quinta-feira, 29 de abril de 2010

Espiritualidade e família / Spirituality and family / La espiritualidad y la família

Desde crianças somos acostumados aos contos de fada. Normalmente, essas histórias traziam embutidas uma ideia que acabou fazendo parte de nosso imaginário e formando as expectativas que regem muitos relacionamentos. Elas sempre começavam com “era uma vez” e terminavam com o “e foram felizes para sempre”. De um lado, construímos uma noção de que nossos desejos e aspirações estão ligados a uma realidade da qual não fazemos parte. O ideal de uma vida feliz e de realizações nos relacionamentos se encontra muito distante de nós.
Com isso, alimentamos nossos sonhos com a esperança de um mundo perfeito em que todos os obstáculos podem ser superados apenas pela realização do inefável e do mágico. Aquelas histórias nutriam o desejo ingênuo de uma vida feliz a partir da realização dos sonhos, que em um dado momento, como que por encanto, seriam finalmente consumados, simbolizado pelo casamento. Nesse caso, o casamento resumia todo o ideal da vida feliz e de uma felicidade duradoura.
O ruim é que as histórias terminavam aí. Ficávamos sem saber sobre o que vem depois. Como vêm os filhos? O que fazer nas adversidades? E quando chega a hora da perda? Num tempo como esse, em que o casamento passa por tantos questionamentos, é preciso reconhecer que há um outro olhar possível nessa área. Primeiro, para afirmarmos que há vida depois do casamento. Segundo, a união de duas vidas não pode ser vista como um fim em si mesmo. Terceiro, o casamento é o começo de uma nova caminhada, a dois.
Ser feliz para sempre pode ter o sentido de que é possível construir a felicidade a dois. Não é fácil, mas é possível. A vida conjugal implica amadurecimento pessoal porque envolve a aquisição de traços da personalidade que só se realizam no contexto do casamento. O interessante é que a maioria dos nossos problemas estão ligados aos relacionamentos afetivos, principalmente o matrimônio. Isso ganha a dimensão de problema exatamente porque o casamento está inserido num ponto de tensão, que é inerente à nossa condição humana. Envolve o conflito entre o que eu quero e o que eu posso, tanto para mim quanto para o outro.
O amor consiste no fato de que duas vidas se habilitam a começar essa caminhada nova, sem que isso seja uma ameaça para a identidade sua e do outro, sem violar o direito seu e do outro de serem felizes.
Uma vida assim não nasce pronta. Ela é, como tudo na vida, resultado de aprendizagem. Uma aprendizagem a dois, com todos os erros e acertos, fracassos e sucessos que isso envolve. A felicidade está no fato de olhar para trás e ver que valeu a pena ter tentado, e que você seria capaz de continuar tentando, e de tentar de novo se tivesse a chance de recomeçar.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Eleição presidencial e utopia / Presidential election and utopia / Elecciones presidenciales y la utopía

Votei em Lula em todas as minhas experiências em eleições diretas para a presidência da república, confesso. E o fiz conscientemente, alimentando o sonho utópico de uma mudança na forma como o poder político se realizou no Brasil até então. Entendi – como entendo ainda – que o país não podia mais ser entregue a uma forma de governo que privilegia uma minoria de afortunados, que teve acesso a uma escola de qualidade (alguns até com formação no exterior), que detém a propriedade e a explora de forma que garanta unicamente seus direitos em detrimento do direito dos reais participantes do meio de produção, que são os trabalhadores.
Hoje me vejo diante de um impasse. Aquela utopia acabou. Não a de ver um país justo e governado para o interesse de quem realmente faz a construção do Brasil, mas a utopia de saber que aquele elemento simbólico que sintetizava todas as utopias chegou ao fim. E não é que eu tenha me decepcionado. Nunca tive a ingenuidade de pensar que teríamos um governo exemplar, livre de corrupção e equívocos. O fato é que houve uma guinada histórica do país, de tal forma que é visível que alguma coisa melhorou para as camadas menos favorecidas.
Lembro-me do meu tempo de secundarista. Isso já tem uns 35 anos. Eu e meus colegas de turma construíamos a utopia de um Brasil que tem jeito, mesmo com a herança dos anos de chumbo da ditadura militar. Tinha até o Sérgio que dizia que a esperança do país era ter políticos como Franco Montoro e FHC como presidentes da república. Isso antes de existir o PSDB. Santa ingenuidade. Mal sabia ele que isso viria se tornar realidade. Resultado: pago imposto de renda até hoje, eu e todo assalariado que ganha pouco mais de 3 salários-mínimos. Isso sim foi traumático e decepcionante. Mexeu com a parte mais sensível do brasileiro, que é o bolso. Eu nunca vou esquecer isso.
Mais uma eleição se aproxima. Dessa vez, sem as utopias das eleições anteriores. Preciso rapidamente construir novas utopias, porque o que se oferece é muito inseguro e não me garante que será possível continuar pensando num país melhor. Nessa fase em que os candidatos vão fazendo os últimos ajustes para começar a campanha eleitoral, preciso pensar no que eu gostaria de ouvir deles, de conhecer da vida deles, para fazer uma escolha que me deixe com a consciência tranquila.
Pelo menos algumas coisas já decidi: não quero obras que garantam a aceleração do crescimento, não quero programas que façam ajustes no modelo econômico, não quero programas de empregabilidade, não quero proposta de incrementos em programa de saúde, não quero promessas de mais policiamento nas ruas. Isso é dever político de todo e qualquer governante. Ele é eleito para isso E não me venham com essa história que fulano é pai disso ou mãe daquilo que ajudou a melhorar o país em um aspecto ou outro. Se o fizeram, foi porque tinham o dever de fazê-lo, pelas obrigações que o cargo que ocupavam lhes impunham. E ninguém pode se dizer necessário, quando tinham que fazer o que era do seu dever. E se não o fizessem seriam negligentes.
Eu estou a procura de gente que fale que é urgente pensar nas gerações futuras, no legado que vamos deixar em relação ao mundo em que vivemos, gente que assuma o compromisso da luta por um modelo de sustentabilidade, por se posicionar ao lado de gente que sofre as injustiças que a sociedade lhes impõe de tantas formas, na saúde, na educação, no trabalho, na estrutura jurídica. Gente que não se mostre indiferente durante o período não eleitoral, mas que tem um discurso pronto para angariar votos. Gente que não faz aliança com partidos e setores que já estão contaminados por esse modelo que aí está.
É só mais uma utopia. Eu preciso dela para continuar acreditando que é possível um Brasil melhor. É para ter a sensação de que não fui omisso ao usar o único instrumento de que disponho para interferir na formação da estrutura de governo que eu desejo para o meu país.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Pedofilia e religiosidade: reflexões sobre o abuso sexual de menores / Pedophilia and religiosity / la pedofilia y la religiosidad

Os escândalos provocados pelas denúncias de abuso sexual por parte de membros do clero é algo que choca a humanidade. Isso nos lembra que há muita gente indefesa, que vive oprimida por uma mentalidade que desconhece a dignidade do ser humano e que, ainda que a afirme, a vulgariza. Mas ela é apenas uma face – cruel, sem dúvida alguma – da dura face como são tratados os oprimidos e desvalidos da humanidade. O trabalho infantil, o tráfico de menores, a prostituição infantil, a falta de acesso à escolaridade, a desnutrição são as outras faces de uma mesma realidade.
O problema é que a pedofilia praticada por membros do clero é encoberta por uma moralidade que está baseada num equívoco: o engano da afirmação de uma moral que valoriza a submissão e constrói a ideia um sujeito dócil e servil. No fundo, esse é o ingrediente, por um lado, para a exploração e manipulação do outro por parte das estruturas de poder. Por outro, gera o sentimento de angústia e desespero por parte de quem sofre tal ação, indefesos que nos tornamos diante da banalização das relações.
A pedofilia, na verdade, não é um mal contemporâneo. Os antigos mestres gregos escolhiam seus discípulos pela sua formosura. Os exploradores colonialistas usavam suas mulatas e mucamas. Acredito até que eu não existiria, já que minha avó materna, descendente de indígenas do sul, foi seduzida na sua pré-adolescência por um imigrante italiano e se tornou mãe aos 13 anos de idade. Isso não quer dizer que antes não fosse um mal. Apenas não se avaliava as consequências de tal atitude na vida de uma criança que teve a sua infância roubada.
Elevada à categoria de crime, nos atinge a todos. Coloca em suspeição quem tem o dever de servir como guias para uma humanidade que anda errante, como ovelhas sem pastor. Expõe a nossa fragilidade, revela a facilidade com que podemos sofrer o engano e nos torna indefesos diante das estruturas de poder. Por isso que os casos de pedofilia praticados por religiosos devem ser tratados como crimes pela sociedade e não devem passar impunes. Não importa quem os pratique: sejam eles padres, bispos, monsenhores, monges, religiosos ou não.
O que precisa ficar claro é que a pedofilia não é uma questão relacionada com o fenômeno religioso. Não é o celibato que provoca isso (embora eu não seja um celibatário). Não é o homossexualismo que provoca isso (embora alguns casos de abuso envolvam pessoas do mesmo sexo). Ela tem a ver com a maneira como a sociedade entende a relação com o outro, fundada num sentimento hedonista extremado e individualista. Ela nos agride porque mexe com a maneira como estamos tratando a geração futura. Ela nos choca porque nos sentimos indefesos, incapazes de encontrar sentido para as nossas próprias fragilidades. Ou a gente muda a maneira como entendemos a nossa condição humana e nossas relações ou não há quem nos possa defender.

domingo, 18 de abril de 2010

Espiritualidade e imaginário / Spirituality and imaginary / Espiritualidad y lo imaginario

A preocupação com a dimensão espiritual remonta ao tempo dos gregos. A própria palavra grega pneuma, que quer dizer sopro ou mesmo a respiração vital, foi empregada como uma metáfora para descrever o que está relacionado com o sobrenatural e ao imaginário, na perspectiva mitológica grega. Eles desenvolviam uma analogia entre o ar e a respiração, o princípio que permeia tanto o universo quanto o homem e preenche todos os vazios. Esse ar interno é a fonte de toda a inspiração e do pensamento, o princípio que dá sentido a todas as coisas.
Da mesma forma que a alma, como psyche, está presente no corpo e lhe é inata, o espírito divino está espalhado através do kosmos. A alma como pensamento puro é o que permite a ligação entre o material e o transcendente, a ligação do homem com deus como um bem absoluto. Os estoicos entenderam o pneuma como o princípio vital que está em todo o universo, como uma espécie de fluido que age por tensão, como se fosse um campo de força, mantendo unidas as partes do universo, impedindo, assim, que elas se dispersem no vazio. Ao mesmo tempo, é o pneuma que mantém a individualidade de cada ser como se fosse a sua alma. Esse princípio vital é o logos, a alma do mundo, que está presente em toda matéria. O espírito é o princípio imanente que põe ordem em todo o universo.
A tradição judaico-cristã trouxe a compreensão do homem como criação a partir de uma substância terrena e de um espírito divino. Isso remete à compreensão de que o homem é parte da natureza divina enquanto força motriz de tudo o que existe (nous). No Antigo Testamento, o espírito divino é tratado como uma sabedoria, é o sopro animador (ruach) que invade todo o universo. No Novo Testamento surge a ênfase na noção do Espírito Santo como pessoa, a tradução da expressão hebraica ruach hakodesh, a terceira pessoa da trindade divina. Daí a ideia de Deus como espírito pessoal. Nos evangelhos, ele é apresentado como paracleto, uma espécie de defensor, ajudador ou conselheiro. A melhor tradução para essa palavra é realmente “consolador”.
O apóstolo Paulo desenvolveu em sua teologia a compreensão do novo homem que nasce em Cristo, a nova criatura. Ele é espiritual na medida em que é orientado pelo Espírito Santo, que habita em seu coração. Isso se opõe ao “espírito carnal”, que se refere à vida unicamente guiada pela razão.
Mais adiante, na filosofia moderna, Descartes trata do espírito como sendo eu mesmo, que se opõe a corpo e matéria, uma vez que é indivisível e totalizante. Foi com Hegel que passou-se a considerar a essência do espírito como liberdade, que se concretiza nas ações do homem, na família, na sociedade, no estado. O espírito é tratado como a unidade na qual as contradições, tais como infinito e o finito, são abraçadas e sintetizadas. É o ser para si, que se desenvolve como espírito subjetivo (consciência), espírito objetivo (moralidade) e espírito absoluto (através da arte e da religião).
O que se vê com isso é que a noção de espiritualidade está ligada a um elemento comum que povoa a vida do homem, que é o imaginário. Seja ele voltado para o divino ou para si mesmo, o imaginário é a base na qual o homem busca ordenar toda a sua vida. Para os que se voltam para o divino, trata-se de uma atitude de abertura e escuta das escrituras (ou mesmo de oráculos) como guia da sua existência. Para os que se voltam para si ou para um outro não divino, a existência é marcada por valores que estão relacionados com a realização pessoal e a superação de suas fraquezas. A espiritualidade, de um modo geral, é ontologicamente uma realidade presente no ser humano.
O que se quer afirmar aqui é que a questão da espiritualidade não é meramente religiosa. Ela está relacionada à subjetividade e à interioridade. Trata-se de uma reeducação de si que nos leva à comunhão conosco mesmo, para a comunhão com a natureza, com o próximo e com Deus. Acredito que é nesta reeducação da nova vida que o indivíduo se abre para a construção de um novo sentido para as situações vividas.
A espiritualidade cristã se difere dessas inclinações do espírito por estar permeada por um Deus que se apresenta pessoalmente, que se revela na pessoa de Jesus Cristo, que diz “eu sou”. É o Deus que tem uma identidade, que mostra o seu rosto, que se mistura com gente pecadora. Para usar uma expressão de Frei Beto, nossa espiritualidade se baseia num Deus que apresenta curriculum, pois ele é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó; num Deus de segunda categoria, que precisa de seis dias para criar o mundo e depois ainda de mais um dia para poder descansar, num Deus fraco que escolhe amar e se entregar por gente pecadora, num Deus que se esvazia de si mesmo e se revela como homem historicamente, na pessoa de Jesus Cristo; num Deus Espírito que se faz impotente, que geme por uma humanidade que não o reconhece.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Espiritualidade como experiência de Deus e de si mesmo / Spirituality as an experience of God and yourself / La espiritualidad como una experiencia

A espiritualidade como experiência de Deus e de si mesmo nasce de uma necessidade de se ordenar a própria vida. Essa espiritualidade, porém, não acontece repentinamente. Isso supõe uma conversão, que é antecedida por uma fase de preparação, um tempo para se dar conta da necessidade de uma mudança profunda e genuína, ao se compreender como alguém que se encontra distante de Deus.
Essa preparação implica parar a rotina frenética do cotidiano para que a gente se perceba como alguém amado por Deus. É uma experiência de desespero, que desperta a necessidade de sermos aceitos, acolhidos e perdoados por alguém que tanto nos ama, mesmo sem termos nada de amável em nós mesmos. Trata-se de um tempo de peregrinação em que se reconhece que tudo vem de Deus e que tudo volta para Deus.
A percepção de que todas as coisas estão orientadas para Deus é o princípio fundador dessa experiência de encontro, na qual eu me insiro e desperto para Deus como um fim último da minha existência. Essa é a experiência que nos dá a compreensão de que só há vida de fato em Deus.
Isso nos confere a capacidade de dar um salto das coisas visíveis para as invisíveis, do finito para o eterno. Isso nos chama ao sentido da existência e nos remete a um movimento e uma reordenação da vida a Deus. Quando a reflexão aponta para uma reorientação da vida, a gente se dá conta de que nós não somos resultado do acaso, mas criados para um propósito. A questão é: se sou criado para um propósito, como deve ser a minha vida? O propósito da minha vida se encontra em Deus e cabe a mim buscar uma vida que seja para a maior glória dele.
O homem é criado para um propósito divino e Deus coloca tudo a serviço desse mesmo homem a fim de que ele alcance o fim para o qual foi criado. A vida que resulta dessa compreensão deve ser marcada pela nossa capacidade de se servir das coisas criadas por Deus naquelas circunstâncias que nos ajudem a cumprir o propósito para o qual existimos. Nesse sentido, somos livres para fazer as melhores escolhas nessa direção. E é da minha inteira capacidade desejar aquilo que mais contribui para o cumprimento desse propósito divino.
A experiência de Deus nessa perspectiva é uma experiência de circularidade. Tem a ver com o movimento que expressa a origem do homem a partir de Deus, que o remete a um encontro com Deus como fim último de sua existência e promove um retorno a si mesmo como ser no mundo.
É daí que surge a necessidade da celebração exultante a esse Deus que me remete de volta a mim mesmo como expressão do seu amor. Surge também um sentimento de temor, uma reverência respeitosa que me leva a não esquecer o amor que Deus tem por mim. E é isso que ainda me impulsiona ao serviço em favor do outro e a Deus. Servir é amar sempre. É aceitar o fato de que Deus tem uma missão, uma tarefa, um ministério para cada um de nós.
Essa experiência de Deus e de si mesmo é na verdade a essência da espiritualidade cristã, que nada mais é do que a experiência de parecer-se mais com Cristo. Estamos falando, portanto, de uma experiência cristológica. Jesus Cristo foi o maior mestre de espiritualidade porque foi essa a sua experiência de vida e essa é a sua proposta de vida para todos os homens.
O que pode resultar de uma experiência assim? Uma abertura para o mundo criado por Deus. A nossa relação com o mundo e com as coisas criadas deve ser em função de uma ordem sustentável, que é o grande desafio da vida. Uma experiência assim dá luz a uma ética da sustentabilidade que considera, ao mesmo tempo, a grandeza do homem – criatura amada e responsável por cuidar de toda a criação – e sua miséria e fragilidade. Isso exige a passagem do homem ideal, autônomo, dotado de vontade e livre, para o homem concreto. É o fim da indiferença – a ataraxia estóica – e a afirmação de um sentimento vivo de se deixar mover por aquilo que toca o coração de Deus.
É preciso trilhar o caminho que me leve a isso, ao desapego e à espera paciente da manifestação da vontade de Deus em minha vida. É a experiência de se pôr a caminho, de se colocar como disponível para que se realize em mim o que Deus de fato tem me preparado.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Crônica de uma tragédia anunciada: reflexões que a chuva em Niterói proporciona / The storm in Niterói / El temporal de Niterói

Aproveitei a suspensão das aulas na universidade onde trabalho, por conta do temporal que se abateu sobre Niterói, para localizar os amigos e me situar em relação aos estragos que a todo momento o noticiário da tevê bombardeia. Liguei para alguns participantes do grupo que me acompanha na plantação de igreja na região oceânica. Todos estavam bem, com exceção da informação de que alguns familiares do Fernando tiveram suas casas inundadas.
Passei na confecção da Ana Paula e aproveitei para orar com os funcionários, todos moradores de áreas de risco. Uma fala da amiga que faleceu com seu filhinho, outra conta da tragédia na família de mais alguém, algumas lágrimas e muito lamento. Nada a fazer a não ser orar e lembrar que Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia, pelo que não temeremos ainda que um temporal fora das expectativas se abata sobre nossas cabeças.
À tarde fui ao médico, busquei alguns exames, check-up de rotina. Em cada lugar, muita dor e tristeza, marcas de uma tragédia, daquelas que a gente só vê acontecer pelo noticiário, longe. Aproveitei para passar pelas obras do empreendimento onde eu e Solange construímos o sonho da casa própria e vejo que parte da contenção desmoronou. Nenhuma vítima, graças a Deus. Talvez um atraso no prazo de entrega da obra. Segui a pé pelo bairro e, mais acima, começa o cenário de destruição. A rua principal interditada pelo barranco que desmoronou. Seguindo para o centro da cidade, cortando a comunidade que está no morro, um enorme despenhadeiro que se formou. Lá no alto, alguns barracos na beira da encosta que cedeu teimavam em resistir. Em baixo, escombros de sonhos e projetos. Familiares chorosos. A viatura da Defesa Civil acabara de sair com o último corpo retirado. Só naquele lugar, quatro morreram. Há outros 30 pontos de deslizamento em outros morros da cidade. Tive que conter o choro em público, mas não pude deixar de conversar com alguns e ser solidário com a dor deles.
De volta à casa, algo me inquieta e não posso deixar de constatar que tudo isso se resume no triste quadro da tragédia que vivemos nesse tempo. Não posso esquecer do discurso dos políticos na noite anterior, eximindo-se da responsabilidade pela falta de investimentos em projetos habitacionais e planejamento da vida da cidade. Em momentos como esse, eles se esquecem que o papel primitivo da política é de criar possibilidades da vida feliz na cidade. Daí o nome: política vem de polis, que em grego é cidade. Esquecem principalmente que vivemos em uma sociedade desigual, que relega uma significativa massa humana à desventura de construir seus barracos em altos de morro e em alagados, os únicos refúgios que lhes resta para abrigar seus filhos e construir um futuro.
Alguns podem até dizer que os tempos são maus, que são sinais do fim. Que me desculpem os teólogos que pensam dessa maneira. A sucessão de terremotos, tsunamis e temporais está longe de ser sinal do fim dos tempos. Ao contrário, a Bíblia diz que são apenas o início das dores, consequência de enganos na maneira como a humanidade tem orientado a vida. O que tragédias como as de Angra dos Reis, Haiti, Chile e, agora, Niterói apontam é que a lógica que orienta a maneira como organizamos a sociedade, a ocupação do solo, o uso dos recursos naturais e até mesmo como atribuímos sentido à vida estão equivocados, fundados em um sentimento egocêntrico, ambicioso e injusto, o que se reflete na desigualdade, na intolerância, na violência e na ignorância a que a sociedade está mergulhada de um modo geral.
Acho ruim tratar dessa questão e não apontar caminhos para soluções. O problema é que o caminho para a solução desse dilema em que vivemos passa pelo diálogo e pela humildade de confessar que as tentativas têm sido insuficientes para dar fim a todo esse drama. Penso que isso só poderá acontecer quando buscarmos conhecer a nós mesmos e nos descobrirmos como incapazes de ter o controle de todas as coisas. Só assim poderemos tomar decisões que levem em conta a lógica do criador de todas as coisas. Quem sabe nessa época poderemos escolher representantes mais justos e honestos para cuidar de nossa sociedade. Quem sabe também poderemos construir um futuro melhor, menos desigual, levando em consideração que aquilo que não é bom para mim, também não o é para quem quer seja. Quem sabe desenvolveremos um estilo de vida que se importe mais com o que estamos nos tornando do que com o que estamos possuindo.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Quando fala o amor / When love speaks / Cuando el amor se habla

O que pode fazer uma pessoa tomada por um amor louco, despojado, desprendido, sem medida? Qual é o limite da capacidade de amar? William Shakespeare disse que “quando fala o amor, a voz de todos os deuses deixa o céu embriagado de harmonia”.
A afirmação mais impressionante da Bíblia é que Deus assumiu a forma humana e isso é a maior prova de seu amor. A Bíblia diz que “Deus amou o mundo tanto, que deu o seu único Filho, para que todo aquele que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna” (João 3.16 BLH). E essa é a única maneira de compreendermos quem Jesus é. Muitos afirmam que Jesus foi um grande líder humanista, um grande pensador e até mesmo um grande mestre de espiritualidade. Mas ele nunca quis ser reconhecido por nenhuma dessas identidades. Ele não nos deixou outra imagem de si mesmo a não ser a de alguém movido por uma paixão infinita pela humanidade.
Quando Jesus nasceu, ninguém jamais poderia entender que um Deus pudesse se fazer como um frágil bebê. Para os antigos, Deus estava mais afeito aos mistérios, aos trovões e aos relâmpagos. Mas Deus se faz homem, nascendo em uma humilde vila, num longínquo interior de uma das mais distantes províncias do império romano. Ele viveu entre gente humilde, misturado a eles como que integrante de sua cultura. Viveu como um camponês e morreu como um rejeitado. Mas o fato é que sua vida inteira é a maior expressão de quanto Deus é capaz de nos amar.
Esse estranho amor de Deus – diferente do eros, que é pura carência, e de filia, que é um regozijo pelo outro – é descrito como agape, a capacidade de dar de si, para criar vida e restaurar o que não tem nenhum valor. Quando a Bíblia diz que Deus ama o homem não quer dizer que esse ser, que somos nós, seja importante. Não há nada de amável no homem. O fato é que Deus é amor, isso vem primeiro e Deus é livre para escolher ser o que é. Independe de quanto vale o objeto amado, uma vez que Deus não tem nada a ganhar por nos amar tanto. Esse sentimento louco de Deus é absolutamente espontâneo e desinteressado. É por isso que ele nos constrange e nos remete de volta a quem somos. Assim como Deus esvaziou-se de sua divindade, seu amor nos motiva a nos esvaziarmos de nossa falsa divindade e a descobrirmos que somos nada. É esse amor sem medida que me renova e me diz que alguém se importa comigo. Preciso fazer a oração de Espinosa: “Meu Deus, concedei-me tornar-me nada..”

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