar o amor fraternal.

- Cuidar da vida em todas as suas formas e expressões.

Em resumo, o maior desafio da obra missionária em pleno século 21 é levar paz, consolo e esperança para quem enfrenta situações que colocam a vida em risco. Temas como mudanças climática, ameaças de guerra, fome e crise migratória demandam atitudes que emanam do evangelho da graça.

Quem almeja realizar a obra missionária tem o dever de estar antenado e bem informado sobre o que faz o outro sofrer. As causas do sofrimento não são apenas circunstanciais, mas também estruturais. O chamado de Jesus para missões implica levantar os olhos e ver os campos prontos para a colheita, sentir compaixão das pessoas que andam errantes como ovelhas sem pastor, ir às cidades pregar a boa nova do Reino de Deus. O mundo mudou, mas o chamado continua o mesmo.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

O que fazer quando falta respeito em família? / What to do when there is no respect in the family? / ¿Qué hacer cuando no hay respeto en la familia?

O que fazer quando o conflito se aloja na família e se torna um problema permanente?

Famílias podem passar por conflitos por vários motivos e esses mesmos conflitos podem ser intensificados por vários fatores. Podem ser incompatibilidades de temperamento, questões financeiras, aspectos econômicos, comportamento crítico, injustiças, divergências de opinião e até interesses e formas de manipular o outro. Nenhuma família está livre de passar por essas situações.

A maneira como a família enfrenta seus conflitos pode também variar. Algumas situações podem ser toleradas, outras podem ser resolvidas a partir da negociação e do diálogo, mas há aquelas que podem persistir por muito tempo. Quando se procura investigar a causa de um conflito, invariavelmente se descobre que a raiz do problema se encontra no fato de que alguém se sente desrespeitado.

O desrespeito é a principal causa de desentendimento em família. Principalmente quando envolve negócios em família ou atividades que envolvem a todos, as possibilidades de que alguém venha decepcionar, incomodar ou até provocar mágoas e ressentimentos são enormes.

O que pode fazer com que alguém se sinta desrespeitado em família? Veja alguns fatores:

a) Quando suas ideias, opiniões e conselhos não são reconhecidos.

b) Quando os membros de menor status social são desprezados pelos de maior status.

c) Quando não recebem apoio ou empatia nas horas de dificuldade.

d) Quando seus esforços não são recompensados.

e) Quando são criticados ou humilhados em público.

f) Quando não se tem acesso às informações mais comuns.

g) Quando são comparados de forma inferior a outros membros da família.

h) Quando são tratados com indiferença e preconceito.

Todos nós podemos tanto incorrer nessas condutas como também podemos ser desrespeitados. Até mesmos nossas atitudes desrespeitosas podem passar despercebidas por algum tempo. Isso pode desencadear atitudes que provocam problemas emocionais e de saúde mental, como mágoas, ressentimentos e agressividades que vão requerer muito esforço para serem superados. Quanto mais rápido os problemas forem identificados, melhores são as chances de se resolvê-los antes que o ambiente piore e se torne insuportável a convivência.

Precisamos conversar mais sobre a construção de uma cultura familiar de respeito mútuo. Quando as pessoas se sentem respeitadas e acolhidas em sua própria família, elas têm melhores condições de lidar com seus conflitos pessoais. Conviver em um ambiente dominando por fatores conflitantes é extremamente estressante e pode provocar sintomas de ansiedade. Por isso, é fundamental a prática do diálogo e a abertura de canais de comunicação em que os membros da família se sintam a vontade para falar dos problemas que enfrentam.

A Bíblia está repleta de história de famílias que passaram por conflitos que se tornaram permanentes, alguns com resultados desastrosos. É o caso da família de Adão e Eva, de Noé, de Abraão, de Jacó, de Davi e tantos outros que, apesar de serem reconhecidos como heróis da fé, não ficaram imunes aos conflitos familiares.

Salomão é um dos personagens bíblicos que tiveram uma família que enfrentou muitos conflitos. A maneira que ele encontrou para lidar com seus problemas ficou registrada no livro de Provérbios. Nele, Salomão abordou diversas situações que envolvem a vida em família que precisam ser revistas à luz das abordagens terapêuticas contemporâneas.

Ao ler algumas passagens do livro de Provérbios, podemos encontrar diretrizes que nos ajudam a lidar com nossos próprios problemas. Ele foi escrito como se um pai amoroso estivesse cuidando das relações familiares a fim de formar uma cultura de respeito mútuo. suas considerações valem como conselhos úteis para os nossos dias.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Dimensão comunitária do discipulado: O que faz diferença no seguimento de Jesus / Community Dimension of Discipleship: What Makes a Difference in Following Jesus / Dimensión comunitaria del discipulado: lo que marca la diferencia en el seguimiento de Jesús

Discipulado é o modo como fazemos o seguimento de Jesus. Ser discípulo de Jesus não é uma aventura solitária, embora sejamos responsáveis pela maneira como seguimos Jesus. Não é ser um autodidata, embora envolva um aprendizado. Não é ser um aluno receptor de informações, embora haja um Mestre.

Na verdade, ser discípulo é ser imitador de Jesus, alguém que assume reproduzir em sua vida o caráter e o ensino de Jesus. Isso implica tomar parte da comunidade daqueles e daquelas que seguem Jesus e se ajudam mutuamente a se aperfeiçoar nisso a cada dia. Além disso, o discípulo é o melhor exemplo de vida transformada pela graça que as pessoas à sua volta podem ter.

Os primeiros discípulos viviam em comunidade. Jesus apresentou durante seus discursos dois tipos de convite: ele disse para alguns “segue-me” e disse para uma multidão “vide a mim”. O convite “segue-me” exigia mudanças no modo de viver e de orientar a vida. Tanto que muitos largaram tudo o que faziam para seguir Jesus. Não era só uma mudança de hábitos ou costumes, mas de valores e de estratégias de vida como a profissão e os relacionamentos.

O convite “vinde a mim” foi dirigido a pessoas cansadas de uma vida marcada pela opressão. Àqueles que andavam errantes como ovelhas sem pastor, perdidas de si mesmo, agora poderiam aprender um novo modo de orientar a vida com quem exercitava a humildade e a mansidão.

Nunca foi fácil seguir Jesus, nem para os primeiros discípulos, nem para nós nesses tempos. Entretanto, Jesus sempre procurou educar seus discípulos sobre o que significa segui-lo. E o fez ao longo da caminhada realizada junto com eles. Jesus foi um mestre por excelência, fazendo com que seus seguidores reproduzissem em suas vidas o seu próprio modo de viver.

O discipulado envolve novos hábitos, novo estilo de vida, novos interesses, novas perspectivas, novo modo de pensar, nova forma de compreender a vida, enfim, nova forma de ver o mundo. Não é um programa ou estratégia para se fazer novos adeptos, mas um novo modo de ser e de agir no mundo.

Envolve um aprendizado que requer mudança de mentalidade. Isso implica abandonar hábitos e concepções influenciados pela religião e pela ideologia dominantes para dar lugar aos valores do Reino de Deus. Exige de cada um o compromisso de ser a melhor expressão da graça de do amor de Deus por toda a criação.

O discípulo aprende em comunidade a dar novos significados a práticas essenciais como a oração, o conhecimento das Escrituras, a vida em comunhão, o testemunho público da fé e o cuidado uns com os outros. Normalmente, aprendemos que a oração, a leitura da Bíblia, o compromisso com a igreja, o testemunho e a prática do bem são atitudes individuais apenas. Mas elas precisam ser compreendidas a partir de uma ótica comunitária, como ações que visam o bem comum.

sábado, 11 de março de 2023

Cartas para a igreja: as sete cartas do Apocalipse para hoje / Letters to the Church: The Seven Letters of Revelation for Today / Cartas a la Iglesia: Las siete cartas del Apocalipsis para hoy

O que Jesus diria para a igreja de hoje que vive no limiar do fim dos tempos? A humanidade nunca viveu tão próxima de sua própria extinção. Esse tema tem ocupado os meios de comunicação e acadêmicos há algum tempo, com estudos, diagnósticos e até previsões de um fim catastrófico para a vida no planeta.

Um desses recursos é o relógio do Apocalipse, um contador de tempo simbólico que existe desde 1947 (criado pelo comitê que organiza o Boletim dos Cientistas Atômicos da Universidade de Chicago), que aponta para o fato de que vivemos a poucos minutos do fim catastrófico da vida no planeta provocado por uma guerra nuclear. Esse relógio conta os minutos que falta para o que chamam de “meia-noite”, o momento crucial para o qual convergem decisões políticas, sociais, econômicas, diplomáticas e militares globais somados aos acontecimentos ligados à mudança climática, pandemias, terrorismo e até o uso de inteligência artificial.

No começo do ano de 2023, o relógio do Apocalipse, também chamado de Relógio do Juízo Final ou Doonsday Clock, chegou a apontar que faltavam apenas 90 segundos para a catástrofe final que exterminaria com a civilização, sobretudo após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022. Desde 1991, quando o relógio marcava 17 minutos, esse tempo vem sendo reduzido, indicando que vivemos o risco iminente de um conflito de proporções globais. Nunca estivemos tão próximos da meia-noite. Isso tem levado a um apelo insistente para que governos, órgãos de defesa, instituições que visam promover a paz e até grupos humanitários atuem para que a ameaça de uma catástrofe nuclear seja afastada.

O que a igreja tem a ver com isso? Qual a mensagem que cristãos e cristãs têm a dar para o mundo diante das crises globais? O que Jesus diria para a sua igreja sobre como viver em comunhão, servir, testemunhar, celebrar e até evangelizar em dias tão complexos? Essas questões nos remetem para o final do século I da Era Comum, quando a fé cristã se deparou com situações que lembravam os discursos escatológicos de Jesus nos evangelhos. Para aqueles primeiros seguidores de Jesus, seria fácil presumir que viviam os tempos do fim.

Eram tempos de perseguição, intolerância religiosa e até de desigualdade social. A maioria dos frequentadores da igreja era de origem escrava, despossuídos e excluídos da vida social. Mesmo assim, representavam uma ameaça ao poder imperial romano, pois eram confundidos como subversivos em relação às leis que obrigavam o culto ao imperador. Isso fez com que sofressem a mais sangrenta perseguição da história do cristianismo.

Um importante documento dessa época encontra-se no livro do Apocalipse de João. Em sua experiência com a revelação divina, o Apóstolo João é orientado a escrever a sete igrejas de sua área de atuação a fim de que cristãos e cristãs fossem consolados e encorajados a viverem a fé uma vez dada aos santos sem desanimar. Trata-se de um trecho, abrangendo os capítulos 2 e 3, que contém as sete cartas às igrejas do Apocalipse, ou sete cartas às igrejas da Ásia Menor (atual Turquia), a região onde elas se encontravam.

São pequenos recados, que continham elogios e exortações, repreensões e promessas. Cada igreja vivia aqueles momentos angustiantes a partir do lugar onde foram construídas, em suas inter-relações com a sociedade e em suas condições internas de vida em comunidade. Para cada uma dessas igrejas, João ressalta aspectos sobre como podemos enfrentar tempos difíceis sem perder a fé e a esperança, sem deixar de se colocar como agentes da graça num mundo onde há tanta maldade e engano.

O que a comunidade da fé enfrentava não era o fim. Apesar da dor, das perdas, do sofrimento, da perseguição, da insjustiça e da desigualdade social, aquela situação não era final. A igreja precisava ser lembrada da missão de Deus entregue a ela por Jesus, de ser testemunha da graça em qualquer circunstância. Os problemas não tinham o poder de dar a palavra final sobre a vida, sobre a prática do amor, sobre a disposição de seguir Jesus, sobre a vida em comunhão, sobre a solidariedade, sobre a generosidade, sobre a vida cristã autêntica e tantos outros temas tão caros à fé cristã, mais até do que princípios doutrinários, tradições e dogmas.

Cristãos e cristãs precisam ser lembrados que quem tem a palavra final sobre a vida é Deus, mesmo nos dias atuais. Embora vivamos o risco de um fim iminente, a fé lembra que quem conduz o curso da história é Deus e a esperança aponta para o fato de que no fim Ele já está lá. Como viver essa fé e essa esperança como seguidores de Jesus hoje? As cartas do Apocalipse também nos ensinam a conduzir a vida a partir dos ensinos de Jesus.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Crime anunciado contra a democracia: o Estado brasileiro diante de sua principal ameaça, nosso 8 de janeiro / Announced crime against democracy: the Brazilian State facing its main threat / Crimen anunciado contra la democracia: el Estado brasileño frente a su principal amenaza

 

O dia de hoje ficará marcado pelo pior atentado cometido contra a República Brasileira desde a sua redemocratização. Podemos chamar esse dia como o 8 de janeiro, quando um crime foi praticado contra a democracia, apesar de largamente prenunciado desde a divulgação dos resultados das eleições de 2022. Curiosamente, esse episódio acontece 2 anos e 2 dias depois da invasão do Capitólio, nos Estados Unidos da América, por apoiadores de Donald Trump. Aqui, vândalos e arruaceiros simpatizantes de Bolsonaro invadem os principais prédios do governo brasileiro: O Congresso, o Palácio do Planalto e a sede do STF.

O mais correto seria chamar esses manifestantes de terroristas pela quantidade de danos causados ao patrimônio público e a depredação das principais sedes governamentais, do centro do poder. Não são, nem nunca foram, movimentos pacíficos ou de acordo com a Constituição, como afirmou nesta semana o atual Ministro da Defesa do Governo eleito. São pessoas dispostas a praticaram atos de violência para imporem sua vontade política sobre uma nação inteira, desrespeitando assim o processo democrático.

Os manifestantes não agiram voluntariosamente. Houve uma articulação em várias partes do país, mobilizando ônibus e fomentando discursos de ódio, para trazer pessoas dispostas a promover o que os líderes vinham chamando de “guerra”. Além disso, pela natureza e forma de organização, pressupõem-se que haja financiadores e mentores dessa ação tramada para causar insegurança e colocar em xeque a autoridade do governo recém-empossado.

O Ministério da Justiça se preveniu convocando a atuação da Guarda Nacional. Porém, o Governo do Distrito Federal, cujo atual Secretário de Segurança é o ex-Ministro da Justiça de Bolsonaro, se mostrou leniente diante das ameaças dos atentados que se viram neste domingo. A própria polícia do Distrito Federal ofereceu apoio aos manifestantes em dado momento para que se aproximassem da Praça dos Três Poderes.

Esses atentados já haviam sido previstos por cientistas políticos e analistas desse momento histórico. Com base em outros acontecimentos, como a Noite dos Cristais do nazismo, as marchas fascistas na Itália e até mesmo a invasão do Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 2021, era fácil imaginar que a sucessão de atos golpistas após o resultado das eleições iria resultar no que vimos.

Desde o dia 31 de outubro de 2022, assistimos à perpetração de diversos atos criminosos que não receberam o tratamento de acordo com a lei, como o bloqueio em rodovias, acampamentos em áreas militares, noite de vandalismo em Brasília, diversos atos de violência contra opositores e várias autoridades federais hostilizadas em espaços públicos. Em todos esses atos, verificou-se a inação daqueles que têm o dever de fazer cumprir a lei, como as polícias dos estados, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público e até juízes.

O principal responsável pelo caos no Distrito Federal hoje não está no país para responder criminalmente. O fato de Bolsonaro não ter reconhecido a derrota na eleição e ter se omitido diante das manifestações criminosas que pediam ações inconstitucionais acabou aumentando a animosidade. O bolsonarismo se tornou um dos mais agressivos movimentos de extrema-direita no mundo, reproduzindo aqui cenas lamentáveis de intolerância, de preconceito e de desrespeito ao processo democrático.

Vai levar tempo para restaurar a normalidade. A única saída é a afirmação do poder do Estado para a garantia da ordem, através das aplicações dos instrumentos de regulação, como a Lei Antiterrorismo e a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Fala-se inclusive na intervenção federal na área de segurança de Brasília. A repressão direta poderia inflamar ainda mais os ânimos, embora esse teria sido o tratamento caso os manifestantes fossem outros.

O Brasil teve até aqui uma longa história de repressão às manifestações de movimentos progressistas, de trabalhadores ou de pessoas que lutam por seus direitos civis. Assistimos por décadas cenas de truculência policial, de uso de um forte aparato repressor contra aqueles que lutaram por direitos trabalhistas e previdenciários, por acesso à terra para plantar, pelo direito a moradia e até manifestações estudantis. Entretanto, os participantes dos atos terroristas de hoje são pessoas tidas como “pessoas de bem”, conservadores e até defensores da família, da fé, da moral e dos bons costumes. Um paradoxo diante da capacidade de se articular para cometerem a depredação que se viu.

Talvez o dia de hoje tenha sido necessário para pôr fim a uma hipocrisia que vinha sendo institucionalizada no país. A ideia de que quem pedia intervenção federal, ditadura militar e golpe contra a democracia eram pessoas pacíficas. Quem pede que se pratiquem ilegalidades como essas não estão bem intencionados. A democracia não combina com a ruptura da lei. Antes, para que vivamos num legítimo Estado Democrático de Direito é preciso que a lei se aplique igualmente sobre todos. Caso contrário, nos transformaremos em uma sociedade ingovernável.

A democracia garante direito à liberdade de expressão, mas exige o respeito às instituições criadas para que o Estado Democrático de Direito se realize. Esses insanos não podem ficar impunes.

(Foto: Folha de São Paulo, Evaristo Sá/AFP. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/bolsonaristas-sobem-em-teto-do-congresso-e-pm-reage-com-bombas.shtml).

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Fé cristã e esfera pública: uma hermenêutica a partir de Romanos 13.1 / Christian faith and the public sphere: a hermeneutics from Romans 13.1 / La fe cristiana y la esfera pública: una hermenéutica desde Romanos 13.1 /

A ética baseada no amor envolve uma expressão pública. Isso quer dizer que a vida pela fé tem implicações sociais e políticas. A nossa atuação como cristãos nos espaços públicos deve corresponder a uma cidadania consciente.

Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas” (Romanos 13.1).

A ação cristã não é anarquista, subversiva, fascista ou totalitária. Entretanto, ela não é acrítica, indiferente ou alienada. Ela promove a cidadania responsável e consciente, está ao lado da justiça e do direito e coopera com a sociedade para a superação daquilo que lhe causa mal.

Paulo lembra o papel do Estado e do cidadão:

a) Papel do Estado: cuidar do bem comum como expressão do cuidado divino.

[... A autoridade] serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal” (Romanos 13.4).

b) Papel do cristão como cidadão: cooperar com o Estado para a realização do bem comum.

“[...] é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência” (Romanos 13.5).

A recomendação para a “submissão” às autoridades não é universal, absoluta ou cega. Mas uma atitude crítica em relação às leis vigentes e os propósitos divinos. Não cabe ao cristão uma submissão subserviente ao Estado totalitário, tirano, ditatorial ou despótico.

A desobediência civil passa a ser um dever cristão diante de leis injustas, quando o Estado deixa de cumprir o seu papel e quando os critérios políticos estão distantes dos valores do Reino de Deus. Desobediência civil não é rebelião, mas resistência à opressão promovida pelo Estado.

Exemplos de desobediência civil: Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr. e Desmond Tutu, que eram religiosos.

(Extraído da apostila Espiritualidade Contagiante: Estudo bíblico na Carta aos Romanos, disponível em PDF no blog da igreja da Orla Oceânica: http://orlaoceanica.blogspot.com/p/lideranca.html

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