sexta-feira, 27 de março de 2020

Como cristãos enfrentam grandes epidemias? / How do Christians face major epidemics? / ¿Cómo enfrentan los cristianos grandes epidemias?


Uma das decisões que a maioria dos países tem tomado para tentar impedir a propagação do Coronavírus é a orientação para evitar as aglomerações e o contato social. Sem levar em consideração toda consequência social e econômica que tal decisão provoca, isso afeta diretamente a forma de ser das igrejas, sobretudo as evangélicas, que se baseiam principalmente no relacionamento afetuoso, nas reuniões celebrativas e no contato físico do abraço, do aperto de mão e da troca de beijos. Muitos líderes se levantaram para desafiar essa medida, enquanto outros recomendam a prudência. Os primeiros alegam a liberdade de culto; Já para os segundos, a igreja pode demonstrar sabedoria para encontrar novas formas de adorar e de servir usando as novas tecnologias.
O problema não é novo. A história da humanidade é atravessada por pandemias, epidemias, pestes e pragas. Os cristãos nunca agiram de forma indiferente a elas desde o surgimento da igreja. Ao contrário, envolveram-se diretamente com cada problema de tal forma que a maneira como enfrentaram a doença, o contágio, o sofrimento e até a morte influenciou de forma decisiva o modo como a sociedade passou a compreender a fé cristã. O jeito como cristãos agiram em cada situação não só atraiu a simpatia das pessoas como também serviu de exemplo para decisões dos governos diante dos males.
Uma das primeiras grandes epidemias que envolveram a atuação dos cristãos ficou conhecida como Peste Antonina, no século II, ao tempo do imperador romano Marco Aurélio. Essa peste causou grande devastação em Roma, no ano 166, espalhou-se por toda a Itália e durou até o ano 189. O próprio imperador Marco Aurélio foi um dos infectados. Essa epidemia é considerada como um marco importante para o início do declínio do império romano como também para a aproximação da igreja cristã com o Estado.
Na época, surgiram duas lendas a respeito da origem da peste antonina: alguns achavam que ela foi provocada por punição divina por violarem a promessa de não saquearem a cidade de Selêucia; outros acreditavam que tudo começou quando uma tumba de ouro foi violada, no templo de Apolo, na Babilônia. Mas havia até quem culpasse os cristãos, pois teriam irritado aos deuses com sua mensagem e crescimento. Houve inclusive, em 177, um levante contra os cristãos, acusados que foram de canibalismo e incesto, conduzindo muitos à morte pela recusa a algumas leis romanas e por ofensa aos deuses.
Entretanto, a ação dos cristãos chamou a atenção das pessoas pela mensagem de esperança que proclamavam, em contraste com a mentalidade do medo e da punição. O discurso cristão apontava para o sentido da vida e da morte, mas também falava de esperança de superação das aflições nesta vida e na vida futura. E ainda havia o consolo para os familiares daqueles que morreram como cristãos, com a promessa de que receberiam uma recompensa no céu. Essa era a essência da mensagem da salvação pela fé em Jesus Cristo. Além do forte discurso salvífico, muitos cristãos arriscavam suas próprias vidas, expondo-se ao contágio, para levar consolo e cuidado para quem sofria o flagelo da doença. Enquanto o Estado romano e a sociedade em geral baniam os doentes para longe e os excluíam da convivência, os cristãos se ofereciam para cuidar deles.
No século III, uma nova peste assolou o Ocidente, de 249 a 262, ainda mais letal. O bispo Dionísio de Alexandria assim registrou sobre a atitude da sociedade em geral: “No início da doença, eles empurraram os doentes para longe e expulsavam seus próprios entes queridos de casa, jogando-os nas estradas, antes mesmo de morrerem, e tratando cadáveres não enterrados como terra, esperando assim evitar a propagação e o contágio da doença fatal; mas, mesmo fazendo tudo o que podiam, achavam que seria difícil escapar”. Os cristãos, porém, serviam aos doentes e muitos morreram contaminados. Isso serviu de testemunho vivo sobre o amor e a misericórdia cristãos. Assim se expressou o bispo Dionísio: “Muitos de nossos irmãos cristãos mostraram amor e lealdade ilimitados, nunca poupando a si mesmos e pensando apenas no seu próximo. Indiferentes ao perigo, eles cuidaram dos enfermos, atendendo a todas as suas necessidades e ministrando-os em Cristo, e com eles partiram desta vida serenamente felizes; pois foram infectados por outros com a doença, provocando em si mesmos a doença de seus vizinhos e aceitando alegremente suas dores”. E, na biografia de Dionísio, foi registrado: “Não há nada de extraordinário em apreciar meramente nosso próprio povo com as devidas atenções de amor, mas esse alguém pode se tornar perfeito, que deve fazer algo mais do que homens ou publicanos pagãos, alguém que, vencendo o mal com o bem, e praticando uma bondade misericordiosa como a de Deus, deveria amar seus inimigos também… Assim, o bem foi feito a todos os homens, não apenas à família da fé”.
Essa demonstração de cuidado amoroso e serviço altruísta impactou o mundo ocidental e promoveu um crescimento exponencial da igreja à medida que aqueles que foram beneficiados pela maneira como foram cuidados se convertiam. Enquanto a preocupação da sociedade em geral era com se preservar e se proteger, os cristãos se ofereceram para servir a todos num espírito de comunhão, sem preconceito e sem distinções, aproveitando aquela oportunidade para testemunhar a nova vida em Cristo.
Um gesto que deixou marcas na história foi a criação das santas casas de misericórdia. Em 1498, surgiu em Lisboa, a primeira delas, criada pela Rainha Leonor, viúva do Rei Dom João II, para cuidar dos doentes e inválidos em uma época de muitas tragédias provocadas por guerras e epidemias. Era também o tempo dos grandes descobrimentos. A ordem religiosa que foi criada para cuidar das santas casas era formada por pessoas movidas por um sentimento de solidariedade. Logo elas se espalharam pela Europa, Ásia e África, chegando também às Américas. Atualmente, existem mais de 2.000 santas casas em diversas cidades do Brasil.
Em 1527, Lutero foi indagado sobre como cristãos deveriam se portar diante de uma “praga mortal”. O mundo já havia experimentado a peste negra dois séculos antes, que varreu a Europa. Ele escreveu, por essa razão, uma carta intitulada Se Alguém Deve Fugir de uma Praga Mortal, na qual trata das responsabilidades dos cristãos em tempos de calamidades, principalmente quando se refere a pestes e pragas. O cuidado com os doentes não se limita aos profissionais de saúde. Os ministros são exortados a cuidarem dos mais doentes, dos moribundos e dos fragilizados, a fim de promover consolo e encorajamento. Ele desafiou aos cristãos em geral a encontrarem oportunidades de cuidarem dos doentes como se estivessem cuidando do próprio Cristo. Mas ele também orientou aos fiéis a agirem com prudência e a não se exporem ao perigo sem necessidade. O cristão tem o dever de cuidar do seu corpo como um exercício de santidade. Ele defendia que cristãos deveriam respeitas as medidas sanitárias e as quarentenas, cuidados pessoais com a higiene e a buscar socorro médico em caso de necessidade. Ele compreendia que Deus deu sabedoria aos médicos para saberem cuidar das pessoas da mesma forma que deu os remédios como dádivas para nossa saúde.
Durante essa nova pandemia no mundo, cristãos de todas as partes reagem de forma a colocarem suas vidas a serviço do cuidado. Há uma mobilização de igrejas e pastores responsáveis para encontrar formas criativas de manterem a adoração e a comunhão usando as novas tecnologias, mas sem abrirem mão de cuidarem uns dos outros respeitando as práticas de higiene e prevenção recomendadas pela Organização Mundial de Saúde. Quem se coloca contrário a isso recebe severas críticas e reprovações. Um dos exemplos vem da cidade de Bérgamo, na Itália, que registrou a morte de sete padres numa semana por terem contraído o Coronavírus e contraído a doença durante a prática da confissão e do cuidado com os enfermos. O bispo local, monsenhor Francesco Beschi, assim se pronunciou: “a generosidade dos sacerdotes continua, estamos próximos das pessoas, com as devidas precauções, mas conscientes de que, por um lado, carregamos Jesus e, por outro, podemos tornar-nos portadores do vírus”.
Agora, quando o mundo inteiro é afetado pela pandemia do Coronavírus e a doença Covid-19, os cristãos são chamados mais uma vez e desafiados a se colocarem a serviço dos que se encontram aflitos. Esse não é um momento de angústia ou de medo, mas de assumir o desafio da comunhão, do serviço e do testemunho. Na parábola das ovelhas e dos bodes, Jesus disse às ovelhas: “estive doente e vocês cuidaram de mim”. E todos perguntaram: “quando te vimos doente?”. Aos justos, Jesus respondeu: “o que vocês fizeram aos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25.36, 39 e 40).

terça-feira, 24 de março de 2020

Como manter a saúde mental durante a quarentena / How to maintain mental health during quarantine / Cómo mantener la salud mental durante la cuarentena


Após a segunda semana de impacto da chegada da pandemia, começamos a nos dar conta de que não estávamos preparados para um tempo longo de isolamento social. É como uma negação de nossa condição humana, que nascemos como seres que vivem em comunidade. O Coronavírus é um vilão que veio para destruir o sentido de comunhão, para afastar-nos uns dos outros. Mas ele não provocou nada novo. Já vínhamos fazendo isso de outros modos, mas veladamente, mantendo muitos disfarces para nos afastarmos uns dos outros, para sermos indiferentes com o outro.
A solidão, o isolamento, a indiferença são fatores que contribuem para o surgimento e o agravamento de problemas ligados à saúde mental. Medo, angústia, ansiedade, esgotamento, desespero e até depressão fazem parte de um elenco de males que podemos enfrentar em tempos de quarentena, se não cuidarmos de nossa saúde mental com o mesmo esforço com que cuidamos de nosso corpo. É interessante que, para a saúde física, há campanhas educativas para se lavar as mãos, usar álcool em gel, alimentar-se com as fibras das frutas e legumes, ingerirmos muito liquido, praticarmos exercícios. E para a mente, o que precisamos fazer?
Perguntei a minha esposa o que ela recomendaria. Solange é psicóloga clínica, com mestrado em psicologia do trabalho e organizacional, especialista em arteterapia e psicologia positiva. Sua experiência em tratar da saúde e do bem-estar das pessoas em relações coletivas fornecem contribuições interessantes para nós em um tempo como esse. Ela, então, parou suas leituras e anotou uma lista de perguntas que podemos fazer a nós mesmos. Veja o que ela escreveu:
“Como extrair coisas boas do isolamento social? Dicas para uma boa reflexão:
1.         Qual é o meu propósito de vida, qual o sentido e o significado dela?
2.         Qual é a minha missão aqui?
3.         Qual a importância da minha família, dos amigos e daqueles que não são tão próximos a mim?
4.         O que tenho feito até aqui? Devo continuar fazendo?
5.         Quem é a pessoa que me tornei? Devo continuar sendo?
6.         Qual a minha importância e missão no mundo?
7.         Qual a minha responsabilidade como ser humano?
8.         Como enxergo as pessoas que estão a minha volta?
9.         Tenho a compreensão de que o outro é a extensão de mim?
10.     Tenho feito algo em favor do crescimento do outro?
11.     Tenho doado um pouco do meu tempo para ouvir o outro falar das suas angústias?
12.     Quando eu não estiver mais aqui, será que deixarei saudades? Como contarão a minha história?”
Tudo leva a crer que essa quarentena pode durar bem mais do que a gente imagina. Em Wuhan, a cidade onde se deu o epicentro do Coronavírus, deve observar cerca de 76 dias de isolamento social. O primeiro caso de infecção foi registrado no Brasil em 26 de fevereiro de 2020. Mas, no Rio de Janeiro, a quarentena começou oficialmente hoje (24 de março), embora o governo estadual oriente medidas de contenção desde o dia 13 de março. As previsões no Brasil apontam que devemos ter que observar essa restrição por mais uns dois ou três meses. A recomendação para não sair de casa é séria e deve ser observada por todos. Não é só uma questão de esforço individual, mas uma consciência coletiva de que não há outra saída. Embora se fale de outras possibilidades, a sociedade não pode abrir de nenhuma delas.
Essa pandemia veio revelar sentimentos que possuíamos que estavam escondidos nas sombras: desprezo aos idosos, mentalidade consumista, egoísmo e despreparo para agir em comunidade. Mas também veio nos apontar que somos capazes de superar, de construir novas formas de relacionarmos, de ver o mundo de outro modo, de se abrir para o que está além de nós mesmos. A pandemia vai passar, a quarentena não vai durar para sempre. Uma boa iniciativa é começar a cuidar de nós mesmos para sairmos dessa situação  como pessoas melhores.
Minha esposa se chama Solange Maia da Silva Chaves, psicóloga, mestre em Psicologia Social com concentração em psicologia organizacional e do trabalho, e tem especializações em Marketing, Arteterapia e Psicologia Positiva. Se precisar de ajuda, deixe um comentário logo a seguir.

domingo, 22 de março de 2020

Coronavírus: Aprendizagens em tempo de calamidade / Coronavirus: Learning in times of calamity / Coronavirus: El aprendizaje en tiempo de calamidad


Que lições podemos aprender dessa pandemia que assola o mundo? Estamos em um tempo de calamidade. Talvez você esteja entre aqueles que não concordam com isso e até ache que há um certo exagero e uma histeria com isso. Mas não duvide que estamos apenas na fase inicial da contaminação e que a tendência – levando em consideração com o que aconteceu na China e com o que acontece na Itália – é que teremos tempos muito difíceis pela frente. Vai ser um tempo que vai exigir muito de todos nós, da economia e das políticas públicas. Os que são mais ricos terão que entender que será necessário abrir mão de seus ganhos em favor de quem não tem nada. Essa fase vai ser de muitos sacrifícios, e talvez de algumas perdas, e temos que nos prepararmos para o que está por vir a fim de ajudarmos uns aos outros.
Toda fase de crise tem uma lição a ser aprendida. Qual a lição que podemos tirar desse tempo de pandemia do coronavírus? Precisamos reportar a um momento da história do cristianismo para podermos encontrar caminhos de aprendizagem para hoje. O apostolo Pedro, ao orientar os primeiros cristãos diante das perseguições da época, disse: “para que, no tempo que lhe resta, não viva mais para satisfazer os maus desejos humanos, mas sim para fazer a vontade de Deus” (1 Pedro 4.2). Essa palavra serve para nós também. Estamos vivendo um tempo de perplexidade diante das possibilidades que estão por vir.
As pessoas mais conceituadas que têm emitido opiniões sobre os últimos acontecimentos e sobre o que podemos fazer diante do que está acometendo a humanidade em geral, todos usam uma palavra em comum: solidariedade. A única coisa que podemos fazer é sermos solidários. Essa palavra tem chamado a atenção das pessoas no mundo todo. A humanidade está perplexa. Chegamos a um ponto de descobrirmos que éramos orientados por uma grande ilusão. Tínhamos a ilusão de que possuíamos o controle de tudo, que a ciência poderia dar todas as respostas, de que tínhamos um sistema econômico que podia comprar soluções para todos os problemas, que detínhamos o poder nas mãos e que havíamos chegado ao auge de nossa capacidade de criação e de produção. Na Itália, as famílias não conseguem sequer sepultar os seus mortos nem se despedir deles.
Será que esse vírus não veio para dizer para a humanidade toda que somos limitados, que precisamos abrir mão de nossos preconceitos, que é hora de reconhecermos que somos membros de uma mesma família humana e vivemos numa mesma casa comum, que precisamos da graça de Deus em nossa vida? Há relatos de que as pessoas estão redescobrindo belezas naturais e valores sociais e culturais que haviam sido esquecidos. Tudo isso tem ajudado a vermos que a humanidade adotou um modo de vida completamente distante do propósito de Deus para a vida, diferente do que seria ideal para as pessoas, que vivemos até aqui um grande engano. No meio dessa dor, de luta e de busca de respostas contra o avanço do vírus, a gente começa a ter esses vislumbres de que estávamos errados até aqui, que alguma coisa escapou do controle e que está na hora de restaurar isso.
Em vez de ficarmos enclausurados esperando alguma resposta milagrosa chegar ou que algum remédio mágico possa ser encontrado, vamos aproveitar para aprender algumas lições a partir dessas situações dolorosas que estamos vivendo. No dia 22 de março, o filósofo italiano Domenico de Masi escreveu no jornal A Folha de São Paulo sobre sua perplexidade ao ver a gloriosa cidade de Roma, onde vive, vazia e sem ninguém nas ruas. Ele afirmou: “Talvez tenhamos aprendido que o caso agora é de vida ou de morte e que ninguém pode enfrentar sozinho um vírus tão ardiloso e potente”.
Isso lembra um conselho de Paulo a Tito: “[A graça] nos ensina a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver de maneira sensata, justa e piedosa nesta era presente” (Tito 2.12). Nesse tempo, precisamos descobrir o quanto estamos precisando da graça de Deus em nossa vida, o quanto carecemos do amor, da misericórdia e da compaixão de Deus. Essa graça maravilhosa, que faz falta na vida, foi deixada para trás. A humanidade a abandou em troca de conhecimento, de poder e de capacidade econômica. Mas é ela que vai nos ajudar a viver nesse tempo de maneira sensata, justa e piedosa, que pode nos levar a rejeitar paixões ilusórias, que vai nos libertar do engano que o conhecimento, o poder e a economia nos proporcionaram até aqui. Essa graça vai nos conduzir adiante para uma nova vida daqui para frente.
Se é isso que pode acontecer, precisamos pensar em alguns sentidos da graça, de como ela se realiza na vida. Há quatro sentidos da graça na vida que precisam ser resgatados. O primeiro deles é o da comunhão. Graça tem a ver com a oportunidade de estarmos juntos e de descobrirmos que o outro é o melhor retrato que temos de Deus para nós. Fazemos parte de uma aldeia global em que todos que estão produzindo alguma coisa em termos de conhecimento e de cultura importam. Precisamos descobrir que precisamos de todos e todas, de todos os saberes e de todas as formas de vida. O segundo sentido é o da solidariedade. Não se iluda, não há ainda (até este presente momento) um remédio na farmacologia para essa pandemia. A doença provocada pelo coronavírus só tem um remédio, que é a solidariedade. O terceiro sentido é o da esperança. As pessoas estão entrando em pânico, mas é preciso desenvolver a crença de que todos sairemos dessa, de que Deus está cuidando de nós e que precisamos fazer a nossa parte também. Isso nos leva a pensar que toda vida importa, que o nosso compromisso é de lutar até a última pessoa a ser salva. Precisamos estar juntos ao combinar nossas ações com o cuidado divino até superarmos tudo isso. O quarto sentido é o da humanidade. A graça nos ajuda a sermos humanos melhores, ela restaura o humano que há em nós, ela desperta em nós o desejo por atos que promovam a dignidade da pessoa humana. As políticas públicas, as práticas econômicas, as decisões corporativas devem estar voltadas para a garantia de direitos que valorizam a dignidade humana.
Esse tempo de calamidade, de pandemia, de peste é uma oportunidade para termos mais comunhão, sermos mais solidários, a termos mais esperança e a sermos mais humanos. A graça nos ajuda a construirmos essa condição. É preciso relembrar a experiência de Jó. Em meio aos momentos de aflição que enfrentou, ele não abriu mão de crer que á uma chance de restauração. Ele dizia: Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25). Os prognósticos apontam para o fato de que o quadro geral vai piorar. Mas tenha certeza que a vitória vai chegar e que poderemos enfrentar esse tempo juntos.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Dez conselhos para quarentena / Ten advices for quarantine / Diez consejos de cuarentena


1. Distância social não significa isolamento social. Comunique-se.
2. Encontre novas formas de demonstrar afeto, diferentes de aperto de mão, abraço e beijo. Seja gentil e afetuoso com suas palavras.
3. Lave sempre as mãos com água e sabão, use álcool gel, mantenha alimentação saudável, beba muito líquido, não saia de casa. E lembre-se de quem vive em situação de rua. Eles precisam do mesmo cuidado. Encontre formas de ser solidário.
4. Quem receita remédio é médico. Nada de automedicação nesse momento, nem nunca. Para se cuidar em tempo de pandemia do coronavírus, siga orientações da OMS para a sociedade.
5. Cuide dos idosos. Ajude-os nas compras, na higienização de suas casas e nas tarefas domésticas. Eles são os mais vulneráveis.
6. Se você tem prestadores de serviço que o auxiliam, libere-os para ficar em casa, mas pague-os como se tivessem comparecido para trabalhar.
7. Pratique formas e expressões culturais. Assista filmes, leia livros, ouça músicas em casa. Explore o que melhor há na internet.
8. Desenvolva uma atividade prática ligada ao seu talento. Escreva, componha música, faça bordado, tricô ou croché, costure, desenhe, pinte, faça escultura ou qualquer outra forma. É importante ocupar sua mente com aquilo que lhe dá prazer.
9. Desenvolva espiritualidade. Pratique meditação, reserve um tempo para orar, leia mais a Bíblia. Isso ajudará você a ter esperança.
10. Aprenda a usar a tecnologia para o bem. Use as redes sociais para se comunicar com familiares e amigos, para saber como eles estão, para compartilhar notícias boas e participar de videoconferências como uma forma de valorizar a vida.

terça-feira, 17 de março de 2020

Espiritualidade em tempo de Coronavírus / Spirituality in times of Coronavirus / Espiritualidad en tiempos de Coronavirus



Qual é a espiritualidade que podemos desenvolver nesses tempos de pandemia de Coronavírus? Essa fase de crise, de calamidade, de surto é importante para aprendermos algumas lições necessárias para a vida. Quem imaginou, há dois meses, que o mundo passaria por esse quadro, que tem afetado as economias de todos os países? Uma das coisas que temos a ressaltar é que muitas notícias que chegam até nós está repleta de desinformação e de temores.
Em termos sociais, temos visto o quanto as políticas de saúde pública são importantes, o quanto o trabalho científico é fundamental e o quanto a cultura é relevante. Essa é uma fase importante para revermos conceitos sobre economia e política de modo que haja planejamento e ações que sirvam de prevenção para as nossas fragilidades.
Mas é uma fase importante também para aprendermos algumas coisas que a Bíblia procura nos mostrar. E a primeira delas é a de que Deus cuida de nós. Qual é a palavra para hoje, para o mundo que está com medo de ser infectado pelo vírus e de ver alguém querido ser atingido pela doença, ou quem sabe de perder alguém que ama? É a boa notícia de que Deus tem cuidado de nós. A Bíblia diz: Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês” (1 Pedro 5.7).
Não conheço outra promessa mais preciosa para a humanidade do que essa, de que Deus está cuidando da gente. Pode até parecer que Deus esteja indiferente, que Ele se esqueceu de nós, que o mundo está abandonado por Deus, mas essa não é a realidade. Nós vivemos no mundo orientado tanto pela nossa responsabilidade quanto pelo exercício da liberdade. É nesse meio entre responsabilidade e liberdade que se encontra o cuidado divino. Deus trabalha por nós, provê o sustento, mantém sua promessa, mas não tira a nossa responsabilidade nem a nossa liberdade.
Nós estamos diante de uma sociedade que desenvolveu uma cultura do medo, e até de uma teologia do medo, que se baseia na crença de que os males e doenças que nos assolam são resultado da ação de um deus severo e castigador. Essa não é a mensagem bíblica. A fé cristã é firmada na promessa divina e na esperança. Precisamos desenvolver uma teologia do cuidado que nos leve a nos preocuparmos com as pessoas desse tempo. Como podemos, dentro de uma situação de medo e de ameaça, desenvolver uma teologia do cuidado? É através de uma espiritualidade nova.
Uma espiritualidade para esse tempo de crise, em que as pessoas estão tomadas pelo medo, envolve pelo menos três aspectos que seriam necessários destacar. Muitas vezes a religião foi utilizada como instrumento de medo, mas essa não é a realidade experimentada pelos cristãos em todo o tempo. O fato é que a história da igreja e do cristianismo foi atravessada por vários episódios de surtos, de epidemias doenças graves. Parece que a história da humanidade de epidemia em epidemia. E, em todos esses episódios, os cristãos se destacaram como aqueles que servem como pessoas que cuidam, muitas vezes colocam em risco sua própria vida, de se contaminarem e de se envolverem diretamente com os que sofrem, para poder cuidar de pessoas em tempo de crise. Essa é a marca do cristianismo em tempo de crise. Os cristãos sempre foi o grupo de pessoas que se destacou por se mobilizar, de se motivar e colocar a sua vida a serviço do cuidado. Uma espiritualidade do cuidado é aquela que permite Deus agir entre nós, fazendo de cada um de nós seus instrumentos para expressar o seu cuidado divino sobre a humanidade.
O primeiro aspecto da espiritualidade do cuidado diz respeito à nossa relação com Deus. Precisamos abrir espaço para experimentar um novo modelo de vida, que emerge da palavra de Deus. De um modo geral, temos visto como Deus tem sido lançado para fora da espiritualidade, ao ponto de falarmos de uma espiritualidade sem Deus, diferente daquela que foi ensinada nas Escrituras. Isso afeta inclusive a muitos cristãos, que afirmam que amam a Deus, mas vivem como se Deus não existisse, com sentimentos estranhos e práticas morais estranhas aos ensinos bíblicos. Muitos desses cristãos são líderes e autoridades religiosas que desenvolvem um discurso completamente distante da proposta do amor divino. A Bíblia ensina que o cuidado de Deus sobre a humanidade se dá a partir de dois aspectos: o da justiça e o da misericórdia. Deus sempre age por justiça, ao lado da justiça, Ele não se familiariza com a injustiça de qualquer natureza. E Deus também age orientado por sua misericórdia, que conduz ao acolhimento e à prática do amor. Precisamos desenvolver uma espiritualidade como se Deus estivesse agindo por meio de nossas mãos, de nossos pés, de nossa voz, de nosso pensamento e até do nosso coração.
O segundo aspecto dessa espiritualidade do cuidado tem a ver com o espaço do outro em nossa relação. Cada vez mais, temos nos afastados uns dos outros, seja pelo individualismo, seja pela indiferença ou até mesmo o preconceito. Nessa fase de tratamento dos riscos do coronavírus, precisamos cuidar também dos riscos do afastamento social. Hoje dispomos de um meio para nos aproximar, que é a internet, e também de um instrumento, que é o celular. Embora muitos digam que a internet e o celular afastaram as pessoas, podemos descobrir novas possibilidades de relacionamento em tempos de quarentena a partir desses modos de comunicação, como uma tecnologia que nos aproxima uns dos outros, para construir relações que nos consolam, que nos edificam e nos transformam. Esse é um tempo para praticarmos novas expressões de nossa humanidade, a partir da solidariedade, do respeito mútuo e da atenção à necessidade do outro a fim de cuidar, cuidar-se e de ser cuidado.
O terceiro aspecto dessa espiritualidade é a necessidade que temos de aprender a desenvolver esperança. A graça de Deus nos confere a possibilidade de desenvolver esperança. Deus está cuidando de nós, e a primeira marca disso é que ele deixou promessas. Diante da calamidade, é muito comum se levantarem anunciadores de um fim iminente. Alguns até usam argumentos bíblicos para dizer que o fim dos tempos será assim, com guerras, catástrofes e epidemias. Mas Jesus alertou para o fato de que não deveríamos ter medo, pois esse ainda não é o fim. Ele disse: “[...] É necessário que tais coisas aconteçam, mas ainda não é o fim” (Marcos 13.7). Mas ele disse também: “Será para vocês uma oportunidade de dar testemunho” (Lucas 21.13). Nós estamos vivendo uma fase em que a humanidade é chamada a enfrentar desafios. E nós vamos superar mais essa como já passamos por tantas outras. Podemos ter esperança de dias melhores porque Deus prometeu cuidar de nós até o fim. A promessa divina fala também de novos céus e nova terra, das mansões celestiais que estão sendo preparadas para nós. Sabemos que podemos passar por muitas provações e lutas, mas no final dessa trajetória tem uma vitória garantida por Deus. Podemos ter esperança, porque Deus está conosco e Ele nos dará a vitória.
Nesse tempo estranho de pandemia em que a gente é tentado a pensar que Deus abandonou a humanidade, é bom lembrar que Deus está nos chamando a uma relação Ele. Precisamos abrir espaço em nossa vida para uma nova relação com Deus, para uma relação de cuidado com o outro e para aprender a desenvolver esperança. O grande recado divino para todas as pessoas é que Deus está cuidando de cada uma delas e que ele quer continuar fazendo isso através de nós.

terça-feira, 10 de março de 2020

Bem viver: um conceito plural / Well Living: a plural concept / Vivir Bien: un concepto plural


O conceito de Bem Viver é uma oportunidade para imaginar outros mundos, como afirma Alberto Acosta no livro O Bem Viver. Trata-se de um conceito que se contrapõe às noções de bem-estar e de la dolce vitta construídos pelo pensamento ocidental. Entretanto, delimitar a sua abrangência é uma tarefa que implica conhecer as várias experiências vividas pelos povos originários da América do Sul e sua relação com a natureza.
Em espanhol, os equatorianos se referem ao Buen Vivir, enquanto os bolivianos falam do Vivir Bien. Em português, o Bem Viver comporta uma pluralidade de significados. Todas essas expressões surgiram como traduções de formas linguísticas dos povos originários em seus modos de construir formas coletivas de vida. Referem-se, portanto, a uma visão de mundo desenvolvida por aqueles que habitavam o continente antes da chegada dos europeus.
Aquilo que tem sido chamado de Bem Viver nos estudos e nas práticas sociais e políticas de organização da sociedade tem a ver com um esforço de resgatar os saberes dos povos originários e elaborar uma alternativa viável à lógica exploratória e dominadora trazida pelos colonizadores. É um conceito em construção que visa superar a ideia do desenvolvimentismo, do consumismo e da lógica da acumulação, para dar lugar a uma visão mais abrangente, plural e decolonial. É uma tarefa tanto social quanto política, como afirma o próprio Acosta: “Nosso mundo tem de ser recriado a partir do âmbito comunitário. Como consequência, temos de impulsionar um processo de transições movido por novas utopias. Outro mundo será possível se for pensado e organizado comunitariamente a partir dos Direitos Humanos – políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais dos indivíduos, das famílias e dos povos – e dos Direitos da Natureza” (p. 26).
Uma das proposta para compreensão do Bem Viver é resgatar a diversidade linguística que os povos originários possuíam e que, de alguma forma, foram preservados após mais de 500 anos de colonização. Cada grupo ou etnia tinha sua forma de compreender e de construir seu jeito de ser e expressavam isso através de suas linguagens.
Quatro expressões se destacam, quando se tenta fazer um inventário linguístico a respeito do sentido do Bem Viver para os povos originários da América do Sul: Sumak Kawsai do povo Quíchua, Suma Qamaña do povo Aymara, Teko Porã dos Guaranis e Küme Mongen do povo Mapuche.
Sumak Kawsai é uma expressão do idioma quíchua, que abrange tribos no Equador e Peru, e quer dizer “viver plenamente” ou “plenitude da vida”. Trata-se de uma forma de enfrentar os desafios da vida, estimulando a assumir compromissos com a qualidade de vida tanto pessoal quanto de toda a humanidade. É a busca de uma harmonia do ser humano consigo, com o outro e com a natureza. É um princípio que se opõe a uma mentalidade voltada para a morte.
O princípio do Sumak Kawsai abrange três espaços vitais que orientam a conduta das pessoas, a ética, as ciências e até a religião. São eles: (a) O mundo de cima – que é mais do que a representação celeste, pois envolve o mistério e o sagrado. A relação com o mundo de cima promove um ideal de bondade e de perfeição, de práticas de adoração e de oração. Cada pessoa deve almejar alcançá-lo. (b) O mundo daqui – a nossa casa comum, marcado pelos fenômenos da natureza. Cada pessoa deve compreender que é parte do mundo, visto que cada ser contribui para o bem viver. E (c) o mundo de baixo – que envolve os poderes da destruição e do mal, representado pelas profundezas. É preciso desenvolver uma atitude respeitosa com esses poderes, como também evitar e afastar-se deles.
Os povos Aymara, que vive na Bolívia, se referiam ao Bem Viver com a expressão Suma Qamaña, que quer dizer, “bem conviver”. Significa “habitar com alguém” de maneira que ambos se protejam e se cuidem dos perigos, dos inimigos e até dos conflitos interpessoais e da fadiga. Isso se dava em torno de um círculo que as comunidades formavam em torno de si, que estabelecia o espaço para vida comum. Guando se diz que alguém vive bem tem o sentido de que todo o contexto em que a vida se dá é bom. Para viver bem, é preciso saber conviver com outro, acolhê-lo e apoiá-lo, mas também é preciso aproveitar bem as oportunidades e condições de vida que a natureza oferece. Trata-se de um equilíbrio entre a vida pessoal e as formas de existência no mundo, como experiência de possuir o necessário para se viver e de trabalhar por condições para que todos possuam os mesmos direitos e recursos. É um modelo de vida de austeridade e de satisfação com o que se tem em que ninguém deve ser excluído, nem as pessoas, nem a divindade, nem os demais seres vivos, nem a natureza. O Bem Conviver, portanto, envolve uma nova perspectiva de vida que implica cuidado com o outro, solidariedade, comunhão, reciprocidade, respeito e tolerância. O princípio do Bem Conviver não tem por objetivo mudar o mundo ou transformá-lo, mas aceitá-lo como ele é e viver nele de forma comunitária.
Teko Porã é a forma da língua Guarani traduzir o Bem Viver. Significa literalmente “vida boa”ou até mesmo “belo caminho”. Os guaranis ocupam grande parte da Bolívia, do Paraguai, Uruguais e Argentina, além da região Sul do Brasil e do Mato Grosso do Sul, onde são conhecidos também como Kaiowás. O Guarani, juntamente com o quíchua, é uma família linguística pré-colombiana das mais faladas na América Latina. O ideal de Bem Viver guarani se baseia no princípio da reciprocidade. A vida é caracterizada pela relação com a terra e a convivência com todos os seres que existem nela. Trata-se de uma relação que define o modo de ser, a cultura, as relações econômicas e sociais, a política e a religião. É o lugar “onde somos o que somos”. O guarani precisa da sua terra para para viver sua condição social e cultural.
Para os guaranis, a colonização foi um grande mal que os privaram de sua terra. O estilo de vida trazido pelos colonizadores é um “mal viver”, dominado pela exploração, pela ganância e pela competição. A história da colonização é marcada pela progressão do mal. Para vencê-lo, o Bem Viver é como uma utopia que conduz à prática da generosidade e da liberdade de expressão. Bens e palavras precisam circular livremente nas comunidades guaranis. A verdadeira liberdade só é possível através da convivência entre as pessoas um,a relação de complementaridade.
Küme Mongen, na linguagem do povo Mapuche, que habita o Chile e o Sul da Argentina, quer dizer viver em harmonia, como uma sabedoria de vida que contempla tanto os valores materiais como imateriais, o conhecimento de si, as relações interpessoais e as relações sociopolíticas. É uma preocupação com a qualidade de vida que Viver bem implica a conquista de condições ou características que tipificam o que é comumente chamado de integralidade do ser.
A proposta de Bem Viver dos mapuches consiste em dois aspectos: (a) a relação com a terra e a vida coletiva para viver em harmonia com a natureza e os demais; e (b) A reivindicação dos saberes ancestrais para a vida continue se expressando em toda a sua diversidade. O Papa Francisco, quando de sua visita ao Chile em janeiro de 2018, disse em sua homilia: “Todos nós que, de certo modo, somos povo formado da terra (cf. Gn 2, 7), estamos chamados ao bom viver (Küme Mongen), como no-lo recorda a sabedoria ancestral do povo Mapuche. Quanto caminho a percorrer, quanto caminho para aprender! Küme Mongen, um anseio profundo que brota não só dos nossos corações, mas ressoa como um grito, como um canto em toda a criação. Por isso, irmãos, pelos filhos desta terra, pelos filhos dos seus filhos, digamos com Jesus ao Pai: que também nós sejamos um só; fazei-nos artesãos de unidade.”
O Bem Viver mapuche está associado a uma profunda integração com a natureza, em equilíbrio com as forças e os seres que a habitam. Devemos reconstruir um modo de vida na sociedade capaz de entender a vida com um sentido mais digno, mais solidário e mais recíproco para todos, para todas as culturas, para todos os povos, com respeito à diversidade. É uma luta pelo amor à vida, pelo amor de todos os povos.
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