segunda-feira, 29 de abril de 2019

Desobediência civil e declínio da democracia liberal / Civil disobedience and decline of liberal democracy / Desobediencia civil y el deterioro de la democracia liberal /


A passagem da democracia para o autoritarismo segue uma linha muito frágil. Democracias morrem (ou são mortas) quando não estão amparadas por uma ação política autêntica. E a desobediência civil é a ação que resulta do exercício da liberdade dos cidadãos para garantir o exercício do poder para o bem comum. Nesses tempos em que lideranças autoritárias procuram aparelhar o estado, controlar o judiciário, o legislativo, o mercado e a mídia para instaurar um regime de exceção, a desobediência civil é um assunto que interessa.
O tema da desobediência civil foi abordado pela primeira vez pelo norte-americano Henry David Thoureau. “Que comportamento digno deve ter um homem perante o atual governo vigente nos Estados Unidos?” indaga Thoreau, em A desobediência civil, no ano de 1849. Para ele, estar associado a um governo que escraviza é algo que degrada a pessoa humana. Seu princípio era: “se uma lei é injusta, desobedeça”. Para ele, “Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão”.
Desobediência civil é uma forma de se opor a quem explora ou faz sofrer o outro, principalmente quando esse outro é o Estado. As formas como Thoreau encontrou de praticar a desobediência civil foram de natureza moral, e estavam voltadas a não pagar impostos, protestar contra a escravidão e resistir à guerra contra o México. Mas, para o ativista e pacifista indiano Mahatma Gandhi, a “A desobediência civil é um direito intrínseco do cidadão. Reprimir a desobediência civil é tentar encarcerar a consciência”.
Quando Hannah Arendt abordou sobre o tema da desobediência civil, ela estava consciente de que a democracia representativa, tal como se apresentava nos moldes do liberalismo, significava um obstáculo para a realização do ela chamava de espírito revolucionário. Para Arendt, a revolução assumiu uma característica própria na Modernidade, visto que elas passaram a acontecer com o objetivo de proporcionar liberdade. A revolução, portanto, cria espaço para a ação política, que consiste no verdadeiro espírito da liberdade. Nas democracias representativas, a defesa pelas liberdades civis, a busca pelo bem-estar da maioria das pessoas e as garantias à liberdade de expressão colaboram, em certa medida, para o esquecimento do papel dos cidadãos e de seus direitos políticos. É célebre a sua afirmação: “[...] a liberdade política, falando em geral, significa o ‘direito de participar do governo’ ou não significa nada” (em Sobre a revolução, p. 175).
Arendt constata que a democracia transforma-se em um sistema que administra uma relação de dominação em que o cidadão abre mão de sua capacidade política para se submeter ao poder dos representantes eleitos na mesma condição de um súdito diante de um monarca. As democracias liberais, nesse sentido, frustram, pervertem e aniquilam a ação política em sua forma mais legítima, que seria aquela que emancipa o sujeito. Ela reconhece, então, que o sistema democrático dos estados liberais é incompatível com a ação política emancipatória e revolucionária.
Entretanto, Arendt não rejeita a democracia representativa como um todo. Mas compreende que os processos revolucionários proporcionam uma liberdade política, que é o que está em risco quando as sociedades democráticas não estão abertas, de alguma maneira, a que seus cidadãos exerçam o poder. Para ela, o fundamento das democracias modernas deve ser o de assegurar o direito de todo cidadão tomar parte dos destinos políticos de sua comunidade.
Naquelas situações em que as estruturas de poder põem em risco direitos e interesses de cidadãos, grupos ou segmentos sociais, a desobediência civil surge como um fenômeno que procura evitar que tais riscos sejam consumados. Trata-se de um movimento que se distingue da revolução, pois não visa romper com o sistema, mas de se opor a uma decisão tipificada em uma norma ou lei. A desobediência civil é, por assim dizer, uma infração voluntária à lei visto que contesta as razões que estão por trás de sua formulação. Visa-se a ordem sem, contudo, buscar mudanças estruturais da sociedade e sem o emprego da violência, como é característico das revoluções. Assim Arendt se refere:
“A desobediência civil aparece quando um. número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.” (A desobediência civil e outros escritos, p. 68).
A desobediência civil desempenha um papel muito importante na vida política da sociedade. Nela está presente aquilo que caracteriza o poder político e o princípio da vida coletiva. Quando as democracias são subvertidas pelo estado de exceção ou por regimes autoritários, resta aos cidadãos o direito de se organizarem para contestarem as decisões que provocam rupturas e para usarem sua capacidade de mobilização para restaurar o sistema democrático.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails