segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Quem é feliz? / Who is happy? / ¿Quien esta feliz?

Há duas palavras em grego para descrever a felicidade. A primeira delas é eudaimonia. Ela foi usada por Aristóteles para se referir à condição a ser alcançada a partir do cultivo de virtudes. Pode ser traduzida como realização pessoal ou como a definição de um estado para se viver a vida boa, quer seja relacionada a aspectos morais, quer seja materiais. Havia até uma compreensão de que, para ser feliz, era preciso ter uma origem boa. O belo, o forte e o rico seriam pessoas naturalmente felizes. Entretanto, para os que não eram dotados dessas qualidades precisavam de uma forma mais inteligente de viver.

Para Epicteto, a busca da felicidade dependia da saúde física e da tranquilidade da alma. Isso implicava o controle dos desejos e o cultivo dos hábitos essenciais ao bem-estar. Para tanto, seria necessário desenvolver a sabedoria para se viver de forma feliz com o mínimo necessário. A raiz é daimon, que está relacionada a divindades mitológicas, responsáveis por nossos temperamentos, nossas escolhas e até nosso destino. Na verdade, é a voz da nossa própria consciência que está em permanente conflito com o nosso inconsciente.

A segunda palavra é makarios, que difere da primeira e pode ter o sentido de afortunado, sortudo ou mesmo bem-aventurado. O radical makar lembra uma pessoa que é abençoada. O grego clássico usava a expressão makarites para se referir a alguém que recebeu a bênção dos deuses e, por isso, foi livrado do mal. Aristóteles usou essa palavra para se referir a ideais mais elevados que o homem tem em si mesmo que o conduz aos atos nobres. Trata-se de uma felicidade que resulta da vida contemplativa. No Egito essa palavra era usada como uma saudação. No Novo Testamento, porém, Jesus a usou para descrever as bem-aventuranças.

André Chouraqui, em sua tradução do evangelho de Mateus, afirma que, de um modo geral, é um erro traduzirmos a expressão makarioi somente pelo seu sentido grego, que seria o de felicidade. Ele entende que Jesus pronunciou essa palavra com o mesmo sentido de ashrei, termo hebraico encontrado em alguns salmos, como 1 e o 119, que quer dizer marchar, andar, seguir em frente, conduzir por uma linha reta. A noção de felicidade, então, não estaria na formação da frase, mas em seu significado, que aponta para a dinâmica da salvação “introduzida na vida do homem em marcha em direção ao Reino”, disse Chouraqui. A felicidade, nesse sentido, estaria na própria alegria de quem acolhe o convite amoroso de tomar parte do Reino de Deus.

Jesus usou a palavra makarioi de diversas formas, não só para se referir às bem-aventuranças. A felicidade em Jesus está intimamente relacionada com a salvação. Ele declarou que veio buscar e salvar o que se perdeu, que é todo aquele que perdeu o sentido da vida, que se perdeu de si mesmo. Jesus afirmou: [...] ‘Antes, felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e lhe obedecem’” (Lucas 11.28). A busca da felicidade depende de um certo exercício de escuta da palavra que gera vida, que aponta caminhos, que confere força e coragem para quem perdeu o ânimo de viver.

As duas formas linguísticas gregas de se referir a quem é feliz podem ser compreendidas como sendo as duas faces da felicidade: de um lado, a felicidade possui em si um aspecto moral que nos remete a uma relação com o outro; mas, de outro, a felicidade implica também o exercício de uma vida contemplativa, em que estão presentes valores que transcendem as nossas ações. Pode-se afirmar que a felicidade tanto tem a ver com a maneira como nos relacionamos como também com o que estamos fazendo com a vida que temos. São formas de felicidade qualitativamente diferentes, mas que se complementam. Não dá para ser feliz sem desenvolver virtudes em nossas relações e sem, ao mesmo tempo, cuidar das condições concretas de existência no mundo.

A cultura contemporânea reduziu a felicidade ao prazer e o prazer ao gozo do momento. Felicidade, prazer e gozo são sensações distintas, mas para o senso comum acabaram se tornando expressões sinônimas de uma falta, a ausência de sentido para a própria vida. Aprendemos a aplacar a dor com um analgésico. Da mesma forma, é mais fácil substituir a falta de realização pessoal pelo consumo, a alegria de viver pelo efeito de um entorpecente, a angústia por um ansiolítico, o sofrimento pela alienação.

Então, quem é feliz? Essa pergunta nos remete ao cuidado com a vida. É feliz quem consegue desenvolver uma atitude de contentamento com a vida de tal modo que possa agir de maneira responsável para o bem comum e das gerações futuras. Quem é feliz encontrou uma certa alegria de viver, que faz da vida em todas as suas expressões um constante objeto de cuidado. Não se trata de um prazer de momento, mas da busca de uma forma de vida que seja boa para todos e todas: o prazer de viver. Felicidade é ter prazer de viver e de lutar para que todos e todas desfrutem da vida.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Uma casa para todos / A home for all / Un hogar para todos

Os povos originários do Brasil dão à casa um sentido mais abrangente do que estamos acostumados. A oca, como a casa é chamada na língua tupi-guarani, é uma construção em grande dimensão, podendo chegar a 40m de comprimento, feita de forma comunitária usando troncos e taquaras amarradas com cipós e cobertas com palhas retiradas da natureza no entorno. Nela não há divisão interna e ela serve como habitação para todas as famílias da aldeia.

Essa experiência dos povos originários, que se apresenta em diferentes modalidades, ressalta a importância da casa como lugar de acolhimento. Parte do dia, os moradores realizam suas atividades fora da oca, recolhendo-se no interior da mesma para o descanso, a alimentação e o cuidado uns com os outros. No interior das casas, cada família convive com as demais de forma harmoniosa e colaborativa. Esse sentido da casa comum serve como inspiração para repensarmos a maneira como vivemos no planeta.

O papa Francisco tem feito constantes apelos ao cuidado do planeta como nossa a casa comum. Já na encíclica Laudato Si, ele lançou o desafio de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral para o bem da vida no planeta. “A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (FRANCISCO. 2015, § 13). Deixar de cuidar dela é um pecado grave que põe em risco toda forma de vida. Portanto, é preciso cuidar-se, cuidar uns dos outros e deixar-se ser cuidado.

De que forma podemos cometer um pecado grave em relação à nossa casa comum? Tornando-se indiferente aos mais vulneráveis, explorando a natureza indiscriminadamente e desenvolvendo uma mentalidade gananciosa e acumuladora. Precisamos aprender de forma solidária, participativa e preocupada com a sustentabilidade. A isso poderíamos chamar de a grande revolução do cuidado.

Há um ditado popular espanhol que diz: “Deus perdoa sempre; nós perdoamos às vezes; a natureza não perdoa nunca”. Estamos vivendo um momento único na história da humanidade em que temos a chance de lutar para reverter o avanço da crise ambiental, agindo pelo cuidado da casa comum. É urgente que cada um assuma a responsabilidade de tomar a iniciativa para fazer algo em favor da criação e da preservação de todas as formas de vida existentes no planeta. O nosso grande alvo deve ser o de, juntos, desenvolvermos as condições  para um planeta sustentável e acolhedor para todas as criaturas.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Novo Normal: como viver como um cristão na pós-pandemia / New Normal: How to Live Like a Christian in Post Pandemic / Nueva normalidad: cómo vivir como un cristiano en la pospandémica

O conceito de “Novo Normal” está muito presente no debate a respeito do que acontecerá no mundo após o fim da pandemia de Covid-19. A ideia de normalidade está envolvida com conceitos a respeito daquilo que é comum, mas acima de tudo àquilo que está presente em uma certa regularidade. O normal seria aquilo que é esperado dentro de um ambiente conhecido e a partir de determinadas expectativas. Entretanto, essa pandemia deixou claro que a vida é orientada por imprevisibilidades, pelo imponderável e por incertezas.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos escreveu um livro sobre a cruel pedagogia do novo Coronavírus, pois confronta a fragilidade das ações humanas em meio ao que se convencionou chamar de normalidade. Isso nos ajuda a entender que a normalidade da vida humana é marcada pelo que é excepcional, pela flexibilidade das possibilidades, pelas nossas vulnerabilidades e pela pluralidade das formas de existência.

A espécie humana, que alcançou uma capacidade tecnológica fantástica com as conquistas da ciência, se viu ameaçada por um vírus invisível. A vida social foi afetada em todos os níveis. A humanidade deve que parar literalmente. O impacto disso se notou até mesmo nos controles dos fenômenos sísmicos. Cidades inteiras ficaram com suas ruas vazias, o comércio fechado e escolas com aulas presenciais suspensas. O mercado produtivo teve que encontrar meios de realizar o trabalho remoto provocando grandes mudanças no cenário econômico.

A pandemia atingiu também a igreja de modo muito direto. Religiosos foram afetados por colocarem suas vidas em risco para cuidar de pessoas enfermas, mas também por duvidarem e negarem as informações científicas a respeito da contaminação e das medidas de prevenção. Igrejas tiveram que seguir os protocolos sanitários para suas reuniões públicas. A grande maioria fechou seus espaços de culto durante muito tempo para evitar aglomerações. Por conta disso, tiveram que encontrar outras formas de conectar pessoas através de meios digitais para continuar servindo na oração mútua, no aconselhamento, no estudo, na evangelização e até na adoração.

As famílias precisarem redescobrir o valor da convivência em uma mesma casa. A exigência de ficar em casa, a necessidade de se trabalhar de home office e até o estudo remoto despertou a necessidade de se ressignificar os espaços dentro do lar. O lazer, o entretenimento, o bate-papo e até as reuniões em família tiveram que acontecer em outras modalidades. De repente, todos em família precisarem aprender a respeitar e reconhecer o papel do outro e a usar as novas tecnologias para construir relacionamentos.

A volta ao que tínhamos como normalidade antes da pandemia não acontecerá de forma fácil. A retomada do emprego, a recuperação dos conteúdos escolares, a reorganização das atividades econômicas e até o retorno às atividades regulares da igreja não acontecerão de forma imediata. Será necessário nos perguntarmos que tipo de sociedade queremos ser após as perdas e os impactos causados pela pandemia. Não podemos esquecer que o mundo que tínhamos anteriormente não era perfeito, nem podemos deixar de levar em conta que famílias inteiras estão fragmentadas pelas perdas de seus entes queridos, que colegas de trabalho e de turma faleceram ou ficaram debilitados, que amigos se foram, que igrejas perderam seus membros e até seus pastores.

Outras grandes “pandemias” atingem o planeta. O aquecimento global ameaça a vida no planeta com a morte de indivíduos de todas as espécies, inclusive seres humanos. A desigualdade social atinge milhões de pessoas em todo o mundo que padecem por causa de problemas sanitários, atendimento em saúde e fome em função da má distribuição de renda e pela precariedade de políticas públicas para a erradicação da miséria. A migração de comunidades inteiras que fogem da guerra, da violência, da xenofobia, da seca, da fome e do desemprego tem levado a vida de muitos que perecem em naufrágios e jornadas arriscadas.

Vencer a pandemia da Covid-19 já se torna uma possibilidade em várias partes do mundo. O desafio será encontrar respostas para as muitas outras ameaças à vida. O que está presente nas discussões a respeito da vida na pós-pandemia é a necessidade que todos nós temos de segurança. Precisamos nos cercar de atitudes que restaurem o que há de mais humano em nós, que nos ajudem a viver de forma civilizada no mundo, que nos conduza à construção de novos valores ligados à solidariedade, à generosidade e à humildade.

Esse debate deve conduzir cristãos a uma reflexão mais profunda sobre sua experiência de fé. Que igreja teremos após a pandemia? Como será viver a fé cristã num mundo com tantas fragilidades? Quais os valores que deverão orientar a missão de cristãos e cristãs em suas comunidades? São questões que devem orientar novas condutas, novos modos de ver o mundo e até novas formas de construirmos nossas relações.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Em defesa da família / In defense of the Family / En defensa de la familia

Quem de fato defende a família? O discurso em defesa da família é um dos modos que o conservadorismo encontrou de exercer domínio para dar continuidade à sua pauta moralista. Geralmente, a temática da defesa da família é usada para se combater a luta pelo fim da criminalização do aborto e os movimentos em favor dos direitos identitários, sobretudo em relação à desigualdade de gênero e às bandeiras do público LGBTQI+. Essa pauta conservadora geralmente está articulada com interesses de grupos religiosos fundamentalistas e de movimentos extremistas de direita. Como se esses foram os únicos problemas que a família enfrenta e que necessita de cuidado.

Isso desperta uma problematização: a família enfrenta problemas porque a humanidade passa por profundas transformações ou é a humanidade que enfrenta problemas porque a família passa por profundas transformações? Trata-se de um dilema, na medida em que as duas hipóteses podem ser consideradas válidas, sendo que a segunda é consequência da primeira num permanente ciclo de transformações. Melhor dizendo, a família, sem sombra de dúvidas, passa por situações de conflitos que nunca havia passado antes, decorrentes de grandes transformações sociais, econômicas e políticas pelas quais a humanidade vem passando. Entretanto, as formas de enfrentamento dos conflitos familiares e suas muitas mudanças de configuração têm provocado o aprofundamento da crise pela qual a humanidade passa.

A razão pela qual se constrói um discurso moralista que tenta apontar uma dissolução da família tem a ver com o quadro de desestruturação da sociedade atual, tal como se conhecia até algum tempo atrás. É como se as famílias não tivessem problemas em outras épocas. O nosso imaginário está permeado por um ideal de família estruturada em padrões burgueses que oferecem certa segurança e estabilidade emocional.

Na verdade, os que estão em busca dessa família idealizada são pessoas que têm históricos de relacionamentos familiares marcados por conflitos. São aqueles que tiveram experiências como mães solteiras, que são jovens divorciados, que enfrentaram o divórcio dos pais na infância ou adolescência e até quem sofreu discriminação em família por questões de gênero. Essas pessoas são tomadas por um profundo desejo de não repetir os erros passados, de agir de outro modo.

Para a psicanalista Maria Rita Kehl, no artigo “Em defesa da família tentacular”, reconhece que “a família nuclear ‘normal’, monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre do início do século XIX a meados do XX no ocidente (tão pouco tempo? Pois é: tão pouco tempo) foi o grande laboratório das neuroses tal como a psicanálise, bem naquele período, veio a conhecer”.

Os censos demográficos atestam a cada década que a família não é mais a mesma. Novas formas de convívio vão sendo improvisadas, tendo em vista o cuidado com os filhos, a afirmação de relacionamentos afetivos e até a satisfação de necessidades de sobrevivência e de consumo vão sendo construídas à revelia desse discurso conservador e moralista. Ou seja, a defesa de um único modelo de família tradicional não impede que novas configurações surjam, e que algumas delas se perpetuem e outras sejam diluídas sem qualquer possibilidade de controle, seja de uma lei humana ou divina.

“O mal estar vem da dívida que nos cobramos ao comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?”, diz Maria Rita Kehl.

Para Anthony Giddens, em O mundo em descontrole, destaca que há uma revolução global em curso que afeta o modo como construímos nossos relacionamentos, inclusive familiares, que vai avançando de forma desigual, de acordo com aspectos socioeconômicos e culturais, e com enfrentamentos de resistências. “Há talvez mais nostalgia em torno do santuário perdido da família do que em qualquer outra instituição com raízes no passado. Políticos e ativistas diagnosticam rotineiramente o colapso da família e clamam por um retorno à família tradicional” (p. 63).

A chamada família tradicional é uma unidade socioeconômica, caracterizada por padrões de consumo, concepção de sexualidade a partir da ideia de reprodução e uniões conjugais orientadas por interesses sociais, e não pelo amor romântico. Esse tem sido o padrão predominante nas sociedades industriais em todo o mundo. Porém, após as revoluções culturais do final do século XX, “só uma minoria vive hoje do que poderia ser chamado de família padrão” (p. 67).

Essas transformações demandam a necessidade do que Anthony Giddens chamou de democracia das emoções. “Defender a promoção de uma democracia emocional não significa ser fraco com relação aos deveres familiares, ou com relação à política pública voltada para a família. A democracia significa a aceitação de obrigações, bem como de direitos sancionados em lei” (p. 73). A sociedade contemporânea exige que haja espaço e respeito para todas as expressões humanas, tendo em vista a formação de um ambiente mais justo e humano.

Defender a família não pode ser um programa político ou mesmo uma plataforma orientada por interesses ideológicos. Defender a família implica cuidar dela, pois é nela que construímos a nossa existência. Curiosamente, aqueles que têm se apresentado como defensores mais exacerbados da família tradicional ou estão envolvidos em situações morais duvidosas, ou comprometidos com interesses espúrios ou até, em alguns casos, com experiências conjugais que não se enquadram com o modelo tradicional que defendem. O cuidado da família requer compromisso com a santidade.

O cuidado com a família passa por atitudes que estejam voltadas para o bem-estar da vida em família, pela superação do ódio provocado por preconceitos e pela promoção de uma cultura de paz, de não violência, de solidariedade e de convivência em comunidade. Essas atitudes representam novos desafios para a vida em família. Isso lembra a recomendação bíblica: Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1 Timóteo 5.8).

Referências:

GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 61-75.

KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular. In: Fronteiras do Pensamento. 2013. Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-tentacular>

terça-feira, 27 de abril de 2021

Missão Integral e compromisso com o mundo: a morte de René Padilla abre uma lacuna na Teologia Latino-Americana / Integral Mission and commitment to the world: the death of René Padilla opens a gap in Latin American Theology / Misión integral y compromiso con el mundo: la muerte de René Padilla abre una brecha en la teología latinoamericana

A primeira vez que li um texto de René Padilla estava cursando Teologia no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, lá pelos anos de 1980. Eu era muito jovem, tomado pelo arroubo do pensamento crítico, ávido de conhecimento para desbravar o campo da Teologia e da Filosofia.

Era um tempo de grandes transformações, ainda em meio aos anos de regime de exceção que tomou conta do Brasil. Ler Padilla e sua Missão Integral era um bálsamo para os meus ideais e um estímulo para a construção de minha consciência em relação à missão e ao ministério pastoral. Era uma de minhas leituras subversivas, aquelas que não eram recomendadas por professores e nem faziam parte do currículo. Junto com Padilla, se somaram Leonardo Boff, Hans Küng, Paul Tillich e tantos outros que fizeram minha cabeça. Lia por fome, por diletantismo, por vontade, por curiosidade.

Conheci René Padilla pessoalmente apenas em 2015 quando fui à consulta FTL setor Brasil em São Paulo. Estavam ali os três principais fundadores da teologia da missão integral na América Latina ainda vivos à época: Samuel Escobar, Pedro Arana e o próprio René. Foi um encontro inesquecível, em que pude conversar com ele, abraçá-lo e agradecer pela influência que exerceu na minha vida.

Equatoriano, nascido em 12 de outubro de 1932, ele foi criado na Colômbia, educado nos Estados Unidos e serviu como pastor na Argentina. Participou da famosa Conferência de Lausanne em 1974, exercendo grande influência na elaboração do documento sobre o compromisso social da igreja. Alguns o consideravam como um “evangelicalista”, mas logo se distanciou desse movimento, identificando-se com a realidade latino-americana, comprometido com um cristianismo evangélico voltado par o diálogo, para o atendimento dos mais vulneráveis, para o cumprimento da missio Dei e para realização do Reino de Deus no mundo.

Na tarde de hoje, René Padilla faleceu. Depois de um tempo enfermo, não resistiu. Deixa-nos aos 88 anos. Uma lacuna se abre na teologia latino-americana, sobretudo no âmbito do movimento evangélico. Nesses tempos em que o fundamentalismo parece hegemônico, a voz de alguém como Padilla vai fazer muita falta.

Atualmente, recai sobre meus ombros a tarefa de coordenar no Brasil e instituição que Padilla ajudou a fundar, a Fraternidade Teológica Latino-Americana, a FTL, juntamente com o Rogério Donizete. Com essa notícia, sinto-me pequeno diante desse imenso desafio. Padilla sonhava com um espaço em que todos e todas tivessem voz, em que fosse possível construir um pensamento a partir da realidade latino-americana que dialogasse com o mundo.

Bem, o desafio está posto. Padilla descansou. A vida continua.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Salvar o planeta é salvar a humanidade / Saving the planet is saving humanity / Salvar el planeta es salvar a la humanidade

É uma pretensão e uma arrogância dizer que a humanidade salvará o planeta. É preciso muita coragem, sabedoria e humildade para admitir que a humanidade é responsável até aqui pela ameaça de sua própria extinção. E a única forma de frear esse desastre é preservar o que ainda resta de equilíbrio ecológico.

A crise ambiental que tem ameaçado o planeta é provocada pela própria atitude humana. Se queremos cuidar (ou salvar) o planeta, temos que reconhecer suas causas, quais são as atitudes humanas que desencadearam esse processo de degradação que parece irreversível. Neste Dia da Terra, quando líderes do mundo inteiro são convocados pelo Presidente dos Estados Unidos da América Joe Biden para a formação de uma cúpula para refletir sobre o que fazer, precisamos nos conscientizar de que esse assunto deve afetar a todos.

Essa crise tem três matrizes causadoras, que vêm sendo engendradas ao longo da história da civilização ocidental. Portanto, ela não é de hoje. Já faz algum tempo que a vida vem sofrendo com o esgotamento da natureza. A humanidade também tem produzido tentativas para a superação dessa crise, embora insuficientes. Entretanto, é preciso uma tomada de consciência de que somente uma conversão radical quanto à maneira como a humanidade tem orientado sua conduta pode apontar uma saída e isso se faz mais do que urgente.

A crise não se limita ao campo da biologia, mas à maneira como a vida como um todo vem sendo tratada, sobretudo a partir da racionalidade moderna. Essas três matrizes causadoras são identificadas pelos seus vieses tecnológico-científico, político-econômico e teológico-filosófico em que um está intimamente relacionado com o outro.

As conquistas tecnológicas e científicas, conquanto tenham proporcionado um avanço na conquista do bem-estar e na solução de problemas que afetam as condições humanas de vida, têm custado a depredação da natureza. A mentalidade científica ocidental foi construída a partir da ilusão de que, através das ciências naturais, o homem é capaz de exercer domínio e controle sobre a natureza.

As relações de poder produziram a concepção dos estados modernos industrializados. Com isso, a fonte de riqueza passou a ser a transformação de recursos naturais em bens de consumo, cujo auge se deu com a chamada revolução industrial. A economia e a politica deixaram de ser atividades de cuidado com a casa e a cidade para serem estratégias de controle e de interdição na vida dos indivíduos, a partir da necessidade de consumo. Para que esse intento fosse consolidado, dependeu-se cada vez mais do uso da mão de obra servil a disposição daqueles que detém o direito de propriedade, sob a proteção de estados que promovem leis que favoreceram (e ainda favorecem) a concentração de riqueza.

Tudo isso se deu a partir de uma cultura marcada pelo cristianismo. Tanto a concepção cristã da criação quanto a ideia de que o ser humano é dotado de autorização divina para explorá-la forneceram o fundamento ideológico para o uso desordenado dos recursos naturais sem a preocupação com sua recuperação. Essa ambição humana foi reforçada por uma interpretação equivocada das Escrituras e instrumentalizada de tal modo para validar a ideia de que a exploração da Terra é um mandamento divino. Um desses equívocos é a tradução e a interpretação da expressão: “[...] subjuguem a terra” (Gênesis 1:28).

As ciências naturais formulam tecnologias que afetam diretamente as condições de vida no planeta. As políticas econômicas se baseiam na exploração dos recursos naturais, sobretudo as fontes de energia que dependem da extração. A necessidade de atender às demandas de consumo dos países em desenvolvimento se depara com a forte desigualdade de oportunidades em comparação com países desenvolvidos. Na medida em que todos querem ter acesso aos bens de consumo, se percebe que a natureza não dispõe de recursos para dar conta da quantidade que lhe é exigida.

A vida está em risco. Porém, a saída não será encontrada se a matriz filosófico-teológica não for encarada com a devida seriedade. A solução para a crise ambiental é acima de tudo moral, pois diz respeito às nossas relações com o meio ambiente. Sendo assim, precisamos ter uma resposta a respeito do que estamos fazendo com a vida que temos. Do ponto de vista cristão, é preciso resgatar o sentido original da criação, em que a vida é dádiva que precisa ser cuidada e preservada. Nesse sentido, precisamos de uma teologia da criação que diga que toda forma de vida importa. A vida é o espaço sagrado onde Deus habita. Toda forma de vida importa para Deus porque ele está nelas.

domingo, 18 de abril de 2021

Jesus e as sinagogas / Jesus and the synagogues / Jesús y las sinagogas

 

Ensinava nas sinagogas, e todos o elogiavam” (Lucas 4.15).

Jesus usou os espaços religiosos de seu tempo para `compartilhar a sua mensagem. Ele o fez como um cidadão, como um religioso e como o Messias. Jesus participava de uma comunidade e praticava uma religião. Ele era da região da Galileia, da pequena cidade de Nazaré, e era um judeu.

Embora os evangelhos façam menção diretamente às sinagogas de Cafarnaum e Nazaré, duas cidades da região da Galileia, Jesus estava familiarizado com a frequência a esse espaço de devoção do judaísmo.

As sinagogas são espaços de devoção e de espiritualidade dos judeus até os dias atuais. Elas foram criadas provavelmente após a destruição do primeiro templo, por volta do ano 586 a.C., para ser um espaço de oração e de leitura das Escrituras. No tempo de Jesus, era o segundo lugar mais importante para o exercício da espiritualidade judaica, ficando atrás apenas do templo. Por essa razão, muitas vezes foi chamada de pequeno santuário.

No tempo de Jesus devia haver centenas delas espalhada por todo o território de Israel. Estima-se que só em Jerusalém houvesse cerca de 400 sinagogas. Para que surgisse uma sinagoga, era necessária a presença de pelo menos dez homens da fé judaica. Com a diáspora, esse costume também se espalhou nos lugares em que os judeus estabeleciam suas comunidades.

As sinagogas deveriam possuir três elementos essenciais: a urna para conter os livros sagrados, uma lâmpada acesa permanentemente como símbolo da instrução das Escrituras e o púlpito onde as Escrituras eram lidas. Os oradores da sinagoga eram rabinos que possuíam experiência no exercício de interpretação das Escrituras, que consistia nos livros da Torah (os livros da lei), nos livros poéticos (especialmente o de Salmos) e nos profetas.

As reuniões das sinagogas começavam com a recitação do shema: que é a referência a Deuteronômio 6.4: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor”. A espiritualidade judaica compreendia que ali era o lugar do encontro com o sagrado, para ouvir o que Deus tem a falar.

Jesus demonstrou familiaridade com os hábitos das sinagogas e era tratado como rabi ou rabino, um mestre que podia falar durante os atos cerimoniais. Jesus também demonstrou que era uma pessoa letrada, conhecedora do idioma hebraico, que tinha condições de fazer leituras públicas a partir de traduções orais dos textos bíblicos, conhecidas como targuns. E que tinha autoridade para interpretar as Escrituras.

Isso nos leva a compreender que Jesus não rejeitou a religião, mas a ressignificou. A religião não é apenas um sistema de controle e de domínio, como uma estratégia de poder, embora ela tenha sido usada pelas estruturas de poder ao longo dos tempos – inclusive nos dias atuais. Ela é uma experiência humana de encontro consigo, que estimula a transcendência e a descoberta de si. Jesus tratou os espaços religiosos não mais como espaços de interdição, mas de transformação, de libertação e de construção de nossa humanidade.

Por essa razão, Jesus não se identifica com o homo religiosus de Mircea Eliade, mas com o humano, demasiadamente humano (conforme o título da obra de Nietzsche), como aquele que compreende que a vida toda é sagrada, que o humano está acima dos rituais e que a história é o tempo de construção de nossa existência.

Os evangelhos registram quatro momentos de Jesus discursando nas sinagogas: Marcos 1.21-27, correlato com Lucas 4.31-37; Marcos 3.1-6, correlato com Mateus 12.9-13; Lucas 4.16-22, correlato com Marcos 6.16 e Mateus 13.53-58; João 6.51-59. Em cada uma dessas ocasiões ele aproveitou para pregar sobre temas que estavam ligados à vivência humana, valorizando sempre a dignidade da pessoa, em detrimento do cerimonial.

A intimidade de Jesus com a sinagoga pode ser percebida em outras situações narradas nos evangelhos, como a cura da filha de Jairo, o chefe da sinagoga, em Marcos 5.21-43, Mateus 9.18-26 e Lucas 8.40-56. Para Jesus, a sinagoga era espaço de compartilhamento da boa notícia do amor de Deus (Mateus 4.23, Mateus 9.35, João 18.20), de cura para as dores humanas (Lucas 13.10-17), de construção de nossa identidade (Lucas 7.4-50), de confrontação com a religiosidade hipócrita (Mateus 6.2 e 5, João 12.42), de enfrentamento das formas de dominação (Marcos 12.39, Mateus 23.6, Lucas 11.43, Lucas 20.46, João 9.22) e de espaço de testemunho e martírio (Marcos 13.9, Mateus 10.17, Mateus 23.34, Lucas 4.24-30, Lucas 12.11, Lucas 21.12, João 16.2).

As comunidades cristãs primitivas procuraram reproduzir a experiência das sinagogas. Muitas vezes, igrejas cristãs nasceram a partir dos ensinos de Paulo nas sinagogas espalhadas pelo mundo greco-romano. Refletir sobre a experiência cristã nos espaços religiosos nos remete ao diálogo necessário entre religião e espiritualidade, vida religiosa e vida intramundana. Esse foi o exemplo deixado por Jesus.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Para que todos tenham vida: Vacina para todos / For everyone to have life: Vaccine for all / Para que todos tengan vida: Vacuna para todos

O Brasil completa um ano de convivência com a pandemia de Covid-19 com dados que são alarmantes: o número de mortos ultrapassa a casa dos 250 mil, os casos de contágio e de óbitos indicam o pior momento da doença e a campanha de vacinação segue em ritmo lento. Não há como negar o fato de que esses fatores são resultado de um descuido por parte do governo em tratar do problema sem a responsabilidade necessária e por promover mais dificuldades nas políticas públicas de enfrentamento, sobretudo no que diz respeito à aplicação do programa de imunização com a vacina.

Embora a ciência já tenha encontrado vacinas para a imunização contra os efeitos do vírus causador da doença, o Coronavírus com suas várias mutações, e os laboratórios estejam disponibilizando doses desde o fim do ano de 2020, há uma campanha de desinformação em curso contra a vacinação. E, para piorar o quadro, há também uma escassez de vacinas que possam atender às demandas das aplicações nas populações de maior risco três meses depois de definido o plano nacional de imunização. Apenas 3% da população foram vacinadas em quase dois meses.

A vacinação terá que seguir o programa de imunização, apesar das dificuldades que vão sendo encontradas, a maior parte por conta da logística e da demora das autorizações do governo para a aquisição de insumos. Porém, a maior dificuldade a ser superada neste momento é a tarefa de convencer a população a ser imunizada. E, para isso, se faz necessário uma campanha intensa de esclarecimento e de informação.

É fato notório, neste momento, não há como esperar grandes incentivos por parte do governo para esclarecer a população. Daí a necessidade de mobilizar grupos e setores da sociedade em geral para uma grande campanha em favor da vacinação para todos. E, dentre os muitos setores da sociedade, o segmento cristão é o que reúne as maiores possibilidades de mobilização.

Por que cristãos podem e devem se envolver na campanha de vacinação? Porque é o grupo com maior capacidade de articulação. Onde o dinheiro e o poder não chegam, a presença da igreja está lá, levando conforto e esperança para as pessoas. Seja nos grandes centros urbanos, em comunidades de periferia, em áreas rurais ou em comunidades indígenas ou quilombolas, ali há a presença de grupos cristãos. Entretanto, é preciso superar o obscurantismo promovido por concepções fundamentalistas em relação ao conhecimento científico.

É preciso, primeiro e ao mesmo tempo, uma campanha de conscientização das comunidades cristãs. Em primeiro lugar, com a afirmação da confiança de que Deus capacita pessoas para cumprirem seus propósitos e construir soluções para os grandes problemas humanos. A ciência é um desses empreendimentos humanos para os quais Deus capacita pessoas. E em segundo lugar, como consequência, desenvolver a consciência de que cristãos estão presentes no mundo para servirem como agentes do bem para toda a humanidade.

O vírus é real. Ele traz dor e sofrimento para as pessoas. Só quem teve um familiar infectado ou quem perdeu um ente querido para a doença sabe aquilatar o tamanho do problema. Os cristãos têm o dever de agir com compaixão e solidariedade como um imperativo divino para com as pessoas que sofrem. Essa atitude de cuidado com as pessoas em tempos de tragédias tem sido uma marca da história do cristianismo em todo o mundo.

Pastores, pastoras e lideranças cristãs têm o compromisso com o conhecimento verdadeiro, de passar para os fiéis em geral informações confiáveis e que estimulem à busca do bem comum. E a vacinação é hoje o único remédio contra a doença, além das práticas de prevenção como o uso de máscaras, a higiene das mãos e o distanciamento social. É dever dessa liderança agir a fim de não permitir que o povo pereça por causa da ignorância e da desinformação.

A ação missional da igreja tem essa dimensão de cuidado, que é pastoral. O cuidado com o outro é parte essencial da missão de Deus no mundo. Por que devemos nos preocupar com a vacinação? Há três motivos para isso: (a) cremos que Deus capacita a humanidade para produzir ciência; (b) consagramos nossa vida a servir como bênção para o outro; e (c) somos chamados a agir em amor pelos outros. A vacinação não só vai imunizar a mim, mas vai servir para que toda a sociedade possa superar a pandemia e, assim, retomar a normalidade.

Isso lembra o compromisso de Jesus. Ele afirmou que toda a sua obra e mensagem tinham como propósito trazer vida para as pessoas. Ele disse: “[...] eu vim para que tenham vida, e a tenham plenamente” (João 10.10). Vida plena inclui também a superação das grandes aflições que afligem a humanidade. Essa é uma forma de testemunhar o cuidado divino por todas as pessoas nesses tempos tão difíceis. Então, por que ser uma voz em favor da campanha de vacinação para todos: para que todos tenham vida.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Quaresma, Diálogo e Compromisso: Focos da Campanha da Fraternidade 2021 / Lent, Dialogue and Commitment: Focus of the 2021 Fraternity Campaign / Cuaresma, Diálogo y Compromiso: Enfoque de la Campaña Fraternidad 2021

 

A Campanha Ecumênica da Fraternidade 2021, que começa hoje, enfatiza o diálogo e o compromisso da prática do amor fraternal como tema orientador, a fim de que cristãs e cristãos possam refletir sobre missão e prática no mundo. A campanha é liderada pela CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e pelo CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, entidades representativas de segmentos cristãos brasileiros, incluindo tanto o catolicismo romano quanto denominações protestantes.

A campanha é realizada anualmente pela CNBB durante o tempo da Quaresma, que no calendário religioso começa na quarta-feira de cinzas e se encerra no período da Páscoa. Desde o ano 2000, a cada cinco anos, a campanha também assume a forma ecumênica, com a participação de outros segmentos cristãos, abordando temas humanos e com o objetivo de valorizar o que há de comum entre as comunidades cristãs.

O objetivo da Campanha é “pensar, avaliar e identificar caminhos para a superação das polarizações e das violências que marcam o mundo atual”, como diz o texto base divulgado. A proposta é de fazer isso sob a inspiração do cuidado amoroso de Cristo que motiva a todas e todos ao diálogo e à vida em unidade em meio à diversidade. A base bíblica para esse propósito da campanha é a palavra do apóstolo Paulo que afirma que “[Jesus Cristo] é a nossa paz, o qual de ambos fez um e destruiu a barreira, o muro de inimizade” (Efésios 2.14).

Os organizadores assumem o desafio de denunciar a violência que é praticada em nome da fé, encorajar a prática da justiça que restaura a dignidade das pessoas, estimular ações concretas de amor pelo outro, promover a cultura do amor em vez da cultura do ódio e fortalecer a convivência ecumênica e o diálogo inter-religioso. Em tempos de pandemia, esses desafios envolvem o enfrentamento dos discursos negacionista, de violência contra a mulher e população LGBTQI+, de preconceito e intolerância, sobretudo em relação ao negro e as pessoas dos segmentos progressistas. São situações que ganharam novos contornos com o avanço da extrema-direita ao governo.

Ao tratar dessa forma o tema da fraternidade e do diálogo, a campanha deste ano foi antecedida por uma manifestação hostil de grupos católicos fundamentalistas e ultraconservadores contra ela. Tais grupos têm demonstrado toda sua animosidade ao realizar uma contracampanha com o sentido de lançar ataques ao ecumenismo e ao esforço de lutar por um mundo mais justo e humano para todas e todos.

Parece ironia, mas enquanto há cristãos que procuram formas de unir as pessoas em torno do bem comum, da solidariedade e da comunhão, existem outros dispostos a promover a desunião e a incentivar o ódio de forma impiedosa, com uso de desinformação (as chamadas fake news) e com discursos reacionários que se utilizam de ideias fascistas. São religiosos que praticam uma fé anacrônica e descontextualizada, que não admitem a convivência com o outro e o diferente, nem mesmo quando são informados que essa é a proposta da prática do amor fraternal anunciada pelo próprio Cristo que afirmam seguir.

A ideia da fraternidade é um convite a viver o Evangelho de forma integral em dias tão difíceis como estes que estamos vivendo. O tema da campanha deste ano, bem como seus objetivos e propostas de engajamento, mostra o caminho de uma igreja comprometida com as pessoas deste tempo, atenta aos problemas emergentes decorrentes da mentalidade consumista, exploradora e dominadora que vem influenciado as políticas e as formas de organização da sociedade.

Serão 40 dias de promoção da fraternidade e do amor fraternal. Em tempos de tantas animosidades, soa como vento fresco a expressão de cristãs e cristãos que procuram viver o evangelho de Jesus de Nazaré de forma mais humana e voltada para as necessidades dos mais vulneráveis, dos pobres e dos injustiçados. Ao colocar o dedo na ferida, já era de se esperar a reação daqueles que se entregaram aos extremismos que promovem o ódio e a segregação. Mas, como afirma a nota do presidente da CNBB: “Não desanimemos. Não desistamos. Unamo-nos”.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Convocação para a santidade / Call to holiness / Llamado a la santidad

 

Porque Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santidade” (1 Tessalonicenses 4.7). 

A palavra chave para entender a I Carta aos Tessalonicenses é santidade. O apóstolo Paulo se dirigiu a essa igreja para convocar os cristãos para uma conduta de vida e uma prática cristã marcada por valores relacionados à santidade. Mas, o que isso significa para a nossa vivência como pessoas em uma relação comunitária?

O ministério do apóstolo Paulo pode ser dividido em duas etapas. A primeira é aquela que encontramos narrada no livro de Atos dos Apóstolos, em que ele se destaca por sua ação missionária, como um anunciador do evangelho aos gentios. A segunda é aquela que se inaugura com a Primeira Carta aos Tessalonicenses. Essa carta é o primeiro documento do Novo Testamento que surgiu, entre os anos 48 e 50 d.C., e serviu de paradigma para a criação dos demais textos que hoje fazem parte do cânon neotestamentário.

A igreja de Tessalônica tem um papel muito importante na vida do apóstolo Paulo. Ela foi formada por ocasião da sua segunda viagem missionária, quando chegou à Macedônia, depois de ter estado na cidade de Filipos juntamente com Silas e Timóteo, conforme registros de Atos 17.1-9. Quando Paulo e Silas chegaram àquela cidade, logo começaram a fazer palestras e sermões na sinagoga judaica, durante três sábados. Isso resultou em um grande número de conversão de judeus e de gentios (Atos 17.4). A permanência de Paulo, Silas e Timóteo em Tessalônica foi curta, mas isso não impediu que uma forte e atuante igreja surgisse.

Tessalônica era uma importante cidade portuária às margens do mar Egeu. Para lá confluíam muitos migrantes em busca de trabalho. Havia também, por isso mesmo, uma enorme população de pessoas que viviam em regime de escravidão. Era uma cidade que enfrentava uma gritante desigualdade social, mas também uma grande diversidade de expressões culturais, religiosas e de concepções filosóficas.

A igreja de Tessalônica também exerceu um papel muito importante na vida das demais igrejas do Século I. Naquela época, não havia muitos referenciais do que é ser igreja. Tudo o que acontecia era revestido de um aspecto inaugural, iniciador de um processo que acabou se configurando no que a igreja veio se tornar ao longo de sua história. A igreja em si era formada por pessoas pobres, mas que demonstravam grande generosidade e amor cristão (2 Coríntios 8.1-2).

A carta foi escrita logo após Paulo receber informações de Timóteo a respeito da igreja. Devido à impossibilidade de retornar a Tessalônica, Paulo enviou Timóteo para que encorajasse a nova comunidade de fé. Diante dos relatos sobre a condição da igreja, que continua viva e dinâmica, e da impossibilidade de retornar àquela cidade, Paulo, então, resolve enviar uma carta com palavras de exortação e de encorajamento aos cristãos. Ele ainda se encontrava em Corinto e escreveu essa carta com a ajuda de Sila e do próprio Timóteo (1 Tessalonicenses 1.1).

A carta é carregada de cuidados amorosos com a igreja. Os autores chegam a se comparar a uma mãe que acaricia os filhos (1 Tessalonicenses 2.7) e a um pai zeloso (1 Tessalonicenses 2.11). A preocupação maior é com as duras perseguições que os cristãos sofriam, que exigiam deles uma conduta íntegra e perseverante. Por essa razão, o tema da santidade se torna transversal para tratar dos grandes desafios de viver a fé em meio a uma sociedade plural e marcada por grandes desafios sociais. Isso nos lembra que somos santos, não por sermos perfeitos, mas por sermos convidados a agir como testemunhas do amor de Deus por toda a humanidade.

A santidade não diz respeito a uma experiência cultual ou devocional, mas a um aspecto ético de nossa maneira de viver e agir no mundo. A santificação é o processo de imersão no mundo como consequência de nossa experiência de encontro com Jesus Cristo. Ser santo significa viver aquilo que estamos nos tornando: pessoas que encarnam a proposta de vida apresentada e demonstrada por Cristo no mundo. Portanto, não é algo que se adquire de imediato, mas algo que se constrói a partir de uma vivência comum, inserida no contexto de uma comunidade.

O chamado à santidade é imperioso. É urgente vivermos uma vida santa no mundo de hoje. Viver de maneira santa não corresponde a fugir do mundo, mas a ser inserido nele como agente de transformação. O chamado à santidade tem a ver com a vida em comum. Não existe santidade fora da vida comunitária.

sábado, 16 de janeiro de 2021

A essência da santidade: a profecia de Amós / The essence of holiness: Amos' prophecy / La esencia de la santidade: La profecía de Amós

 

“[...] A nação não suportará as suas palavras” (Amós 7.10) 

Amós foi um profeta divisor de águas no profetismo do Antigo Testamento. Sua profecia revela que Deus está ao lado dos mais pobres, das vítimas de uma sociedade injusta. Ele declara a santidade divina e conclama o povo de Israel a restaurar sua aliança com Deus. Essa é a essência da proposta de santidade: a proximidade a Deus restaura as nossas relações humanas.

Amós não era um profeta profissional e não pertencia a nenhuma ordem religiosa. Era um homem simples que vivia a realidade social do seu tempo. Ela sabia na prática dos problemas enfrentados pelas pessoas das classes dominadas, os trabalhadores e os mais pobres. Ele percebia as injustiças cometidas pelas autoridades religiosas, jurídicas e políticas. E ele verificava como as classes superiores ostentavam a riqueza obtida pela exploração dos mais pobres.

Amós não profetizou a partir dos palácios. Ele falou com base em sua vivência cotidiana. Esse é um novo modo de fazer profecia, que não se dá a partir da vida palaciana. Os governos de Judá e Israel experimentavam um período de expansão territorial e econômica, mas ao mesmo tempo se distanciavam das necessidades das populações mais carentes, retirando direitos dos trabalhadores e dos mais pobres. Ele enfrentou um poder político consolidado, forte e centralizador, que associava política e religião. Os ricos e poderosos desse tempo viviam uma religiosidade aparente, praticantes que eram de uma religião com um discurso que agradava à elite dominante. A religião era usada para justificar os atos de injustiça, de opressão e de extorsão.

A profecia de Amós denunciava a religiosidade hipócrita, a prosperidade social e econômica construída a custa dos mais pobres e a falta de justiça no cuidado com os direitos dos mais vulneráveis. Essa forma de profetizar propunha uma nova ética baseada no amor de Deus. Na sua mensagem, ele proclamou um Deus que se opõe ao sistema opressor dominante, que viola direitos, que cerceia a liberdade e oprime o outro. Esse Deus está disposto a destronar os poderosos, a aniquilar toda trama sórdida que destrói esperanças e permite toda sorte de pecados sociais. Amós declarou: “[...] Mas vocês transformaram o direito em veneno, e o fruto da justiça em amargura” (Amós 6.12).

Amós é o modelo de santo para esses tempos de avanço do neoliberalismo e das forças extremistas que tentam impor regimes de exceção, que viola direitos, que promove o ódio contra os opositores e pratica atos de preconceito e de injustiça. Milton Schwantes diz, em seu livro A terra não pode suportar suas palavras, que o modo de vida de Amós possui relevância sobre sua conduta como profeta. Ele era alguém que se sustentava com os recursos obtidos em seu próprio trabalho. “[...] Seu trabalho dá autenticidade a suas palavras. Entre o Amós trabalhador e sua profecia radical contra os totalitários deve haver uma relação. O trabalhador e o ‘profetizador’ se correlacionam, embora este não dependa daquele” (p. 43-44).

Por conta dessa relação entre modo de vida e conteúdo da mensagem, o povo foi lembrado que Deus não pede para que sejamos perfeitos. O que Ele espera de nós é que assumamos o risco de buscarmos uma vida mais justa e sejamos sinceros para reconhecermos nossos erros. O santo não é aquele que faz tudo de acordo com um paradigma moral que é imposto, mas que sabe que não dá para viver de forma tranquila quando sabemos que nosso próximo carece de dignidade, de alimento, de teto, de segurança e de trabalho.

Ser santo é saber quem é. Deus é santo porque Ele é o que é. E Ele nos chama para vivermos nossa humanidade perante ele como somos. A todo aquele que ouve seu chamado, Deus constitui como seu povo e Reino. O povo de Deus é chamado a reconhecer quem ele é: um povo separado para ser uma expressão de quem Deus é. Deus faz uma aliança com seu povo para uma vida santa no mundo.

Um povo santo precisa se dedicar mais à justiça social como expressão da santidade divina. O profeta anuncia que Deus tem lado, que é o do mais pobre. Como povo santo, cabe a si a tarefa de denunciar tudo aquilo que fere a dignidade humana e anunciar a bondade, a justiça e o amor de Deus pelas vítimas.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Para que todos tenham vida: Campanha em favor da vacinação para todos contra a Covid-19 / For everyone to have life: Vaccination for all against Covid-19 / Para que todos tengan vida: Vacunación para todos contra Covid-19

 

CAMPANHA PRÓ-VACINAÇÃO

“Para que todos tenham vida”

#VacinaParaTodos

NOTA DO GRUPO FÉ E POLÍTICA: REFLEXÕES

Para o Grupo Fé e Política: Reflexões, a vacina é um direito de todos e um dever do Estado. Por isso, conclamamos todos os cristãos a se envolverem numa campanha em favor da vacinação contra a pandemia de Covid-19.

A vacina por si só não resolve todos os problemas, mas sem ela não há como superar a pandemia. Essa doença tem ceifado a vida de milhares de pessoas em todo o mundo. Somente no Brasil, já perdemos quase 200 mil vidas.

Vacinar-se é um ato cristão de cuidado de si e do outro. A vacina não é só para o benefício próprio, mas para proteger o outro também.

Juntamente com as medidas de prevenção e de proteção, a campanha de imunização pela vacinação de todos e todas é uma nova esperança para retomarmos a vida e construirmos novos sonhos.

O envolvimento de todos e todas nessa campanha é, ao mesmo tempo, um ato de solidariedade e de resistência. Solidariedade para com os mais vulneráveis. Resistência à campanha negacionista que dissemina desinformação e Fake News.

Como cristãos, afirmamos nossa confiança no dom divino que capacita os homens a desenvolverem a ciência, a promoverem políticas públicas para o bem comum e a motivarem a uma vida mais humana, de justiça e de bem-estar para todos.

Para vencermos juntos a Covid-19, façamos nossa parte.

-          Use máscara.

-          Lave as mãos.

-          Evite aglomeração.

-          Fique em casa.

-          Vacine-se.

Informe-se sobre as fases da vacinação de acordo com os grupos de risco e seja imunizado.

Esta nota será divulgada entre as lideranças denominacionais e comunidades evangélicas.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Democracia sob ameaça: Invasão do Capitólio como sintoma da crise de legitimidade / Democracy under threat: Capitol invasion as a symptom of the crisis of legitimacy / Democracia amenazada: Invasión del Capitolio como síntoma de la crisis de legitimidad

 

O dia 6 de janeiro será lembrado nos Estados Unidos por dois grandes fatos. O primeiro é referente à vitória dos democratas na Georgia, estado sulista marcado por uma história de luta contra a segregação e o racismo, com a eleição dos candidatos Raphael Warnock e Jon Ossoff. Essa vitória dá ao presidente eleito Joe Biden um empate no número de cadeiras, o que leva as decisões importantes para o controle da vice-presidente Kamala Harris.

Warnock é, inclusive, o primeiro cidadão negro da Geórgia e de todos os estados do Sul dos EUA a ocupar uma cadeira no Senado norte-americano. Trata-se de um pastor da igreja batista, a mesma confissão de Martin Luther King Jr. e John Lewis, ativistas pelos direitos civis. Sua eleição é, portanto, uma vitória do movimento negro.

O segundo fato é referente à invasão do Capitólio, o Congresso norte-americano, quando este se reunia para referendar a eleição de Joe Biden à presidência. Toda a ação foi praticada por grupos supremacistas brancos e movimentos orientados por ideias conspiratórias, articulados por Donald Trump e seus seguidores, que não aceitam a derrota nas urnas. As infundadas alegações de fraude apresentadas por Trump foram todas contestadas judicialmente.

Para alguns analistas, a invasão ao Capitólio não foi apenas um protesto, mas uma tentativa de insurreição contra a decisão democrática das eleições presidenciais de 2020. Para outros, foi a demonstração fracassada de forças da extrema direita e de seu modo de ação, ao intimidar pela truculência a fim de mudar os resultados eleitorais. Do meu ponto de vista, foi uma demonstração do fracasso do atual modelo democrático diante das novas formas de relações políticas que emergem num mundo marcado por uma crise de legitimidade.

Ainda estão bem vivos na lembrança dos norte-americanos os protestos encabeçados pelo movimento Black Lives Matter (vidas negras importam, em tradução livre para o português) em função da morte de negros em ações praticadas por policiais brancos. Os dois fatos, vistos simultaneamente, representam a repetição dos motivos que levaram à Guerra de Secessão da década de 1860.

Lançando um olhar a partir da América Latina, o que se percebe num primeiro momento é que os EUA provaram de seu próprio veneno com a primeira tentativa declarada de golpe em toda a sua história republicana. De tanto patrocinar golpes em outras repúblicas, a ação dos aliados de Trump lembra o que foi praticado pela inteligência norte-americana em países com regimes frágeis tanto política quanto economicamente, conhecidos pela alcunha de “república das bananas”.

Do ponto de vista da constituição norte-americana, Trump deverá ser responsabilizado criminalmente pela invasão ao Capitólio, que inclusive resultou em mortes de manifestantes e de agentes de segurança, bem como de muitos feridos. As cenas chocantes e lamentáveis foram transmitidas para o mundo todo. Do ponto de vista jurídico, deveria ser também afastado do cargo e conduzido preso. Entretanto, essa ação depende de decisões no Congresso, na Suprema Corte e do Procurador Geral da República dos Estados Unidos.

Para nós, brasileiros, essas tentativas de invadir o Congresso, acampar em frente a ele, cercar o prédio do STF, lançar fogos de artifícios contra ele e fazer ameaças a membros do congresso, ministros do Supremo e seus familiares já foram vistas por aqui. Tais ações foram praticadas por grupos extremistas de direita, todos apoiadores do governo Bolsonaro e apoiados pelo próprio Presidente da República e seus familiares.

Em função disso, não dá para evitar a constatação de que o dia 6 de janeiro de 2021 foi um ensaio para o que pode acontecer em função de uma provável ação de impeachment contra o governo Bolsonaro ou, se conseguir concluir o mandato, em uma possível derrota na eleição de 2022.

Isso é uma ameaça à democracia. Não à democracia em si, mas ao modelo de democracia liberal a que se chegou no Ocidente. O próprio do Presidente da República brasileiro, no dia seguinte ao episódio, mencionou uma possível reação semelhante diante do resultado das eleições desfavorável a ele. A fala presidencial soa como desrespeito às instituições democráticas que o elegeram. Na verdade, é mais uma quebra de decoro do cargo, envolvendo a responsabilização pelo que pode acontecer daqui pra frente.

Foto: de Leah Millis, da Agência Reuters, publicada no site do jornal Deutsche Welle.

domingo, 3 de janeiro de 2021

A emergência de santidade / The emergence of holiness / La emergencia de la santidade

 

Ser santo é tornar-se quem se é, nem mais nem menos. Essa definição preliminar nos ajuda a compreender a santidade como um exercício de reconhecimento de si diante de quem se está. Dito de outro modo, ser santo é assumir nossa humanidade diante de Deus e toda a criação. Se a ideia que você tem de santo tem a ver com uma pessoa religiosa que vive uma vida enclausurada, ela está distante da realidade. A santidade é uma condição humana em que são confrontadas a nossa própria fragilidade e a soberania divina.

Para Karl Barth, a santidade está diretamente vinculada à relação com o Totalmente Outro, como uma experiência que podemos chamar de “outridade”. A santidade, nessa perspectiva, tem a ver com a maneira como lidamos com a nossa vida humana diante da realidade de uma vida sem Deus. Para Barth, a santidade não é uma separação do mundo, mas uma separação para o mundo, na medida em que colocamos a nossa vida inteira a serviço da luta por uma sociedade justa, na defesa da democracia, dos Direitos Humanos e da diminuição da desigualdade social. A santidade, portanto, envolve o engajamento do crente na ação social e política como uma questão de fé e resposta ao chamado divino para tomar parte do Reino de Justiça, paz e alegria.

Nas Escrituras, a palavra tem origem no vocábulo hebraico kadosh, que se refere ao outro, o diferente, ao que não é comum, ao que é único. As versões bíblicas mais tradicionais traduzem essa palavra com o sentido de “separado”. Entretanto, ela é usada para referir-se somente a Deus como o Outro, que nos interpela para que vivamos de forma integral a nossa humanidade. Na Bíblia, Deus é santo e nos convida a viver em santidade em resposta ao seu convite amoroso. E, quando a Bíblia chama os crentes de santo, o faz na medida em que esses tomam parte da própria natureza divina.

Ao nos criar, Deus não quis que fôssemos infalíveis, mas que assumíssemos nossa humanidade. O ideal de perfeição divino não prevê a exatidão, e sim a vulnerabilidade. Para se viver em santidade, não é preciso uma vida religiosa rigorosa, mas desenvolver uma atitude mais nobre que é o amor. É indispensável exercitar o amor em tudo o que se faz, até mesmo nas pequenas coisas.

A santidade é o desejo de conhecer Deus e fazê-lo conhecido, de amar a Deus e fazê-lo amado e de seguir Jesus e de convidar a todos para segui-lo juntos. É assumir a imagem e semelhança de Deus para si. Essa é uma decisão pessoal e interior, de deixar tudo em busca de uma experiência de espiritualidade integral. Como declarou Teresa de Lisieux: “A santidade não está nesta ou naquela prática, ela consiste numa disposição do coração que nos torna humildes e pequenos nas mãos de Deus, conscientes de nossa fraqueza, e confiantes até a audácia na sua bondade de Pai”.

A essência da santidade é o amor. É pelo amor que somos chamados à santificação, é o amor que nos torna santos e é em amor que encontramos forças para seguir em frente. A grandeza da santidade está em nossa capacidade de amar. Ser santo é se tornar uma referência do amor divino para o mundo.

A santidade é um dom divino. A contemplação da santidade divina nos conduz a desejarmos ser santos como ele é santo e a vivermos a santidade de Deus na nossa vida humana. É essa experiência contemplativa que nos dá disposição para nos entregarmos ao Senhor e a adotarmos um estilo de vida mais simples, generoso e solidário, comprometido com o direito e as necessidades dos mais vulneráveis.

O exercício para se alcançar a santidade começa como uma oração que se expressa como um abandonar-se em Deus, que nos conduz a um reconhecimento de nossas fraquezas e a uma consciência de quem somos e diante de quem estamos. Só há um jeito de ser santo: sendo inteiro. “Não quero ser santa pela metade, eu escolho tudo”, dizia Teresa de Lisieux.

O cristianismo na contemporaneidade em geral carece de santidade. Faz-se necessário uma teologia que faça emergir pessoas que vivam em santidade no mundo atual. Todos são chamados à santidade, independentemente de condição social, credo religioso ou até mesmo formação cultural. Toda pessoa tem capacidade de desenvolver intimidade com Deus ao ponto de experimentar a santidade.

Hans Urs von Balthasar reconheceu, no começo do século XX, que a igreja encontrava-se diante de uma tarefa sobre-humana para a qual carecia não só de teólogos, mas sobretudo de santos, “de figuras pelas quais, como faróis, nos possamos orientar”. Para ele, há dois tipos de santidade: uma horizontal, que corresponde à decisão livre da pessoa de atender ao chamado de ser santo como Deus é; e outra vertical, que é aquela em que Deus elege uma pessoa em especial para o cumprimento de Sua missão de forma específica. No primeiro tipo, mais comum, os santos são aqueles que humildemente reconhecem suas falhas e procuram se tornar semelhantes a Deus em sua bondade e amor. No segundo tipo, que é raro e imprevisível, a santidade se torna um drama na vida de quem recebe tal convocação, pois ela tem sua vida invadida pelo divino.

O mundo carece de santos. Não dos santos canonizados e beatificados, mas daqueles que sabem administrar a multiforme graça de Deus em suas circunstâncias concretas de vida. O mundo carece de gente comum que se coloca diante de Deus no caminho da santificação, com a força do seu testemunho e com a sua disposição de compartilhar em amor o cuidado de Deus sobre toda a criação.

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