segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Uma Teologia a partir das vítimas: análise da poética de Augusto dos Anjos / A Theology from the Victims: Analysis of Augusto dos Anjos' Poetics / Una teología de las víctimas: análisis de la poética de Augusto dos Anjos


A discussão sobre a relação entre teologia e literatura traz consigo duas questões orientadoras. A primeira é a respeito de se a teologia é uma forma de produção literária. A segunda é se a literatura é um lugar para o olhar teológico. Essas duas questões se justificam na medida em que teologia e literatura lidam com o imaginário e as representações simbólicas de nossa relação com o mundo, com o outro e com o sagrado. Essa relação desperta a necessidade de se narrar a experiência e de que ambas sejam expressas por meio da linguagem com todas as implicações que isso envolve.
Por essa razão, não há um único modo de tratar dessa relação. Ela é por si mesmo plural, pois envolve o humano e suas muitas formas de expressar sua existência. A teologia se dirige ao humano para falar de Deus por meio de metáforas assim como a literatura busca dar sentido ao humano como ser no mundo. Cada uma, a seu modo, contribui para a construção de uma imagem do humano como ser no mundo que permite o diálogo com outras formas de conhecimento.
O papel da teologia e da literatura não é o de transmitir a mensagem verdade eterna e imutável, mas o de conduzir o homem a uma reflexão crítica de si, um olhar inquietante a respeito dos conflitos e contradições que envolvem as relações humanas. Elas convidam a uma atitude que vai além daquilo que pode ser racionalizado ou explicado por meio de uma relação causal e que remete a um dizer que não seja objetivante.
A teologia hoje se depara com a exigência de dar conta da vida e da existência humana diante de dois fenômenos já identificados por teólogos da contemporaneidade. O primeiro é o da realidade da fragmentação da teologia, conforme disse Karl Rahner (2008), que resulta em sua obsolescência como pressuposto para fé. O segundo é a noção de cristianismo arreligioso, proposto por Dietrich Bonhoeffer, que conduz a uma mudança de atitude da teologia diante do mundo plural que emergiu no contexto da pós-modernidade.
A literatura, especialmente a poesia, tem em si a capacidade de atualizar, por meio da linguagem, a experiência de produção de sentido. Por isso mesmo, a literatura provoca um constante questionamento entre as formas literárias e as possibilidades de leitura da realidade. O espaço poético se torna um lugar de convergência entre a experiência de presença no mundo e uma abertura para o que está além, para o transcendente.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, nasceu no Engenho Pau d’Arco, no município de Sapé, Estado da Paraíba, em 20 de abril de 1884. Escreveu poesias desde a infância, bacharelou-se em Direito e veio morar no Rio de Janeiro depois de enfrentar problemas com a oligarquia paraibana. Em 1912, publicou seu único livro de poemas, Eu. Morreu no dia 12 de novembro de 1914, em Leopoldina (MG).
“Versos íntimos” é um soneto, com versos decassílabos. A partir da sua leitura, é possível encontrar os dilemas vividos em um tempo de transformações e a crítica à realidade social e histórica do país. O texto é marcado por uma percepção da ambiguidade e da fragilidade humanas diante das contradições e tudo aquilo que transcende à própria condição humana.
Uma poesia que retrata o pessimismo do autor e a decepção diante da condição humana. Crítica ao parnasianismo. Embora esteja inserida na arte poética do Simbolismo, alguns veem sua poesia como antissimbolista. Já se vê na arte poética de Augusto dos Anjos traços do que será a poesia modernista brasileira.
Nela, encontramos questionamentos que despertam a necessidade de um olhar teológico.
Quem se importa com o sofrimento humano? Algum sentimento de angústia tomou conta do poeta.
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável! (ANJOS, 1971, p. 146).
O que esperar de pessoas que vivem em meio à falta de compaixão? O poeta é tomado de um desprezo para com quem ele se relaciona.
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera. (ANJOS, 1971, p. 146).
Qual consequência da falta de solidariedade? A angústia do poeta só o remete à reclusão.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja. (ANJOS, 1971, p. 146).
O que fazer diante da trágica condição humana? O poeta apela para uma autopunição como único consolo para si.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija! (ANJOS, 1971, p. 146).
O modo como Augusto dos Anjos se expressa encontra reflexo na narrativa bíblica de Eclesiastes. “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade (Eclesiastes 1.2, na versão Revista e Corrigida de Almeida). A maneira como o livro bíblico do Eclesiastes se inicia descreve bem o momento em que vivemos. A vaidade tem a ver com o grande vazio que se tornou a vida. Tem a ver com aquilo que fazemos para fugir da verdade sobre nós mesmos, daquilo que fazemos para não encararmos a nossa realidade. Numa outra versão da Bíblia, “tudo é uma grande inutilidade [...] nada faz sentido”. Fazendo um paralelo com a teologia de Eclesiastes, a poesia augustiana propõe um retorno a si, como uma reclusão, uma escuta de si, diante das amarguras da desumanidade.
Gilles Lipovetsky chamou nosso tempo de “era do vazio”, que dá título a um de seus livros em que analisa o fenômeno social da pós-modernidade. Vivemos num tempo marcado pelo enfraquecimento da sociedade e dos costumes, que carece de novas formas de afirmação de sua individualidade. Uma sociedade que se baseia no excesso de informação e no estímulo à satisfação das nossas necessidades mais emergentes, no direito a ser eu mesmo, sem imposição de regras sociais. A lógica do vazio está no isolamento do ser social e na valorização do individual. Quando falamos, portanto, de vaidade, estamos nos referindo a esse vazio, em que a vida é como um nada.
O próprio autor do Eclesiastes desejava descobrir o que todos nós queremos saber: o que faz a vida ter sentido? Ele disse: “[...] Eu queria saber o que vale a pena, debaixo do céu, nos poucos dias da vida humana.” (Eclesiastes 2.3) Ele procurou a felicidade e o sentido da vida no dinheiro, no poder, na fama e no sexo, mas não encontrou o que procurava. Depois de relatar uma trajetória de conquistas e de busca de prazer, ele conclui: “Contudo, quando avaliei tudo o que as minhas mãos haviam feito e o trabalho que tanto me esforçava para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há nenhum proveito no que se faz debaixo do sol.” (Eclesiastes 2.11).

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