“[...] corra a retidão como um rio, a justiça
como um ribeiro perene!” Amós
5.24
Vivemos
um tempo de crise. Essa afirmação tem uma aceitação unânime em todos os campos
de ação humana. O discurso de que vivemos sob a ameaça de uma catástrofe global
tem sido uma constante em termos ecológicos, sociais, políticos e econômicos.
Para o teólogo alemão Jürgen Moltmann, uma das origens dessa crise está na
compreensão de Deus como um sujeito absoluto, que resultou no inevitável
entendimento do mundo como objeto, de modo que a insistência em uma
transcendência de Deus esvaziou a compreensão de sua imanência. “O monoteísmo
do sujeito absoluto desmundanizou mais e mais a Deus, e o mundo se secularizou
com mais intensidade”, disse no livro Dios
em la criación.
Para outro
teólogo, Andrés Torres Queiruga, essa tendência faz com que “Deus apareça para
muitos como inimigo da vida humana, como ameaça para sua autonomia e
impedimento de sua realização. Nessa linha, e por lógica elementar, acaba
convertendo-se no inimigo total, que não deixa nada, porque ocupa tudo” (no
livro Recuperar a criação). Deste
modo, é possível afirmar que a dinâmica da vida autêntica não tem como se
firmar na contemporaneidade fundada na ideia de um Deus imutável e indiferente.
Se queremos redescobrir o valor da vida, é preciso voltar-se para a concepção
do Deus criador a partir da validade da própria criação: “Deus decidiu criar o
mundo: é este o fato fundamental, e nele deve-se fundar nossa reflexão. [...]
Se Deus criou o mundo, é porque, apesar de tudo, o mundo vale a pena”, diz
Queiruga.
A
célebre frase de Irineu “a glória de Deus é o homem vivo”, deve ser
compreendida na continuidade da mesma, que afirma que a vida humana se realiza
na contemplação de Deus. Diante do quadro de crise na qual se encontra o mundo,
chegou o momento de se fazer uma escolha: cuidar de nossa casa comum. Para
Moltmann, “não se trata de uma crise passageira, e sim de uma catástrofe lenta,
mas segura, em que serão destruídos os seres vivos mais fracos por primeiro, e
então os mais fortes e, não por último, inclusive os seres humanos”, diz ele em
outro livro, A vinda de Deus. Essa
crise é provocada pela civilização que se constitui a partir da técnica e da
ciência e que provoca o esgotamento da natureza a partir da exploração pelo
homem. “Esta crise é mortal não só para o homem [...] é também mortífera para o
entorno natural”. Moltmann reconhece ainda que “a moderna sociedade industrial
provocou um desequilíbrio no organismo ‘terra’ e está a caminho da morte
ecológica universal, caso não possamos alterar esse desenvolvimento [...] A
catástrofe ecológica em progresso é universal e não faz distinções. Ela ameaça
da mesma forma a natureza, os seres vivos e sistemas de vida e os seres
humanos. Ela coloca a humanidade dividida sob a unidade do perigo. Ela põe
humanidade e natureza numa comunhão de necessidade”.
Isso
demanda uma conversão radical das orientações fundamentais dos modos de
produção e consumo, bem como da dinâmica político-econômica das sociedades
industriais, uma vez que a crise ecológica se estabelece a partir de uma crise
que envolve também as relações de poder. Tanto a crise ecológica como a que
envolve os estados modernos surgem no âmbito de uma cultura marcada pela
cristandade. E isso exige uma atitude crítica por parte de todos, notadamente
daqueles que professam a fé cristã, o que implica um novo olhar sobre a
criação.
É
preciso encarar o mundo como realidade contingente, na qual se compreende a
existência e tudo o que está implicado nela. Deve levar em conta que tanto a
realidade concebida como objeto quanto a subjetividade humana são criações
divinas. Deve situar o conhecimento no âmbito da relativização, conquanto se
refere também ao que não é dado a conhecer, ao invisível, ao qual ainda não se
tem acesso. Deve ser solidária ao sofrimento da natureza e desenvolver a
esperança da redenção de toda a criação. Deve estar a serviço da naturalização
do homem, como um retorno ao cuidado com a natureza em termos de
autocompreensão e como interpretação do mundo tendo a natureza como marco
fundador. Para Leonardo Boff, isso implica uma nova cosmovisão em que a noção
de mundo precisa abarcar a totalidade como a um organismo vivo articulado com o
universo inteiro. Trata-se de uma cosmovisão ecológica que enfatiza a imanência
de Deus, que está presente em todos os processos vitais e que orienta a vida a
partir de uma ordem cada vez mais complexa e carregada de propósitos. Veja-se o
livro Ecologia: grito da terra, grito dos
pobres. Deus e mundo “estão abertos um ao outro. Encontram-se sempre
mutuamente implicados”, diz Leonardo Boff.
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