quinta-feira, 6 de maio de 2021

Em defesa da família / In defense of the Family / En defensa de la familia

Quem de fato defende a família? O discurso em defesa da família é um dos modos que o conservadorismo encontrou de exercer domínio para dar continuidade à sua pauta moralista. Geralmente, a temática da defesa da família é usada para se combater a luta pelo fim da criminalização do aborto e os movimentos em favor dos direitos identitários, sobretudo em relação à desigualdade de gênero e às bandeiras do público LGBTQI+. Essa pauta conservadora geralmente está articulada com interesses de grupos religiosos fundamentalistas e de movimentos extremistas de direita. Como se esses foram os únicos problemas que a família enfrenta e que necessita de cuidado.

Isso desperta uma problematização: a família enfrenta problemas porque a humanidade passa por profundas transformações ou é a humanidade que enfrenta problemas porque a família passa por profundas transformações? Trata-se de um dilema, na medida em que as duas hipóteses podem ser consideradas válidas, sendo que a segunda é consequência da primeira num permanente ciclo de transformações. Melhor dizendo, a família, sem sombra de dúvidas, passa por situações de conflitos que nunca havia passado antes, decorrentes de grandes transformações sociais, econômicas e políticas pelas quais a humanidade vem passando. Entretanto, as formas de enfrentamento dos conflitos familiares e suas muitas mudanças de configuração têm provocado o aprofundamento da crise pela qual a humanidade passa.

A razão pela qual se constrói um discurso moralista que tenta apontar uma dissolução da família tem a ver com o quadro de desestruturação da sociedade atual, tal como se conhecia até algum tempo atrás. É como se as famílias não tivessem problemas em outras épocas. O nosso imaginário está permeado por um ideal de família estruturada em padrões burgueses que oferecem certa segurança e estabilidade emocional.

Na verdade, os que estão em busca dessa família idealizada são pessoas que têm históricos de relacionamentos familiares marcados por conflitos. São aqueles que tiveram experiências como mães solteiras, que são jovens divorciados, que enfrentaram o divórcio dos pais na infância ou adolescência e até quem sofreu discriminação em família por questões de gênero. Essas pessoas são tomadas por um profundo desejo de não repetir os erros passados, de agir de outro modo.

Para a psicanalista Maria Rita Kehl, no artigo “Em defesa da família tentacular”, reconhece que “a família nuclear ‘normal’, monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre do início do século XIX a meados do XX no ocidente (tão pouco tempo? Pois é: tão pouco tempo) foi o grande laboratório das neuroses tal como a psicanálise, bem naquele período, veio a conhecer”.

Os censos demográficos atestam a cada década que a família não é mais a mesma. Novas formas de convívio vão sendo improvisadas, tendo em vista o cuidado com os filhos, a afirmação de relacionamentos afetivos e até a satisfação de necessidades de sobrevivência e de consumo vão sendo construídas à revelia desse discurso conservador e moralista. Ou seja, a defesa de um único modelo de família tradicional não impede que novas configurações surjam, e que algumas delas se perpetuem e outras sejam diluídas sem qualquer possibilidade de controle, seja de uma lei humana ou divina.

“O mal estar vem da dívida que nos cobramos ao comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?”, diz Maria Rita Kehl.

Para Anthony Giddens, em O mundo em descontrole, destaca que há uma revolução global em curso que afeta o modo como construímos nossos relacionamentos, inclusive familiares, que vai avançando de forma desigual, de acordo com aspectos socioeconômicos e culturais, e com enfrentamentos de resistências. “Há talvez mais nostalgia em torno do santuário perdido da família do que em qualquer outra instituição com raízes no passado. Políticos e ativistas diagnosticam rotineiramente o colapso da família e clamam por um retorno à família tradicional” (p. 63).

A chamada família tradicional é uma unidade socioeconômica, caracterizada por padrões de consumo, concepção de sexualidade a partir da ideia de reprodução e uniões conjugais orientadas por interesses sociais, e não pelo amor romântico. Esse tem sido o padrão predominante nas sociedades industriais em todo o mundo. Porém, após as revoluções culturais do final do século XX, “só uma minoria vive hoje do que poderia ser chamado de família padrão” (p. 67).

Essas transformações demandam a necessidade do que Anthony Giddens chamou de democracia das emoções. “Defender a promoção de uma democracia emocional não significa ser fraco com relação aos deveres familiares, ou com relação à política pública voltada para a família. A democracia significa a aceitação de obrigações, bem como de direitos sancionados em lei” (p. 73). A sociedade contemporânea exige que haja espaço e respeito para todas as expressões humanas, tendo em vista a formação de um ambiente mais justo e humano.

Defender a família não pode ser um programa político ou mesmo uma plataforma orientada por interesses ideológicos. Defender a família implica cuidar dela, pois é nela que construímos a nossa existência. Curiosamente, aqueles que têm se apresentado como defensores mais exacerbados da família tradicional ou estão envolvidos em situações morais duvidosas, ou comprometidos com interesses espúrios ou até, em alguns casos, com experiências conjugais que não se enquadram com o modelo tradicional que defendem. O cuidado da família requer compromisso com a santidade.

O cuidado com a família passa por atitudes que estejam voltadas para o bem-estar da vida em família, pela superação do ódio provocado por preconceitos e pela promoção de uma cultura de paz, de não violência, de solidariedade e de convivência em comunidade. Essas atitudes representam novos desafios para a vida em família. Isso lembra a recomendação bíblica: Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1 Timóteo 5.8).

Referências:

GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 61-75.

KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular. In: Fronteiras do Pensamento. 2013. Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-tentacular>

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