Quem de fato defende a família? O discurso em defesa da família é um dos modos que o conservadorismo encontrou de exercer domínio para dar continuidade à sua pauta moralista. Geralmente, a temática da defesa da família é usada para se combater a luta pelo fim da criminalização do aborto e os movimentos em favor dos direitos identitários, sobretudo em relação à desigualdade de gênero e às bandeiras do público LGBTQI+. Essa pauta conservadora geralmente está articulada com interesses de grupos religiosos fundamentalistas e de movimentos extremistas de direita. Como se esses foram os únicos problemas que a família enfrenta e que necessita de cuidado.
Isso desperta
uma problematização: a família enfrenta problemas porque a humanidade passa por
profundas transformações ou é a humanidade que enfrenta problemas porque a
família passa por profundas transformações? Trata-se de um dilema, na medida em
que as duas hipóteses podem ser consideradas válidas, sendo que a segunda é consequência
da primeira num permanente ciclo de transformações. Melhor dizendo, a família,
sem sombra de dúvidas, passa por situações de conflitos que nunca havia passado
antes, decorrentes de grandes transformações sociais, econômicas e políticas
pelas quais a humanidade vem passando. Entretanto, as formas de enfrentamento
dos conflitos familiares e suas muitas mudanças de configuração têm provocado o
aprofundamento da crise pela qual a humanidade passa.
A razão pela
qual se constrói um discurso moralista que tenta apontar uma dissolução da
família tem a ver com o quadro de desestruturação da sociedade atual, tal como se
conhecia até algum tempo atrás. É como se as famílias não tivessem problemas em
outras épocas. O nosso imaginário está permeado por um ideal de família
estruturada em padrões burgueses que oferecem certa segurança e estabilidade
emocional.
Na verdade, os
que estão em busca dessa família idealizada são pessoas que têm históricos de
relacionamentos familiares marcados por conflitos. São aqueles que tiveram experiências
como mães solteiras, que são jovens divorciados, que enfrentaram o divórcio dos
pais na infância ou adolescência e até quem sofreu discriminação em família por
questões de gênero. Essas pessoas são tomadas por um profundo desejo de não
repetir os erros passados, de agir de outro modo.
Para a
psicanalista Maria Rita Kehl, no artigo “Em defesa da família tentacular”,
reconhece que “a família nuclear ‘normal’,
monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre do início do século
XIX a meados do XX no ocidente (tão pouco tempo? Pois é: tão pouco tempo) foi o
grande laboratório das neuroses tal como a psicanálise, bem naquele período,
veio a conhecer”.
Os censos demográficos atestam a cada década que a
família não é mais a mesma. Novas formas de convívio vão sendo improvisadas,
tendo em vista o cuidado com os filhos, a afirmação de relacionamentos afetivos
e até a satisfação de necessidades de sobrevivência e de consumo vão sendo construídas
à revelia desse discurso conservador e moralista. Ou seja, a defesa de um único
modelo de família tradicional não impede que novas configurações surjam, e que
algumas delas se perpetuem e outras sejam diluídas sem qualquer possibilidade
de controle, seja de uma lei humana ou divina.
“O mal estar vem da dívida que nos cobramos ao
comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram
nossos pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com
o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não
necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para
encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?”, diz Maria
Rita Kehl.
Para Anthony Giddens, em O mundo em descontrole, destaca que há uma revolução global em
curso que afeta o modo como construímos nossos relacionamentos, inclusive
familiares, que vai avançando de forma desigual, de acordo com aspectos
socioeconômicos e culturais, e com enfrentamentos de resistências. “Há talvez
mais nostalgia em torno do santuário perdido da família do que em qualquer
outra instituição com raízes no passado. Políticos e ativistas diagnosticam
rotineiramente o colapso da família e clamam por um retorno à família
tradicional” (p. 63).
A chamada família tradicional é uma unidade
socioeconômica, caracterizada por padrões de consumo, concepção de sexualidade
a partir da ideia de reprodução e uniões conjugais orientadas por interesses sociais,
e não pelo amor romântico. Esse tem sido o padrão predominante nas sociedades
industriais em todo o mundo. Porém, após as revoluções culturais do final do
século XX, “só uma minoria vive hoje do que poderia ser chamado de família
padrão” (p. 67).
Essas transformações demandam a necessidade do que
Anthony Giddens chamou de democracia das emoções. “Defender a promoção de uma
democracia emocional não significa ser fraco com relação aos deveres
familiares, ou com relação à política pública voltada para a família. A
democracia significa a aceitação de obrigações, bem como de direitos
sancionados em lei” (p. 73). A sociedade contemporânea exige que haja espaço e
respeito para todas as expressões humanas, tendo em vista a formação de um
ambiente mais justo e humano.
Defender a
família não pode ser um programa político ou mesmo uma plataforma orientada por
interesses ideológicos. Defender a família implica cuidar dela, pois é nela que
construímos a nossa existência. Curiosamente, aqueles que têm se apresentado
como defensores mais exacerbados da família tradicional ou estão envolvidos em
situações morais duvidosas, ou comprometidos com interesses espúrios ou até, em
alguns casos, com experiências conjugais que não se enquadram com o modelo
tradicional que defendem. O cuidado da família requer compromisso com a
santidade.
O cuidado com
a família passa por atitudes que estejam voltadas para o bem-estar da vida em
família, pela superação do ódio provocado por preconceitos e pela promoção de
uma cultura de paz, de não violência, de solidariedade e de convivência em
comunidade. Essas atitudes representam novos desafios para a vida em família.
Isso lembra a recomendação bíblica: “Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente
dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1 Timóteo 5.8).
Referências:
GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 61-75.
KEHL, Maria Rita. Em defesa da
família tentacular. In: Fronteiras do Pensamento. 2013. Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-tentacular>
Nenhum comentário:
Postar um comentário