A geração atual tem o privilégio
de comemorar o quinto centenário da Reforma Protestante de uma forma única na
história. Nunca antes o cristianismo pode celebrá-la tal como tem sido marcado,
com conferências, publicações e reconhecimentos do mérito e do legado dos reformadores, envolvendo não só protestante, mas também católicos.
Há duas razões para isso. A
primeira é a superação dos mal-entendidos produzidos pela contrarreforma
católica, não só com as tentativas reformadoras do concílio de Trento, de 1545
a 1563, como também pelas campanhas difamatórias empreendidas pela igreja
católica contra Lutero. Em 1529, Johannes Cochlaeus, que era um adversário do
luteranismo e também o primeiro biógrafo de Lutero, descreveu o Reformador como
“tendo sete cabeças”, filho “ilegítimo de Satanás”, “instrumento do demônio”
que trouxe “à Alemanha e à cristandade a desgraça e a miséria” e “uma cópia
humana de Lúcifer”. E essa foi a ideia que se nutriu por muito tempo.
A compreensão sobre a pessoa de
Lutero só começou a ser alterada a partir do começo do século XX, com o
trabalho do teólogo católico Yves Congar, que considerou a obra de Cochlaeus
como “uma imundície que não pode ser desculpada nem mesmo pela intenção do
autor de servir à sua igreja” (apud Elben
M. Lenz Cesar, em Conversas com Lutero).
Por ocasião do quinto centenário do nascimento de Martinho Lutero, em1983, o
Papa João Paulo II escreveu uma carta ao cardeal Johannes Willebrands, então Secretário
para a União dos Cristãos, sobre a necessidade de se chegar a uma compreensão “justa”
sobre a imagem de Lutero como alguém que contribui decisivamente para as
transformações da igreja no Ocidente. Recentemente, o atual Papa Francisco tem
afirmado a necessidade de diálogo e aproximação entre católicos e protestantes
em face das comemorações dos 500 anos da Reforma.
Quando a Reforma completou o seu
primeiro centenário, a Europa estava mergulhada nos atos provocados pela
inquisição católica. Somente entre os séculos XVI e XVII, os tribunais
católicos efetuaram mais de mil execuções. A perseguição aos movimentos
protestantes huguenotes na França e valdenses na Itália foi violenta. A
repressão ao protestantismo ceifou milhares de vidas.
Quando a Reforma completou o seu
segundo centenário, a Europa estava tomada por uma nova mentalidade científica.
O Iluminismo nascente apregoava a superioridade da razão sobre a fé. Voltaire
começava seus discursos sobre as liberdades civis e a necessidade de uma
reforma racional, por meio do progresso da ciência e da tecnologia, em que a
religiosidade não poderia mais ter lugar.
Quando a Reforma completou seu
terceiro centenário, o mundo passava por uma grande transformação política e
econômica. Emergia o conceito de estado burguês, assim como um crescimento
vertiginoso da concentração de renda motivado pela revolução industrial. As antigas
colônias buscavam sua emancipação, o capitalismo ampliava suas bases teóricas,
o cientificismo tomava conta dos meios acadêmicos e o romantismo marcava a
estética e a arte literária daquele tempo.
Quando a Reforma completou seu
quarto centenário, o mundo estava em guerra. Era o auge da Primeira Guerra
Mundial e as revoluções populares que levaram ao fim do czarismo na Rússia e às
transformações sociopolíticas em todo o mundo. Pela primeira vez, as tropas
usavam tecnologia para a destruição do inimigo. A humanidade, que havia sonhado
com o tempo em que poderia voar e se locomover em maior velocidade, agora via o
uso do avião, da metralhadora e do automóvel como armas de combate. É o começo
do grande desencantamento e a afirmação do niilismo.
Quando a Reforma completa o seu
quinto centenário, o mundo não está em paz e muito menos tem se transformado em
um lugar melhor para se viver. Pela primeira vez, a humanidade se vê diante de
uma possibilidade real de extinção em que a principal causa é o próprio homem.
Problemas como o aquecimento global, a crise migratória, o crescimento da
mentalidade de extrema direita e até as novas faces dos fundamentalismos
religiosos colocam em risco a vida humana no planeta. Lembrar a Reforma e
trazer de volta um sentido de espiritualidade que restaura a compreensão em um
Deus de graça e misericórdia, que resgata o homem de sua própria perdição por
meio da fé em Jesus Cristo.
Celebrar a Reforma hoje não pode
se restringir a uma declaração ufanista de um movimento que deu certo, até por
que teve seus problemas. É claro que deve haver um reconhecimento do importante
papel que ela exerceu no campo da política, da economia, da teologia, da
filosofia e das relações sociais. Entretanto, faz-se necessário compreender o
espírito dos reformadores, que não quiseram apenas dividir a igreja, mas renová-la
para enfrentar as grandes transformações que o mundo atravessava e que ainda
vem atravessando.
Celebrar a Reforma tem um
sentido de gratidão pela coragem dos primeiros reformadores, mas também de um
chamamento a uma resistência à tendência de se prender a um conservadorismo
paralisante, um moralismo discriminatório e a um fundamentalismo obscurantista.
Celebrar a Reforma deve ser muito mais um ato de resistência às muitas formas
de cercear a liberdade, de impor mais opressão e de exercício de
totalitarismos. É promover a grande revolução que restaura o sentido de
humanidade e que nos conduz a uma vida mais humana diante de Deus e uns dos
outros.
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