sábado, 30 de julho de 2016

O canto de Moisés: espiritualidade em meio à luta / The song of Moses, spirituality amid fighting / La canción de Moisés, la espiritualidad en medio de combates

O Senhor é a minha força e a minha canção; ele é a minha salvação! Ele é o meu Deus e eu o louvarei, é o Deus de meu pai, e eu o exaltarei!” Êxodo 15.2
Moisés tinha mais ou menos oitenta anos quando começou a liderar o povo hebreu na travessia do deserto em direção à Terra Prometida. Poderia se dizer que ele tinha visto de tudo nessa vida, como pessoa experiente que era. Já tinha vivido em palácios e em acampamentos, já tinha trabalhado em liderança e sabia o que era ser escravo, já conhecia a cultura das elites e já tinha vivido em meio a cultura do povo, já tinha experimentado a religiosidade dos pagãos e já havia vivenciado a espiritualidade do seu povo.
Naquele momento crucial da sua trajetória, logo após atravessar o Mar Vermelho, Moisés estava em êxtase. Ele e todo o povo tinham vista a mais sublime manifestação do poder de Deus. Um Deus que consegue abrir o mar só podia ser muito poderoso mesmo. É sinal de que tem em suas mãos o controle de tudo. Porém, ele sabia que sua missão apenas estava começando. Ela só terminaria em Canaã.
Moisés tinha tudo para se deixar encantar por aquele momento. Com um Deus assim ao seu lado, não precisaria ter temor algum. Entretanto, ele reúne o povo e louva ao Senhor como um exercício de entrega e preparação para o que virá depois. O canto de Moisés naquele momento era um sinal de que não só ele estava agradecido e não só reconhecia o poder de Deus, mas demonstrava sua disposição para seguir adiante.
Moisés tinha três motivos para cantar. O primeiro é que ele sabia que Deus livra. Os poderosos da Terra em seu tempo indagavam: “que Deus pode livrar vocês das minhas mãos?” Mas ele, bem como os profetas e poetas, cantam: “quem pode livrar como o Senhor?” Ele disse: Quem entre os deuses é semelhante a ti, Senhor? Quem é semelhante a ti? Majestoso em santidade, terrível em feitos gloriosos, autor de maravilhas?” (Êxodo 15.11).
O segundo motivo é que ele sabia que Deus salva. Deus conhece as aflições do seu povo exatamente porque está junto dele. Tão perto que pode socorrer com suas próprias mãos. Senhor, a tua mão direita foi majestosa em poder. Senhor, a tua mão direita despedaçou o inimigo” (Êxodo 15.6). Somente um Deus que está presente pode salvar-nos daquilo que mais nos aflige. Em outra feita, o profeta Sofonias também vai declarar que Deus salva porque está no meio do seu povo. O Senhor, o seu Deus, está em seu meio, poderoso para salvar. Ele se regozijará em você, com o seu amor a renovará, ele se regozijará em você com brados de alegria” (Sofonias 3.17).
O terceiro motivo é que ele sabia que Deus fala. Desde a experiência da sarça ardente, Moisés aprendeu a ouvir a voz de Deus. Ele descobriu que Deus fala e que isso é maravilhoso. Mas não só isso, o que Deus fala é bom para a vida, atender ao chamado divino e obedecer à sua voz é o melhor que se tem a fazer. Foi isso que ficou claro para aquele povo a quem liderava: O Senhor, o nosso Deus, mostrou-nos sua glória e sua majestade, e nós ouvimos a sua voz vinda de dentro do fogo. Hoje vimos que Deus fala com o homem e que este ainda continua vivo!” (Deuteronômio 5.24).
O canto de Moisés não é um canto de vitória ufanista. Ele não fez isso como quem ganha um campeonato de futebol. Com aquele canto, Moisés rendeu sua vida inteira a Deus. Dali por diante, poderia acontecer o que fosse, Moisés não tinha dúvidas de quem Deus era. Ele sabia que a jornada seria longa e difícil. A única força que teria para vencer os grandes desafios era a consciência de que Deus estava ao seu lado. Em todo o tempo, Deus seria suficiente para livrar, para salvar e também para falar.
No fim da vida, já aos cento e vinte anos, depois de liderar o povo pelo deserto, ao transmitir a incumbência para Josué, Moisés cantou mais uma vez. Ele disse: Ele é a Rocha, as suas obras são perfeitas, e todos os seus caminhos são justos. É Deus fiel, que não comete erros; justo e reto ele é” (Deuteronômio 32.4).
Seu cântico entrou para a história. Na eternidade, os sete anjos do Apocalipse o entoarão como reconhecimento da vitória: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus todo-poderoso. Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações. Quem não te temerá, ó Senhor? Quem não glorificará o teu nome? Pois tu somente és santo. Todas as nações virão à tua presença e te adorarão, pois os teus atos de justiça se tornaram manifestos” (Apocalipse 15.3,4).
Você tem algum motivo para cantar? Lembre-se de o quanto Deus já o livrou, reflita sobre a salvação que vem do Senhor e pare para ouvir o que Deus tem para falar. Todos nós temos algumas razões para cantar, mesmo que tudo pareça tão difícil ao nosso redor. Caso não encontre uma neste exato momento, siga ao menos o conselho: Cantem de alegria ao Senhor, vocês que são justos; aos que são retos fica bem louvá-lo” (Salmos 33.1)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Trégua Olímpica: um tempo de tolerância, solidariedade e paz / Olympic Truce: a time of tolerance, solidarity and peace / Tregua Olímpica: un tiempo de tolerancia, de solidaridad y de paz

Os jogos olímpicos, em sua versão primeira, foram criados para se promover a paz. Já naquela época se entendia que o esporte inspira ações de tolerância, solidariedade, de inclusão social, de educação e de pacificação, tendo em vista a construção de uma sociedade mais justa. Isso vale para hoje também. Nelson Mandela chegou a dizer que “o esporte fala às pessoas em uma linguagem que elas podem entender”. E as Olimpíadas se constituem como o ponto máximo de realização desses ideais humanos.
A Grécia antiga, por volta do século VIII a.C., vivia em meio às guerras entre suas cidades e para se proteger dos impertinentes invasores. Os gregos, então, propuseram um período de trégua, ao qual chamaram de Ekecheiria, que significa “dar as mãos”. Durante esse período, atletas, artistas e peregrinos, bem como seus familiares, poderiam viajar em segurança para Olímpia, o local dos jogos olímpicos, e retornar do mesmo modo para suas cidades. Esse tempo equivalia a sete dias antes dos jogos e a sete dias depois dos jogos, chamado de trégua olímpica ou paz olímpica. A cidade onde os jogos eram realizados era considerada como território neutro, ainda que as cidades participantes estivessem em guerra. Ali, inclusive, líderes militares poderiam fazer seus acordos de paz.
Na reedição dos jogos olímpicos na contemporaneidade, a tradição de se buscar um período de trégua durante o torneio vem sendo mantida. Mas, somente em 1991, por causa dos conflitos na extinta Iugoslávia, o Comitê Olímpico internacional começou a mobilizar meios para a adoção da trégua olímpica como um tema de interesse internacional. Desse modo, em 1992, a ONU convocou a todos os países signatários a observarem um período de trégua durante os jogos já a partir da Olimpíada de Barcelona, naquele ano. Em 1993, então, são instituídos os 100 Dias de Paz para todos os jogos olímpicos e paralímpicos de verão e inverno.
Em face dos muitos conflitos que o mundo enfrenta, Ban Ki-Moon, o Secretário-Geral da ONU, pediu um cessar das hostilidades no mundo todo, ao aproximar-se a edição deste ano dos jogos na cidade do Rio de Janeiro. “Uma pausa nas lutas manifestaria os valores que os Jogos buscam promover: respeito, amizade, solidariedade e igualdade”, disse.
Embora o esporte seja um fator importante para a promoção da tolerância, da solidariedade e da paz, nem sempre os jogos olímpicos conseguiram promover uma trégua. Durante as realizações nos tempos modernos, duas guerras mundiais aconteceram de modo a cancelar algumas edições. Até mesmo durante a chamada guerra fria, aconteceram boicotes, proibições e até atentados, como foi o caso dos jogos de Munique, em 1972, quando onze atletas de Israel foram mortos pelo grupo terrorista palestino Setembro Negro. A única edição que recebeu 100% de adesão dos países-membros da ONU foi a de Londres, em 2012.
De acordo com a decisão aprovada em outubro de 2015 na ONU, 180 dos 193 países-membros concordaram em observar uma paralisação dos conflitos durante os jogos do Rio 2016, a começar, portanto, nesta sexta-feira, 29 de julho. O documento que trata da trégua olímpica neste ano recebe o título de “Esporte para o desenvolvimento e a paz: construindo um mundo mais pacífico e melhor por meio do esporte e do ideal olímpico”. Nele, foram incluídas preocupações com a proteção e a educação de meninos e meninas em todo o mundo.
Para um tempo marcado pela crise dos refugiados e pelos ataques terroristas, a expectativa de que a trégua olímpica se torne realidade já é um alento. Isso deve valer também para que se observe um cessar na intolerância, no preconceito e nas hostilidades entre as pessoas, não só entre nações. Isso deve valer mais ainda para os conflitos internos no nosso país: guerras de quadrilha pelo controle do tráfico, agressões e ofensas por causa de intolerância religiosa e ideológica bem como a tramitação do golpe de estado em curso no país com aparência de legalidade, que é o impeachment atual.
Um evento dessa magnitude, que acontece pela primeira vez num país latino-americano, certamente comporta críticas de várias naturezas. Mas não podemos perder a chance histórica de cuidar das relações uns com os outros, de lembrarmos que somos todos humanos, de que ainda é possível sonhar com um tempo de paz para a nossa cidade, para o nosso país e para o mundo em que vivemos.

domingo, 24 de julho de 2016

Viver de um modo digno / Live worthily / Vivir de manera digna

“Não importa o que aconteça, exerçam a sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo, para que assim, quer eu vá e os veja, quer apenas ouça a seu respeito em minha ausência, fique eu sabendo que vocês permanecem firmes num só espírito, lutando unânimes pela fé evangélica.” Filipenses 1.27
A maior dificuldade do evangelho não é a oposição ou a indiferença que o mundo tem a ele, mas a falta de habilidade dos cristãos em vivê-lo completamente. O grande desafio da vida cristã é vivê-la integralmente no mundo, em meio às circunstâncias históricas de nossa existência. A maneira como Paulo encoraja aos cristãos a que vivam de um modo digno do evangelho tem a ver com a nossa cidadania. E isso é uma conquista que se faz no campo político.
Para Hanna Arendt, a cidadania corresponde ao direito a ter direitos, quer dizer, ao direito de pertencer a uma comunidade e de desfrutar daqueles direitos de ter uma vida humana digna, não importa a nossa origem, a nossa condição social, a nossa opção ideológica ou de qualquer outra natureza. Trata-se do direito a ter direitos pelo fato de sermos humanos. E é justamente aí que reside toda a crise dos direitos humanos atuais.
Não precisamos de uma apologética, nem de um corpo doutrinário são nem mesmo de uma moral rígida para que vivamos no mundo de um modo digno do evangelho. Bastaria entendermos a nossa própria condição humana e desejarmos que aquilo que nos confere dignidade se transforme em um bem desfrutado por todos os cidadãos no mundo.
Nessa afirmação de Paulo, duas questões estão em aberto: o que é uma vida digna de ser vivida? O que é a fé evangélica? Dito de outro modo: o que é preciso fazer para que construamos uma vida digna na dimensão do evangelho?
Uma vida digna é aquela em que nos tornamos participantes da construção de uma sociedade mais justa, onde todos têm direito a um teto, a um trabalho, ao alimento, à segurança, à educação, à saúde e até ao lazer e à expressão cultural. Não pode haver dignidade onde falta a justiça. Da mesma forma, não pode haver justiça onde falta misericórdia. E não pode haver misericórdia se não formos tomados pelo mesmo amor que tomou o coração do Pai ao se oferecer, na pessoa de Jesus, para ser solidário às pessoas mais vulneráveis em sua própria dor.
A fé evangélica é aquela que nasce das narrativas e ensinos deixados por Jesus. Isso quer dizer que não basta pertencer a uma comunidade religiosa, cumprir rituais e regras, obedecer a uma hierarquia e financiar a sua estrutura. Há que se compreender a essência do que motivou Jesus a viver do modo que viveu e o cerne de seu ensino para a vida que ministrou a todos aqueles a quem chamou para segui-lo.
Claro que pertencer a uma comunidade religiosa que professa a sua fé no evangelho de Jesus é importante e até fundamental. Não existe vida cristã sem compromisso com a comunidade daqueles que possuem a mesma fé. Porém, isso não é fator determinante para se viver de um modo digno, pois trata-se de uma necessidade humana.
Paulo fala de um modo como se esse fosse o compromisso primeiro da fé cristã, do qual todos os outros derivam e ganham maior significado. Não importa o que aconteça, seja a fartura ou a escassez, precisamos viver de maneira digna como cristãos no mundo. Não importa se as pessoas vão reconhecer ou valorizar. Viver de modo digno do evangelho independe de programa, de campanhas, de filiação religiosa ou até mesmo de conhecimento teórico de como é possível fazê-lo.
É bom lembrar que, para isso, Paulo faz um apelo. O maior esforço no exercício de proclamar o evangelho e de expandir o Reino de Deus está em construir uma vida digna no mundo. Para esse propósito, todos os cristãos deveriam estar unidos, num mesmo espírito e de forma unânime. Não deveria ser necessário uma voz de comando ou uma vigilância moral superior. Bastaria que isso se constituísse em nosso desejo mais profundo.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Implicações do diálogo inter-religioso num mundo plural / Implications of interreligious dialogue in the plural world / Implicaciones del diálogo interreligioso en el mundo plural

Vivemos num mundo plural. Melhor dizendo, o mundo sempre foi plural, mas atualmente o pluralismo deixou de se caracterizar por uma diversidade de culturas para ser uma pluralidade dentro de uma mesma cultura. E isso se reflete na configuração da experiência religiosa: ela se desenvolve em meio a uma diversidade de sentidos, possibilidades e dinâmicas. Como afirma Richard Bergeron (2009, p. 93), a “religião é um caminho humano de libertação que consiste na ativação de um universo de sentido englobante e de um sistema de práticas individuais e sociais, destinada ambas a pôr o homem em relação com o sagrado e assim a permitir-lhe transcender desde já sua existência alienante”.
O pluralismo se torna evidente e palpável na medida em que interagimos com o mundo, de tal forma que não dá mais para se viver isolado, recolher-se em uma caixa ou construir fronteiras. A cultura hodierna dominada pelo excesso de informação, construída pelas novas tecnologias e afirmada a partir da supremacia do indivíduo desfaz todas as antigas estruturas de saber e funda novas possibilidades de experiência.
Schillebeeckx (2004) chega a falar que o pluralismo da sociedade também possibilita a formação de uma personalidade plural, uma consciência aberta à novas possibilidades. “A pluralidade das possibilidades tornou-se uma qualificação íntima do sujeito”, diz, e isso muda a sua relação com a estrutura religiosa. Uma vez que sua consciência comporta uma multiplicidade de possibilidades, o sujeito vê o mundo de forma plural. Isso tem a ver com formas de conhecer, de perceber e apreender a realidade que o cerca e de ter acesso à verdade.
O cristianismo tem sido, ao mesmo tempo, vítima e mentor dessa configuração da cultura ocidental. Nesse caso, como a pós-modernidade tende a colocar a racionalidade em questão, ele também é posto sob suspeita e é tratado pela conduta laica e secularizada dominante como uma possibilidade entre muitas. Desse modo, sua escolha é: ou dialoga ou torna-se irrelevante. Isso exige uma experiência de alteridade radical visto que o diálogo só acontece naquelas circunstâncias em que se dá o reconhecimento da diversidade e quando o outro é percebido e acolhido como sujeito.
Espera-se que teólogos cristãos sejam capazes de dialogar nessa dimensão. A Teologia já é em si um exercício de diálogo. Segundo Jürgen Moltmann (2004, p. 11), “a Teologia ocorre onde pessoas chegam ao conhecimento de Deus e ‘percebem’ a presença de Deus com todos os seus sentidos na práxis de sua vida, de sua felicidade e de seus sofrimentos”. Nesse sentido, “o acesso teológico à verdade do Deus triúno é dialógico, comunitário e cooperativo”.
Referências Bibliográficas:
BERGERON, Richard. Fora da igreja também há salvação. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2009.
MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica: caminhos e formas da teologia cristã. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 2004.
(Trecho da comunicação no 29o. Congresso Internacional da Soter. - Imagem retirada do site Religión Digital)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Quem é o teu próximo? Uma parábola para a contemporaneidade / Who is your neighbor? A parable for contemporaneity / ¿Quién es tu prójimo? Una parábola para la contemporaneidade

[...] E quem é o meu próximo?” Lucas 10.29
Jesus chamou os religiosos de seu tempo a repensarem a maneira como orientavam sua compreensão do mundo e da missão. Ele apresentou a parábola do bom samaritano com uma proposta para se rever a maneira como a religião lida com o outro e o diferente a partir da pergunta: “quem é o meu próximo?”. Mas ela pode ser tomada também como uma metáfora do mundo atual, de modo que os bandidos podem ser vistos como os ticos e poderosos de hoje, a vítima corresponde aos pobres, oprimidos e explorados desse tempo e os religiosos como aqueles que estão indiferentes às dores do mundo.
O mundo carece de bons como o samaritano da parábola: pessoas que constroem um mundo melhor para o que sofre as consequências da maldade. Os próximos de hoje são os muitos explorados e oprimidos do sistema econômico capitalista mundial que entrou em colapso. Vivemos no contexto de uma ordem mundial criminosa e genocida liderada por uma pequena elite que consente acerca de quem vive e quem morre.
O sistema social, econômico, político e judicial no mundo é dominado por uma ideologia que legitima o extermínio por meio da exploração. É constrangedor saber que, neste tempo, pessoas tenham que abandonar sua terra para migrarem em busca de sobrevivência nos países que os exploram, que comunidades inteiras tenham que ser desalojadas em nome de um progresso que enriquece a poucos, que ainda haja no mundo pessoas que passem fome, morram de frio e sofram com falta de assistência médica.
Isso para não falar da questão ambientalista, das relações familiares, da diversidade de gênero e outras tantas questões que estão presentes na pauta da sociedade atual. Uma espiritualidade pluralista não pode estar alienada dos processos sociais, econômicos e políticos que orientam os problemas que afligem a humanidade. Para tornar-se relevante para esse tempo, é preciso se dar conta de que há um percurso a ser assumido, que nos remete ao outro e nos reconduz ao lugar em que somos construídos, de forma que permita uma nova compreensão de nossa missão e identidade e o aprofundamento de nossa experiência de Deus no mundo.
São tantas pessoas que morrem vítimas da injustiça e da desigualdade atualmente que nos tornamos indiferentes às suas causas. Dificilmente pensamos que alguém que sofra em uma situação de desigualdade pode ser uma vítima do sistema em que vivemos. Ainda temos muitas dúvidas acerca de quem é nosso próximo.
Um jovem que morre de overdose é uma pessoa assassinada.
Uma criança que morre de bala perdida é uma pessoa assassinada.
Um idoso que morre por não poder pagar o plano de saúde é uma pessoa assassinada.
Um sem-teto que morre de frio na rua é uma pessoa assassinada.
Um pobre que morre na fila de espera do hospital é uma pessoa assassinada.
Um imigrante que morre afogado no Mediterrâneo é uma pessoa assassinada.
Uma criança que morre de fome é uma criança assassinada.
Se Jesus viesse a nós agora, ele ainda perguntaria sobre quem é o próximo dessas vítimas da desigualdade, da injustiça e da opressão de nosso tempo. É triste constatar que poucos são os cristãos que se importariam com o sofrimento dessas pessoas. “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lucas 10.36), perguntaria Jesus a nós.
Talvez vivamos uma época como cristãos que não somos dignos sequer de sermos tratados como samaritanos. A menos que sejamos capazes de obedecer a Jesus, quando disse: “[...] Vá e faça o mesmo” (Lucas 10.37).

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Ataque em Nice: Por que a França sofre com o terrorismo? / Attack in Nice: Why France is suffering from terrorism? / Ataque en Niza: ¿Por qué Francia está sufriendo con el terrorismo?

A França tem sofrido, nos últimos dois anos, os mais graves atentados terroristas ligados à jihad islâmica no Ocidente. Tudo começou depois que, em 2013, o governo francês resolveu intensificar luta contra o jihadismo e isso tem feito com que seu território se transforme num campo de batalha do terrorismo, ao ponto de o presidente François Hollande declarar que a os franceses terão que aprender a conviver com o terror.
A França vive em uma guerra de fato. Além de três grandes ataques desde o atentado contra o Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, vários outros pequenos incidentes têm acontecido e muitos outros evitados pela inteligência e pela polícia francesa. Toda a França está sob ameaça do terrorismo. A pergunta que se faz é: por que a França está no centro desses ataques? Primeiramente – e o que parece mais óbvio –, porque os ataques são uma retaliação ao envolvimento militar dos franceses na guerra contra o Estado Islâmico. Mas não é só isso, embora essa seja uma grave explicação.
Para entender o que acontece com a França neste momento, é preciso levar em consideração dois aspectos: primeiramente, os autores dos atentados; em seguida, o momento e as circunstâncias em que eles ocorrem. No caso do ataque de Nice, o autor era um tunisiano de confissão muçulmana já radicado na França. A Tunísia, país que fica no norte da África, foi uma colônia francesa até o ano de 1956. Foi ali também que, em 2011, se desencadeou o movimento que ficou conhecido como Primavera Árabe. Entretanto, as circunstâncias em que o ataque aconteceu afetam os valores culturais e históricos dos franceses: a comemoração no feriado da Queda da Bastilha, marco histórico da luta pela liberdade, igualdade e fraternidade, os grandes ideais iluministas.
Além da causa militar, outro motivo que fica evidente é o ataque aos valores defendidos pela cultura francesa, voltados para a defesa da democracia, para a laicidade e para a liberdade. Tais valores são opostos aos ideais islâmicos, notadamente os que o EI defende de forma radical. O que os fundamentalistas parecem pretender é a criação de uma mentalidade “islamofóbica”, que desencadeie um estado de instabilidade civil nas populações muçulmanas que já vivem na Europa, e não só em relação aos movimentos migratórios que atualmente acontecem.
Mas uma outra causa está por trás dessa onda de ataques terroristas na França, que é o colapso do capitalismo mundial. O sistema econômico criado, desenvolvido e mantido pelo Ocidente dá sinais evidentes de que entrou em declínio. Já não dá mais para se sustentar uma mentalidade que promove a concentração de renda por uns poucos (aquele 1%) e que explora todo restante relegando uma massa de gente a uma série de condições de desigualdade. Alguns teóricos, como o jornalista britânico Paul Mason, chegam a afirmar que já vivemos num período que podemos chamar de pós-capitalista. E, de fato, já se verifica no mundo um conjunto de práticas, ações e até de formas organizacionais que não se rendem mais à lógica de mercado, mas que também buscam alternativas para substituir o poder hegemônico da minoria que detém a riqueza e o controle de sua produção.
Há sinais históricos do colapso do capitalismo, tais como: a queda do muro de Berlim em 1989, a crise da Bolsa de Nova Iorque em 2008 e o fenômeno recente do “Brexit” na Inglaterra. Há sinais históricos do fracasso da política das grandes potências: o ataque às torres gêmeas 11 de setembro de 2001, a Guerra do Iraque que começou em 2003 e crise de migração no mediterrâneo que preocupa o mundo desde o seu auge em 2015. Há sinais históricos de que o mundo está perdido: o agravamento da questão climática, o fortalecimento da extrema direita e os atentados terroristas na Europa, não só na França.
Um porta-voz do Estado Islâmico disse em setembro de 2014: “Bata com uma pedra na cabeça, ou mate com uma faca, ou atropele com seu carro, ou empurre de um lugar alto, ou asfixie, ou envenene [todos os descrentes ocidentais]. Especialmente, os sujos e desprezíveis franceses”. Este não é apenas um chamamento ao ódio e à vingança, embora esteja muito claro na fala de um jihadista. Porém, o implícito está ligado a tudo o que o Ocidente construiu, que é um regime de exploração – que beneficia uma oligarquia formada por banqueiros e grandes empresários – sustentado por estruturas políticas resultantes de uma democracia representativa que favorece a manutenção desse mesmo regime de exploração. A França é um símbolo dessa lógica predominante no Ocidente. A gente aqui no Brasil não pode se esquecer que não só somos um produto do Ocidente, mas que também somos ocidentais em nossa formação cultural.
(Charge de Warren Brown para o jornal britânico The Daily Telegraph, em novembro de 2015, reproduzido pelo site do Uol Notícias).

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Não tenha medo / Be not afraid / No temas

Por isso não tema, pois estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o ajudarei; Eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa.” Isaías 41.10
Alguém um dia falou que a Bíblia repete a expressão “não temas” 366 vezes, uma para cada dia do ano. Embora isso não seja um fato comprovável – a expressão deve ocorrer em torno de 90 vezes em toda a versão portuguesa das escrituras –, é legal saber que Deus é aquele que diz para não termos medo. Você não precisa que Deus repita isso todos os dias para acreditar que Ele está ao seu lado até nos momentos mais difíceis. Basta ouvir uma vez só.
Jesus disse a Jairo, o dirigente de uma sinagoga, uma vez: “Não tenha medo; tão-somente creia” (Marcos 5.36). Sua filhinha estava morrendo e ele vivia um grande conflito: era o chefe da sinagoga, que congregava os temidos fariseus que se opunham a Jesus. Contudo, ele confiou no fato de que Jesus era suficiente não só para restaurar a saúde de sua filha, mas também para lhe dar força e coragem para enfrentar aquela situação.
O medo é uma das contradições de nossa condição humana. É um sentimento que serve de sinal de alerta para nos proteger, mas também serve para nos paralisar. Aristóteles disse que o medo é uma agitação da alma diante de uma ameaça futura que pode provocar a dor e até a morte. Ele disse que “o medo é definido por uma expectativa do mal”. Para o filósofo Nietzsche, o medo é o pai da moral. Por isso, ele precisa ser vencido e, para essa vitória, é preciso uma moral capaz de exercer controle sobre nossas contradições humanas. Uma moral assim é castradora de nossa própria liberdade. Nietzsche falou isso ao criticar a moral kantiana, que defendia o agir moral a partir de um critério metafísico: um valor universal que visa o bem comum.
Segundo Espinosa, há duas fortes paixões que orientam nossas ações: a esperança e o medo. Elas têm uma origem comum, que é a dúvida. Elas surgem de uma ideia comum que fazemos da realidade, cujo resultado duvidamos. Daí ele afirmar que “não há esperança sem medo, nem medo sem esperança”.
Em Kant, a esperança e o medo não têm valores em si mesmos, embora justifiquem o agir correto para muita gente. A esperança visa alcançar as promessas divinas pelo agir correto. Já o medo tem a ver com os castigos e punições reservados aos desobedientes. As ações orientadas pela esperança ou pelo medo, no fundo, têm o mesmo sentido. Nenhuma dessas formas são válidas ou sinceras, visto que satisfazem apenas aos interesses individuais de recompensa ou de livramento.
A existência humana é marcada por uma luta constante para afastar aquilo que provoca o medo. O problema é que somos um projeto inacabado, lançados no mundo sem que tenhamos feito uma escolha prévia para isso, entregues às contingências e às circunstâncias históricas concretas. Carlos Drummond de Andrade, em sua poesia “O medo”, diz que: “Em verdade temos medo. Nascemos no escuro [...] E fomos educados para o medo”. O medo “nos dissimula e nos berça”, diz. Temos medo em estado bruto diante de situações que causam medo.
Dizer para não ter medo diante de situações que provocam medo seria uma coisa completamente fora de sentido. Essa palavra não cabe na boca de um ser humano, como uma autoafirmação ou um conselho terapêutico. Somente Deus pode oferecer uma solução para o medo, não para removê-lo, mas para superá-lo. A única força que pode vencer o medo é o amor. Pelo fato de ser perfeito amor, somente Deus pode vencê-lo. Por essa razão, a Bíblia diz: “No amor não há medo; pelo contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João 4.18)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Os “sem-religião” e o secularismo / The religious “nones” and secularism / El “no religioso” y el secularismo

O número de pessoas que professam serem “sem-religião” no mundo não só está crescendo como está cada vez mais se secularizando, é o que aponta a pesquisa divulgada recentemente pelo site do Pew Research Center. Este resultado foi obtido através de pesquisa de opinião com pessoas que se autointitulam ateus ou agnósticos nos Estados Unidos entre os anos de 2007 e 2014. Esse comportamento tem feito com que a população da maior potência mundial se torne cada vez menos religiosa.
O Pew Research Center é um instituto de pesquisa localizado em Washington que fornece informações sobre questões, atitudes e tendências que estão influenciando o comportamento das pessoas nos EUA e no mundo, principalmente no que diz respeito à religião. Entre os aspectos investigados nessa área de interesse por assuntos religiosos, quatro perguntas foram feitas: qual a importância da religião em sua vida? Com que frequência você ora? Com que frequência você vai aos cultos? Você acredita em Deus ou em algum espírito universal?
Veja os resultados:
a) Qual a importância da religião em sua vida? Nenhuma, de 57% em 2007 para 65% em 2014. Alguma (pouca ou muita), de 41% em 2007 para 34% em 2014.
b) Com que frequência você ora? Raramente ou nunca, de 56% em 2007 para 62% em 2014. No último mês, de 42% em 2007 para 37% em 2014.
c) Com que frequência você vai aos cultos? Poucas vezes no ano, de 89% em 2007 para 91% em 2014. No último mês, de 10% em 2007 para 9% em 2014.
d) Você acredita em Deus ou em algum espírito universal? Sim, de 70% em 2007 para 61% em 2014. Não de 22% em 2007 para 33% em 2014.
Em termos numéricos, a pesquisa aponta que, em 2007, havia nos Estados Unidos cerca de 21 milhões de pessoas que se declaravam “sem-religião”; esse quantitativo aumentou para 36,1 milhões em 2014. De um modo geral, o comportamento sem-religião é maior entre os mais jovens do que entre os adultos. De cada dez jovens nascidos a partir das duas últimas décadas do século XX – que hoje teriam entre 18 e 35 anos de idade –, sete dizem que a religião não tem importância em suas vidas.
Os dados do aumento do número dos “sem-religião” e do crescimento do secularismo nos Estados Unidos é uma característica de todo o Ocidente, em maior ou menor grau em algumas áreas. E o Brasil não se encontra distante disso, como se pode verificar no censo de 2010, com o aumento do número de pessoas que se identificaram como não filiadas a um grupo religioso.
As razões para este aumento da rejeição à religião numa população como a norte-americana envolve uma complexidade e se inclui nas causas do crescente secularismo que marca a cultura ocidental contemporânea. A secularização tem a ver com uma tentativa de libertação humana de todas as formas de aprisionamento a normas e crenças, tendo em vista a afirmação da autonomia do sujeito bem como o reconhecimento de que as explicações de nossas contingências se encontram nas forças da natureza, na realização histórica e nas condições concretas de existência no mundo.
Como afirmou Charles Taylor em sua Uma Era Secular, secularização não significa abandono da espiritualidade e do sagrado, mas a rejeição das formas religiosas e de suas crenças. Trata-se de um processo longo e contínuo que vem chegando ao seu ápice em nossos dias. Isso é próprio da cultura ocidental. Não significa necessariamente a ausência do religioso, mas uma nova maneira de encarar a religião em meio à dinâmica da vida social e na cultura.
Para Jürgen Moltmann, no livro A Igreja no poder do Espírito, o cristianismo precisa se encontrar em meio a este caminho de secularização, se quiser se manter fiel à sua fé e à sua esperança. Isso põe em questão alguns aspectos para os quais a Teologia deve ser direcionada: primeiramente, a questão do diálogo inter-religioso em lugar de um discurso apologético; em segundo lugar, a reflexão sobre práticas e valores ligados à fé em meio ao pluralismo religioso; e, finalmente, a preocupação da práxis de uma vida cristã autêntica comprometida em penetrar na dor e na aflição de um mundo secularizado.
A temática do cristianismo arreligioso num mundo emancipado é própria do pensamento de Dietrich Bonhoeffer, o teólogo alemão morto pelo nazismo. Para ele, o cristianismo até aqui se preocupou com o a priori religioso das pessoas, o medo da morte, a moralidade e a explicação racional para os fenômenos sobrenaturais. Com isso, ele se constituiu numa forma religiosa, historicamente condicionada e sujeita às formas de organização humanas. Diante de um quadro em que as formas religiosas, de um modo geral, são colocadas sobre suspeita, resta a essa religião lutar pela sua própria preservação, como tendo um fim em si mesma, o que é um equívoco.
O mundo se recente de um cristianismo que seja portador de uma palavra de redenção e de reconciliação que alcance as pessoas e o mundo em meio aos seus próprios conflitos e maneira de compreender o mundo. Trata-se de um modo responsável de ser cristão no mundo, solidário com as dores do mundo, porque são também as nossas dores, e capaz de dialogar sem tentar transformá-lo religiosamente.

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