segunda-feira, 22 de abril de 2019

A produção da ignorância / The production of ignorance / La producción de la ignorancia


A ignorância não é só uma ausência de conhecimento, mas é acima de tudo uma construção social que pode estar a serviço de uma forma de dominação. A ignorância é uma atitude do nível do engano por parte de quem tem capacidade cognitiva para conhecer, mas prefere orientar sua compreensão pela opinião, pelo ilusório e pelo erro. O ignorante não é aquele que simplesmente não sabe, mas é aquele que aceita qualquer informação como verdade sem antes investigar.
Podemos, como tentou Charles Mills, falar de uma “epistemologia da ignorância” na medida em que há um viés agressivo nas relações sociais que envolvem diferenças raciais, de gênero, de classe social, de ideologia e de religião. É possível identificar a ignorância como um conhecimento falso ou também como a ausência de um conhecimento verdadeiro a respeito daquilo que se afirma como valor, norma ou princípio de interpretação.
Para Platão, a ignorância corresponde a uma ilusão de sabedoria que se opõe à Filosofia. O “Só sei que nada sei” de seu mestre Sócrates não era uma justificativa para a ignorância, mas o reconhecimento do primeiro instante para se buscar o conhecimento.
Na Idade Média, Nicolau de Cusa falou de uma forma de tratarmos a ignorância como uma impossibilidade de alcançar a plenitude do conhecimento. O reconhecimento da própria ignorância é uma ignorância instruída, ou o que chamou de “douta ignorância”. Ele dizia que “reconhecer os limites do nosso conhecimento é o ponto de partida para o nosso conhecimento da verdade”.
Immanuel Kant, em sua Crítica da razão pura, fala de duas formas de ignorância, a que tem a ver com as deficiências do conhecimento racional e aquela que corresponde a se dar conta dos limites do próprio conhecimento. Nessa medida, se o conhecimento ultrapassa a nossas limitações para conhecer, somos desculpáveis. Mas, naquelas circunstâncias em que o saber é possível, somos culpados pela nossa própria ignorância.
John Rawls fala de um “véu de ignorância” necessário, que consiste em uma condição hipotética original a partir da qual construímos nossos acordos e fazemos nossas escolhas racionalmente, orientados por princípios de justiça, independentemente do conhecimento que temos a respeito de nossa cultura, classe social, raça, gênero ou ideologia.
Como se pode ver, o que se coloca como ausência de conhecimento não é meramente um acontecimento acidental, mas resultado de um projeto de construção de um tipo de saber intencionalmente voltado para a dominação e a exploração. Podemos falar hoje de formas sociais de produção da ignorância que estão presentes nas estruturas de poder e que se disseminam através das redes de formação da opinião. O que se pretende é fazer da ignorância um produto que seja facilmente assimilado e adequado para se identificar o nível de engajamento político e social de grupos e indivíduos.
A ignorância pode ser construída socialmente a partir de três modos: através da afirmação de um saber absoluto, através do esquecimento ou através da falsificação das narrativas. A afirmação do saber absoluto se dá por meio de um conceito ou formulação irrefutável, determinada por formas totalitárias e monopolizadoras de dominação, seja como conhecimento científico, de um saber religioso ou mesmo de uma ideologia, que é exaltada como verdade. O esquecimento se dá por meio da aniquilação da memória, seja por omissão, negação ou silêncio por parte dos opressores, como tentativa de se obter uma determinada situação de submissão, passividade ou mesmo a não reação dos oprimidos. A falsidade é a estratégia de se encobrir a realidade com a construção de novas narrativas como uma verdade alternativa, seja por meio de inversões, seja por meio da aniquilação de personalidades e fatos históricos ou mesmo pela ocultação de dados.
Esses modos de construção da ignorância estão disseminados por meio das redes sociais, da mídia controlada pelo poder dominante, da interferência nos processos educacionais e até mesmo nos discursos religiosos. O objetivo é produzir um quadro social marcado por tipos diferentes de ignorância, tais como a arrogância, a alienação e a perversidade. Esses tipos não existem isoladamente , mas estão inter-relacionados e coexistem no mesmo espaço e para um mesmo fim, que é a dominação.
A ignorância como construção social possui em si mesma uma certa teimosia, uma resistência, uma agressividade que é ameaçadora, que se recusa a ser superada de forma dialógica. O mais assustador é que essa ignorância não significa falta de instrução, como se fosse resultado de uma limitação do conhecimento, como diziam os filósofos iluministas. Ela é pertencente a um processo de formação com níveis requintados de intelectualidade, tida como modelo de conhecimento. Portanto, o ignorante não é aquele que não sabe, mas aquele que assume para si a forma do conhecimento do opressor.

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