sexta-feira, 23 de março de 2012

Para nossa alegria / For our joy / Para nuestra alegria

Uma canção que marcou época na formação de muitos evangélicos no Brasil acaba de entrar para o rol de memes que infestam o ambiente das redes sociais. O nome da canção, “Galhos secos”, não lembra nem de longe que tem a ver com o refrão “para nossa alegria” que se repete como um vírus na internet. Tudo por causa de um vídeo simples, produzido por uma família comum, num ambiente descontraído de seu cotidiano. De repente, de um dia para o outro, o vídeo recebe mais de 5 milhões de acessos.
Para nossa informação, meme é um termo usado por Richard Dawkins, no livro O gene egoísta, para descrever a unidade mínima de uma ideia que se propaga de forma viral pelas redes sociais. São pequenas expressões, imagens ou formas, partes de um todo, que são facilmente aprendidas e reproduzidas sem muita reflexão. Acabam fazendo parte da cultura e padroniza comportamentos. Quem já não se deteve por um instante por causa da gargalhada de um bebê, de uma frase solta, de um gesto ou mesmo de um acidente e reproduziu em seu perfil no facebook ou tweeter, iphone ou até em seus bate-papos?
Para nossa surpresa, esse meme ganhou notoriedade não por causa da memória que a canção reporta, a vivência de uma época em que ser cristão significava aceitar o desafio de confiar na graça apesar das circunstâncias vividas. Não se sabe sequer que a canção que deu origem ao refrão foi gravada pela banda Exodus, lá pela década de 1970, e que fez a cabeça de muitos jovens em igrejas evangélicas, influenciando a formação de muitos grupos musicais. É mais uma denúncia de que vivemos um tempo sem história em que o que importa é o vivido, o inusitado.
Para nossa decepção, o meme não tem uma inteligibilidade, como a letra da canção. O que vale é o grotesco, que assume conotações cômicas, sem reflexão. A gente ri porque o que é ruim pode ficar pior. Isso nos remete à nossa própria ignorância e à nossa incapacidade de encontrar respostas para o que nos angustia. Não nos damos conta que nada acontece ao acaso, que as coisas envolvem processos, relações, vínculos.
Para nossa tristeza, isso ganha uma proporção gigantesca que, em vez de estimular atitudes de mudança, difunde mais ainda a alienação e a passividade. A canção lembra o ensino de Jesus, no Sermão do Monte, que nos convoca a contemplar os lírios do campo, gesto simples que nos diz que o criador amoroso, que cuida da natureza, é capaz de cuidar de cada um de nós com um amor especial. O meme nos anestesia, serve como paliativo em meio as nossas aflições.
Para nossa compreensão, a lógica do meme nos lembra que precisamos de algo que nos devolva a nós mesmos, que nos fale que há vida depois da dor, que há alegria depois da derrota, há nova chance depois da perda, há esperança depois da angústia. A lógica da canção nos lembra que mesmo os galhos secos de uma árvore qualquer podem ter sinais de que um novo tempo vem. Tal como as estações, a vida se renova e se refaz.
Para nossa alegria, outros memes virão. Afinal, precisamos de novas injeções de ânimo, que nos restaure o riso, que nos estimule a buscar alguma satisfação em meio a tanta indiferença. Cansamos de ser coisa, produto, massa de manobra. É bom demais ser surpreendido em meio a nossa rotina para nos lembrar que somos humanos – e por isso patológicos –, sofremos e produzimos afetos e são eles que dão sentido a nossa existência.

quinta-feira, 15 de março de 2012

2012 - O Apocalipse e o ano do fim do mundo / The year of the end of the world / El año del fin del mundo

O ano de 2012 foi consagrado pelo cinema como o ano do fim do mundo. Entretanto, todas as probabilidades apontam para o fato de que pode ser que isso não aconteça neste ano, não da forma que foi imaginada pelo filme que aborda esse tema. Mas o fato é que a vida tem se tornado cada vez mais difícil, com ondas de crise que afetam setores da economia e até os relacionamentos. Além disso, o noticiário dá conta de catástrofes e fenômenos naturais de proporções nunca vistas anteriormente.
Alguns historiadores e até físicos afirmam que vivemos um novo fenômeno: o da aceleração do tempo. Não é só a impressão de que a vida passa mais depressa. Algo na contagem da temporalidade parece que está em desalinho. Isso tudo faz a gente pensar que estamos realmente próximos do fim de algo que tem orientado as nossas ações e a maneira de entender a vida como ela é.
A ideia da proximidade do fim aponta para uma leitura da Bíblia que pode apresentar equívocos. A associação imediata com a segunda vinda de Cristo, então, é inevitável. Não resta menor dúvida de que o evento escatológico relacionado à revelação de Deus em Cristo é uma promessa bíblica que está para se cumprir, do ponto de vista teológico. Mas particularmente não creio que isso seja motivo para alarme ou pavor. Jesus mesmo alertou para o fato de que é necessário estar preparado em qualquer tempo.
Nesse contexto, surge o Apocalipse, uma mensagem escrita na época em que a comunidade cristã enfrentou uma forte e dura perseguição. Numa primeira leitura, o Apocalipse fala das coisas relacionadas ao fim. Na verdade, todas as lições que encontramos ali apontam para a nossa esperança pelo fim de tudo aquilo que nos corrompe, nos oprime, nos exclui e nos explora.
A palavra Apocalipse vem do grego, que quer dizer “descobrimento”, o mesmo que “tirar o véu”. O livro pertence a um gênero literário especial que surgiu entre os judeus no período do cativeiro babilônico (século IV a.C.) até o século I da era cristã. Era uma literatura marcada por uma acentuada linguagem simbólica, cujo sentido deveria ser buscado diligentemente. Quando se descobria o método e os significados empregados pelo autor, então o sentido se tornava claro. Um dos exemplos dessa literatura é o livro do profeta Daniel, no Antigo Testamento.
A literatura apocalíptica foi característica de um tempo de grande luta para o povo judeu, tanto no cativeiro quanto na luta para se firmar na terra. Um período marcado por provações, sofrimentos e tristeza que se constituíram em um terreno fértil para uma espécie de literatura que salientava a virtude da lealdade, a necessidade da perseverança e a fé na derrota final do inimigo e a consequente vitória do poder de Deus.
O Apocalipse bíblico não deixa de ter essa mesma característica. Era uma literatura para tempos difíceis. Seu autor, o apóstolo João, estava exilado na ilha de Patmos por conta da perseguição empreendida pelo então imperador romano Domiciano, na década de 90 da era cristã. Essa perseguição produziu os mais cruéis cenários de intolerância religiosa que já se pode ter notícia contra cristãos. João, portanto, direciona o livro para as comunidades sobre as quais exercia liderança, todas localizadas na Ásia Menor (hoje Turquia)
O Apocalipse nos convida ao exercício da imaginação. Muitas coisas não conseguimos compreender a respeito da realidade que nos cerca. E provavelmente leve muito tempo para termos uma resposta sobre algumas dúvidas que temos. Em meio ao cenário em que vivia, as visões que João teve durante suas orações servem para nutrir a esperança por um tempo de vitória e o fim de toda a angústia que ele e todo o povo de Deus passavam. Suas visões alimentam sua imaginação e dão sentido à sua vida.
As circunstâncias diziam para João que o poder estava em Roma, mas suas visões apontavam para Jesus. As circunstâncias diziam para João que as ações políticas impedem a ação da igreja, mas suas orações lembravam que o Reino de Deus será consumado. As circunstâncias impediam que João fizesse algo, mas em sua visão ele não estava só.
A interpretação literal é uma grande ameaça à compreensão da mensagem bíblica. A leitura e o estudo do Apocalipse não deve se basear na pergunta: “o que isso significa?” Ele não é um livro para ser decifrado, como se tivesse um código secreto, mas para ser compreendido como uma metáfora. A Bíblia toda nos chama para uma reflexão em que o imaginário, o poético, o lúdico e o simbólico têm papel fundamental. Deve-se estar voltado para a necessidade de se descobrir novas possibilidades para o exercício da esperança e da fé. É possível descobrir que as escrituras existem para nos encorajar a viver conforme os propósitos divinos. Confiar em Deus hoje tem resultados em nosso futuro.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Aprender o improvável / Learn the improbable / Aprenda el improbable

Há dez mil anos a humanidade inventou a civilização. As comunidades deixaram de ser extrativistas e nômades e desenvolveram relações de produção. Criou-se o trabalho servil e, com ele, a desigualdade e as formas de realização do poder de um sobre o outro. O conhecimento precisava ser decorado e reproduzido a partir dos modelos fornecidos pelas autoridades. O ócio e a vida sedentária também foram inventados.
Há dois mil e setecentos anos a humanidade foi tomada por um modo de pensar que apontava para a possibilidade de conhecer por si mesmo. O anseio pela verdade deixa de ser um desejo para se tornar um método. O que se busca é o evidente, o racional, o lógico, o que pode ser compreendido dentro das categorias de pensamento. O verdadeiro passa a ser aquilo que pode ser percebido e racionalizado.
Há quatrocentos anos a humanidade descobriu a ciência, a possibilidade da certeza e a necessidade da especialização. Uma ruptura se instala e transforma a ciência no campo das incertezas enquanto a religião se mantém como o campo das certezas. Para superar a incerteza, a ciência cria a tecnologia para exercer controle. E para garantir as certezas, a religião se inclina para o dogmatismo, sectarismo, fanatismo e fundamentalismo. Como mediador dessa ruptura surge o mercado para quem todas as coisas se direcionam. Tudo se transforma num produto.
Da segunda metade do século passado para cá a humanidade tem descoberto novas possibilidades de conhecimento, de tal modo que a quantidade de informações fornecidas pelas formas com que o saber se dá é maior que a capacidade de processar. Descobre-se que estamos de fato diante de situações que não se enquadram em nossas categorias de pensamento, de maneira que não dá mais para tratar nossas relações da mesma forma como se fazia no último milênio.
Nessa trajetória toda, duas coisas ficam evidentes: estamos diante de um processo de aceleração do tempo e estamos diante de mudanças que envolvem a nossa condição humana. O ser humano passou de centro das atenções do universo – a criatura mais importante com capacidade de gerenciar a natureza criada, em que tudo gira em torno de si – e se tornou uma ameaça para o equilíbrio de todo o cosmo. Isso nos remete à necessidade de aprender que temos mais situações que nos remetem à dúvida do que às certezas e que isso é essencial para a vida. Eric Hobsbawm denuncia que estamos diante do improvável e que já na há como lidar com o mundo da mesma forma como aprendemos.
Por trás dessa história está a tentativa de se exercer o controle sobre a vida. É o desenvolvimento de uma civilização do controle crescente que deságua nessa sociedade contemporânea do conhecimento e da informação. A capacidade hoje de produzir informações acelera as mudanças e estabelece o improvável. Isso produz deslocamentos nas formas de organização social de maneira que não há como combater seus efeitos sobre o desemprego, as desigualdades e os fracassos das políticas econômicas e públicas. Tudo se torna obsoleto com uma velocidade nunca vista, o que desencadeia a busca de novas formas de controle. Tudo passou a ser transitório e a comportar a diversidade. A incerteza faz parte da nossa vida e somos convocados a buscar novos rumos.
É preciso se dar conta de que a inteligência não está na capacidade de acumular certezas, mas na capacidade de se perceber o processo em que o saber é construído. O sábio não é o que sabe muito, mas o que é capaz de tomar decisões e fazer escolhas diante do improvável. Não se trata mais de buscar resposta, mas de mudar a forma de fazermos perguntas. Não se trata também de evitar as certezas. É preciso se dar conta de que defender certezas resulta em totalitarismo, intolerância e preconceito. O improvável é o espaço do contraditório e condição de liberdade, envolve a aventura de correr riscos para se descobrir e reinventar novos caminhos.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O poder dos relacionamentos/ The power of relationships / El poder de las relaciones

A gente vive num tempo em que os referenciais foram perdidos. Uma onda de decepção e descrédito toma conta dos relacionamentos e conduz a uma perda da confiança nas instituições, a uma fragmentação das relações e à relativização do saber. A decepção com aqueles que deveriam ser exemplos tem marcado muitos aspectos de nossa afirmação. Diariamente somos informados de políticos que se corrompem, líderes religiosos que se envolvem em problemas morais, pessoas do mundo dos negócios que se envolvem em transações desonestas. Isso está mais presente no nosso cotidiano do que imaginamos: no trânsito, na escola, na família, nas pequenas atitudes. Até mesmo os nossos maiores heróis – nossos pais – já nos decepcionaram.
O problema é que a gente aprende a partir de modelos. Se não temos referenciais, o improvável toma conta, a incerteza quanto ao futuro pode nos paralisar e a insegurança com o presente pode nos levar a uma busca de solução individualista. A necessidade de afirmação pessoal faz surgir uma sociedade consumista em que tudo passa a ser tratado como produto. O grande mestre desses tempos de incerteza passa a ser aqueles que servem como modelos de consumo e de exposição na mídia. É a síndrome de influência das celebridades, que passam a ditar o que é mais importante na moda, no estilo de vida e nos hábitos da sociedade.
Até mesmo na vida religiosa a falta de exemplos afeta as relações de fé. Hans Urs von Balthasar já advertia que na religião cristã já não se faz santos como antigamente. Desde há muitos séculos não se via mais na igreja muitos teólogos que fossem também santos. Entretanto, Jesus reconheceu que a força da fé está mais no testemunho de vida que seus seguidores podem dar do que na quantidade de informações que possuem sobre religião. Jesus disse ao seus discípulos ao final de seu ministério: “Vocês são testemunhas destas coisas.” Lucas 24.48.
Testemunhar é uma palavra que, no grego, está associada à ideia de martírio. O papel da testemunha é validar a veracidade dos argumentos que envolvem a percepção e a interpretação da realidade. Há uma exigência para a testemunha: o compromisso com a verdade ainda que isso envolva um ônus. O custo para aquele que segue a Jesus Cristo é servir de exemplo para a humanidade toda, ainda que isso envolva o risco de sua própria vida. Jesus sabia disso. Por isso, afirmou que seus discípulos são o sal da Terra e a luz do mundo por causa dos seus exemplos de vida. Ainda que fossem poucos, a força do exemplo daqueles que seguem a Jesus poderia fazer a grande diferença.
A sociedade carece de bons exemplos sobre o que é viver de forma feliz, identificado com Cristo, firmado na fé e na esperança em um Deus amoroso, gente que tenha acolhido o seu convite de forma autêntica e perseverante. Paulo orientou a Timóteo: “seja um exemplo para os fiéis na palavra, no procedimento, no amor, na fé e na pureza.” 1 Timóteo 4.12. É nisso que reside o poder dos nossos relacionamentos: a capacidade de influenciar as pessoas que nos envolvem com a força de nosso testemunho. Eu creio que é disso que a fé cristã mais precisa hoje.

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