terça-feira, 27 de abril de 2021

Missão Integral e compromisso com o mundo: a morte de René Padilla abre uma lacuna na Teologia Latino-Americana / Integral Mission and commitment to the world: the death of René Padilla opens a gap in Latin American Theology / Misión integral y compromiso con el mundo: la muerte de René Padilla abre una brecha en la teología latinoamericana

A primeira vez que li um texto de René Padilla estava cursando Teologia no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, lá pelos anos de 1980. Eu era muito jovem, tomado pelo arroubo do pensamento crítico, ávido de conhecimento para desbravar o campo da Teologia e da Filosofia.

Era um tempo de grandes transformações, ainda em meio aos anos de regime de exceção que tomou conta do Brasil. Ler Padilla e sua Missão Integral era um bálsamo para os meus ideais e um estímulo para a construção de minha consciência em relação à missão e ao ministério pastoral. Era uma de minhas leituras subversivas, aquelas que não eram recomendadas por professores e nem faziam parte do currículo. Junto com Padilla, se somaram Leonardo Boff, Hans Küng, Paul Tillich e tantos outros que fizeram minha cabeça. Lia por fome, por diletantismo, por vontade, por curiosidade.

Conheci René Padilla pessoalmente apenas em 2015 quando fui à consulta FTL setor Brasil em São Paulo. Estavam ali os três principais fundadores da teologia da missão integral na América Latina ainda vivos à época: Samuel Escobar, Pedro Arana e o próprio René. Foi um encontro inesquecível, em que pude conversar com ele, abraçá-lo e agradecer pela influência que exerceu na minha vida.

Equatoriano, nascido em 12 de outubro de 1932, ele foi criado na Colômbia, educado nos Estados Unidos e serviu como pastor na Argentina. Participou da famosa Conferência de Lausanne em 1974, exercendo grande influência na elaboração do documento sobre o compromisso social da igreja. Alguns o consideravam como um “evangelicalista”, mas logo se distanciou desse movimento, identificando-se com a realidade latino-americana, comprometido com um cristianismo evangélico voltado par o diálogo, para o atendimento dos mais vulneráveis, para o cumprimento da missio Dei e para realização do Reino de Deus no mundo.

Na tarde de hoje, René Padilla faleceu. Depois de um tempo enfermo, não resistiu. Deixa-nos aos 88 anos. Uma lacuna se abre na teologia latino-americana, sobretudo no âmbito do movimento evangélico. Nesses tempos em que o fundamentalismo parece hegemônico, a voz de alguém como Padilla vai fazer muita falta.

Atualmente, recai sobre meus ombros a tarefa de coordenar no Brasil e instituição que Padilla ajudou a fundar, a Fraternidade Teológica Latino-Americana, a FTL, juntamente com o Rogério Donizete. Com essa notícia, sinto-me pequeno diante desse imenso desafio. Padilla sonhava com um espaço em que todos e todas tivessem voz, em que fosse possível construir um pensamento a partir da realidade latino-americana que dialogasse com o mundo.

Bem, o desafio está posto. Padilla descansou. A vida continua.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Salvar o planeta é salvar a humanidade / Saving the planet is saving humanity / Salvar el planeta es salvar a la humanidade

É uma pretensão e uma arrogância dizer que a humanidade salvará o planeta. É preciso muita coragem, sabedoria e humildade para admitir que a humanidade é responsável até aqui pela ameaça de sua própria extinção. E a única forma de frear esse desastre é preservar o que ainda resta de equilíbrio ecológico.

A crise ambiental que tem ameaçado o planeta é provocada pela própria atitude humana. Se queremos cuidar (ou salvar) o planeta, temos que reconhecer suas causas, quais são as atitudes humanas que desencadearam esse processo de degradação que parece irreversível. Neste Dia da Terra, quando líderes do mundo inteiro são convocados pelo Presidente dos Estados Unidos da América Joe Biden para a formação de uma cúpula para refletir sobre o que fazer, precisamos nos conscientizar de que esse assunto deve afetar a todos.

Essa crise tem três matrizes causadoras, que vêm sendo engendradas ao longo da história da civilização ocidental. Portanto, ela não é de hoje. Já faz algum tempo que a vida vem sofrendo com o esgotamento da natureza. A humanidade também tem produzido tentativas para a superação dessa crise, embora insuficientes. Entretanto, é preciso uma tomada de consciência de que somente uma conversão radical quanto à maneira como a humanidade tem orientado sua conduta pode apontar uma saída e isso se faz mais do que urgente.

A crise não se limita ao campo da biologia, mas à maneira como a vida como um todo vem sendo tratada, sobretudo a partir da racionalidade moderna. Essas três matrizes causadoras são identificadas pelos seus vieses tecnológico-científico, político-econômico e teológico-filosófico em que um está intimamente relacionado com o outro.

As conquistas tecnológicas e científicas, conquanto tenham proporcionado um avanço na conquista do bem-estar e na solução de problemas que afetam as condições humanas de vida, têm custado a depredação da natureza. A mentalidade científica ocidental foi construída a partir da ilusão de que, através das ciências naturais, o homem é capaz de exercer domínio e controle sobre a natureza.

As relações de poder produziram a concepção dos estados modernos industrializados. Com isso, a fonte de riqueza passou a ser a transformação de recursos naturais em bens de consumo, cujo auge se deu com a chamada revolução industrial. A economia e a politica deixaram de ser atividades de cuidado com a casa e a cidade para serem estratégias de controle e de interdição na vida dos indivíduos, a partir da necessidade de consumo. Para que esse intento fosse consolidado, dependeu-se cada vez mais do uso da mão de obra servil a disposição daqueles que detém o direito de propriedade, sob a proteção de estados que promovem leis que favoreceram (e ainda favorecem) a concentração de riqueza.

Tudo isso se deu a partir de uma cultura marcada pelo cristianismo. Tanto a concepção cristã da criação quanto a ideia de que o ser humano é dotado de autorização divina para explorá-la forneceram o fundamento ideológico para o uso desordenado dos recursos naturais sem a preocupação com sua recuperação. Essa ambição humana foi reforçada por uma interpretação equivocada das Escrituras e instrumentalizada de tal modo para validar a ideia de que a exploração da Terra é um mandamento divino. Um desses equívocos é a tradução e a interpretação da expressão: “[...] subjuguem a terra” (Gênesis 1:28).

As ciências naturais formulam tecnologias que afetam diretamente as condições de vida no planeta. As políticas econômicas se baseiam na exploração dos recursos naturais, sobretudo as fontes de energia que dependem da extração. A necessidade de atender às demandas de consumo dos países em desenvolvimento se depara com a forte desigualdade de oportunidades em comparação com países desenvolvidos. Na medida em que todos querem ter acesso aos bens de consumo, se percebe que a natureza não dispõe de recursos para dar conta da quantidade que lhe é exigida.

A vida está em risco. Porém, a saída não será encontrada se a matriz filosófico-teológica não for encarada com a devida seriedade. A solução para a crise ambiental é acima de tudo moral, pois diz respeito às nossas relações com o meio ambiente. Sendo assim, precisamos ter uma resposta a respeito do que estamos fazendo com a vida que temos. Do ponto de vista cristão, é preciso resgatar o sentido original da criação, em que a vida é dádiva que precisa ser cuidada e preservada. Nesse sentido, precisamos de uma teologia da criação que diga que toda forma de vida importa. A vida é o espaço sagrado onde Deus habita. Toda forma de vida importa para Deus porque ele está nelas.

domingo, 18 de abril de 2021

Jesus e as sinagogas / Jesus and the synagogues / Jesús y las sinagogas

 

Ensinava nas sinagogas, e todos o elogiavam” (Lucas 4.15).

Jesus usou os espaços religiosos de seu tempo para `compartilhar a sua mensagem. Ele o fez como um cidadão, como um religioso e como o Messias. Jesus participava de uma comunidade e praticava uma religião. Ele era da região da Galileia, da pequena cidade de Nazaré, e era um judeu.

Embora os evangelhos façam menção diretamente às sinagogas de Cafarnaum e Nazaré, duas cidades da região da Galileia, Jesus estava familiarizado com a frequência a esse espaço de devoção do judaísmo.

As sinagogas são espaços de devoção e de espiritualidade dos judeus até os dias atuais. Elas foram criadas provavelmente após a destruição do primeiro templo, por volta do ano 586 a.C., para ser um espaço de oração e de leitura das Escrituras. No tempo de Jesus, era o segundo lugar mais importante para o exercício da espiritualidade judaica, ficando atrás apenas do templo. Por essa razão, muitas vezes foi chamada de pequeno santuário.

No tempo de Jesus devia haver centenas delas espalhada por todo o território de Israel. Estima-se que só em Jerusalém houvesse cerca de 400 sinagogas. Para que surgisse uma sinagoga, era necessária a presença de pelo menos dez homens da fé judaica. Com a diáspora, esse costume também se espalhou nos lugares em que os judeus estabeleciam suas comunidades.

As sinagogas deveriam possuir três elementos essenciais: a urna para conter os livros sagrados, uma lâmpada acesa permanentemente como símbolo da instrução das Escrituras e o púlpito onde as Escrituras eram lidas. Os oradores da sinagoga eram rabinos que possuíam experiência no exercício de interpretação das Escrituras, que consistia nos livros da Torah (os livros da lei), nos livros poéticos (especialmente o de Salmos) e nos profetas.

As reuniões das sinagogas começavam com a recitação do shema: que é a referência a Deuteronômio 6.4: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor”. A espiritualidade judaica compreendia que ali era o lugar do encontro com o sagrado, para ouvir o que Deus tem a falar.

Jesus demonstrou familiaridade com os hábitos das sinagogas e era tratado como rabi ou rabino, um mestre que podia falar durante os atos cerimoniais. Jesus também demonstrou que era uma pessoa letrada, conhecedora do idioma hebraico, que tinha condições de fazer leituras públicas a partir de traduções orais dos textos bíblicos, conhecidas como targuns. E que tinha autoridade para interpretar as Escrituras.

Isso nos leva a compreender que Jesus não rejeitou a religião, mas a ressignificou. A religião não é apenas um sistema de controle e de domínio, como uma estratégia de poder, embora ela tenha sido usada pelas estruturas de poder ao longo dos tempos – inclusive nos dias atuais. Ela é uma experiência humana de encontro consigo, que estimula a transcendência e a descoberta de si. Jesus tratou os espaços religiosos não mais como espaços de interdição, mas de transformação, de libertação e de construção de nossa humanidade.

Por essa razão, Jesus não se identifica com o homo religiosus de Mircea Eliade, mas com o humano, demasiadamente humano (conforme o título da obra de Nietzsche), como aquele que compreende que a vida toda é sagrada, que o humano está acima dos rituais e que a história é o tempo de construção de nossa existência.

Os evangelhos registram quatro momentos de Jesus discursando nas sinagogas: Marcos 1.21-27, correlato com Lucas 4.31-37; Marcos 3.1-6, correlato com Mateus 12.9-13; Lucas 4.16-22, correlato com Marcos 6.16 e Mateus 13.53-58; João 6.51-59. Em cada uma dessas ocasiões ele aproveitou para pregar sobre temas que estavam ligados à vivência humana, valorizando sempre a dignidade da pessoa, em detrimento do cerimonial.

A intimidade de Jesus com a sinagoga pode ser percebida em outras situações narradas nos evangelhos, como a cura da filha de Jairo, o chefe da sinagoga, em Marcos 5.21-43, Mateus 9.18-26 e Lucas 8.40-56. Para Jesus, a sinagoga era espaço de compartilhamento da boa notícia do amor de Deus (Mateus 4.23, Mateus 9.35, João 18.20), de cura para as dores humanas (Lucas 13.10-17), de construção de nossa identidade (Lucas 7.4-50), de confrontação com a religiosidade hipócrita (Mateus 6.2 e 5, João 12.42), de enfrentamento das formas de dominação (Marcos 12.39, Mateus 23.6, Lucas 11.43, Lucas 20.46, João 9.22) e de espaço de testemunho e martírio (Marcos 13.9, Mateus 10.17, Mateus 23.34, Lucas 4.24-30, Lucas 12.11, Lucas 21.12, João 16.2).

As comunidades cristãs primitivas procuraram reproduzir a experiência das sinagogas. Muitas vezes, igrejas cristãs nasceram a partir dos ensinos de Paulo nas sinagogas espalhadas pelo mundo greco-romano. Refletir sobre a experiência cristã nos espaços religiosos nos remete ao diálogo necessário entre religião e espiritualidade, vida religiosa e vida intramundana. Esse foi o exemplo deixado por Jesus.

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