A ignorância não é só uma ausência
de conhecimento, mas é acima de tudo uma construção social que pode estar a
serviço de uma forma de dominação. A ignorância é uma atitude do nível do
engano por parte de quem tem capacidade cognitiva para conhecer, mas prefere
orientar sua compreensão pela opinião, pelo ilusório e pelo erro. O ignorante
não é aquele que simplesmente não sabe, mas é aquele que aceita qualquer
informação como verdade sem antes investigar.
Podemos, como tentou Charles
Mills, falar de uma “epistemologia da ignorância” na medida em que há um viés
agressivo nas relações sociais que envolvem diferenças raciais, de gênero, de
classe social, de ideologia e de religião. É possível identificar a ignorância
como um conhecimento falso ou também como a ausência de um conhecimento
verdadeiro a respeito daquilo que se afirma como valor, norma ou princípio de
interpretação.
Para Platão, a ignorância corresponde
a uma ilusão de sabedoria que se opõe à Filosofia. O “Só sei que nada sei” de
seu mestre Sócrates não era uma justificativa para a ignorância, mas o
reconhecimento do primeiro instante para se buscar o conhecimento.
Na Idade Média, Nicolau de Cusa
falou de uma forma de tratarmos a ignorância como uma impossibilidade de alcançar
a plenitude do conhecimento. O reconhecimento da própria ignorância é uma
ignorância instruída, ou o que chamou de “douta ignorância”. Ele dizia que “reconhecer
os limites do nosso conhecimento é o ponto de partida para o nosso conhecimento
da verdade”.
Immanuel Kant, em sua Crítica da razão pura, fala de duas
formas de ignorância, a que tem a ver com as deficiências do conhecimento
racional e aquela que corresponde a se dar conta dos limites do próprio conhecimento.
Nessa medida, se o conhecimento ultrapassa a nossas limitações para conhecer,
somos desculpáveis. Mas, naquelas circunstâncias em que o saber é possível,
somos culpados pela nossa própria ignorância.
John Rawls fala de um “véu de
ignorância” necessário, que consiste em uma condição hipotética original a
partir da qual construímos nossos acordos e fazemos nossas escolhas
racionalmente, orientados por princípios de justiça, independentemente do conhecimento
que temos a respeito de nossa cultura, classe social, raça, gênero ou
ideologia.
Como se pode ver, o que se
coloca como ausência de conhecimento não é meramente um acontecimento
acidental, mas resultado de um projeto de construção de um tipo de saber
intencionalmente voltado para a dominação e a exploração. Podemos falar hoje de
formas sociais de produção da ignorância que estão presentes nas estruturas de
poder e que se disseminam através das redes de formação da opinião. O que se
pretende é fazer da ignorância um produto que seja facilmente assimilado e
adequado para se identificar o nível de engajamento político e social de grupos
e indivíduos.
A ignorância pode ser construída
socialmente a partir de três modos: através da afirmação de um saber absoluto,
através do esquecimento ou através da falsificação das narrativas. A afirmação
do saber absoluto se dá por meio de um conceito ou formulação irrefutável,
determinada por formas totalitárias e monopolizadoras de dominação, seja como
conhecimento científico, de um saber religioso ou mesmo de uma ideologia, que é
exaltada como verdade. O esquecimento se dá por meio da aniquilação da memória,
seja por omissão, negação ou silêncio por parte dos opressores, como tentativa de
se obter uma determinada situação de submissão, passividade ou mesmo a não
reação dos oprimidos. A falsidade é a estratégia de se encobrir a realidade com
a construção de novas narrativas como uma verdade alternativa, seja por meio de
inversões, seja por meio da aniquilação de personalidades e fatos históricos ou
mesmo pela ocultação de dados.
Esses modos de construção da
ignorância estão disseminados por meio das redes sociais, da mídia controlada
pelo poder dominante, da interferência nos processos educacionais e até mesmo
nos discursos religiosos. O objetivo é produzir um quadro social marcado por
tipos diferentes de ignorância, tais como a arrogância, a alienação e a
perversidade. Esses tipos não existem isoladamente , mas estão
inter-relacionados e coexistem no mesmo espaço e para um mesmo fim, que é a
dominação.
A ignorância como construção
social possui em si mesma uma certa teimosia, uma resistência, uma
agressividade que é ameaçadora, que se recusa a ser superada de forma
dialógica. O mais assustador é que essa ignorância não significa falta de
instrução, como se fosse resultado de uma limitação do conhecimento, como diziam
os filósofos iluministas. Ela é pertencente a um processo de formação com
níveis requintados de intelectualidade, tida como modelo de conhecimento.
Portanto, o ignorante não é aquele que não sabe, mas aquele que assume para si
a forma do conhecimento do opressor.
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