O tema da fidelidade faz falta nesses tempos líquidos.
A fidelidade é a qualidade daquele que é fiel. E pessoas fiéis a seus
princípios, valores e planos são raras atualmente. A palavra tem origem no
latim fides, que poderia significar
tanto algo que é digno de confiança quanto a adesão de alguém a um princípio
religioso ou a uma crença. Trata-se da virtude necessária para desenvolver
relacionamentos, mas também para caracterizar uma conduta que dá sustentação para
realizar negócios e até para construir planos futuros.
Muitos confundem com lealdade, com bom caráter e até
com um modo religioso de ser. Porém, fidelidade é mais do que é isso. Para o
filósofo Andrés Comte Sponville, aquela pessoa que é portadora dessa
grande virtude é alguém em primeiro lugar fiel a si mesmo. “O espírito fiel é o
próprio espírito”, diz ele. A fidelidade nunca é um valor isolado, nem mesmo
algo que você possa escolher possuir entre tantos outros valores. Antes, ela dá
causa a outras virtudes e valores necessários para a nossa existência como
pessoas e para a nossa convivência com outros.
Por essa
razão, ela se torna o fator que nos identifica como pessoas. É a fidelidade de
si para consigo. Isso envolve tanto um exercício de memória, que nos remete aos
valores e princípios que orientam nossas escolhas, mas também um aprendizado,
que faz com que se priorize determinadas ações em detrimento de outras. Certa
vez, Montesquieu afirmou: “O fundamento de meu ser e de minha identidade é puramente moral:
ele está na fidelidade à fé que jurei a mim mesmo. Não sou realmente o mesmo de
ontem; sou o mesmo unicamente porque eu me confesso o mesmo, porque
assumo um certo passado como sendo meu, e porque pretendo, no futuro,
reconhecer meu compromisso presente como sempre meu”.
A infidelidade
é o apagamento dessa memória constitutiva, que faz com que os valores sejam
diluídos provocando instabilidade, falta de segurança e desencanto com a vida. O
que seria da Justiça se não fosse a fidelidade do justo? O que seria do amor se
não fosse a fidelidade dos amantes? O que seria da paz se não fosse a fidelidade
dos pacificadores? O que seria da verdade se não fosse a fidelidade dos que têm
compromisso com ela?
Na narrativa bíblica, a fidelidade aparece como uma
qualidade divina. Deus se apresenta como um Deus fiel, que mantém sua aliança,
que é digno da confiança. Nada pode mudar essa qualidade, nem mesmo o pecado ou
a apostasia. Deus sempre se mantém fiel ao que ele é e ao que prometeu, e age
desse modo porque ama. O amor é a atitude que motiva a sua bondade. Esse amor
fiel se transforma num convite para orientar a vida de acordo com os propósitos
e mandamentos divinos.
A fidelidade divina torna-se um paradigma para avaliar
a relação do homem com o sagrado. Pessoas fiéis são confiáveis, amáveis e
admiradas por isso. O Novo Testamento apresenta a fidelidade como uma das
características do fruto do Espírito Santo presente na vida do que crê (Gálatas
5.22). Isso lembra que Deus capacita pessoas, por meio do seu Espírito, a serem
fiéis, uma vez que temos muita dificuldade de agir desse modo por nós mesmos.
Jesus contou a parábola em que elogia a atitude dos servos fiéis, que foram
capazes de agir de forma prudente mesmo na ausência de alguém que lhes
vigiasse. A recompensa de Jesus para os servos fiéis é a bênção abundante, como
participantes da alegria divina: “Muito
bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco; eu o porei sobre o muito. Venha
e participe da alegria do seu senhor! (Mateus 25.23).
Ser fiel em
tempo de crise se constitui um grande desafio. A história de Israel foi marcada
por sucessivos atos de infidelidade e de arrependimentos. Um dos escritores que
se ocupou com esse tema na Bíblia de forma
contundente foi o profeta Oseias, que encarnou a mensagem da graça a um povo
que precisava resgatar o sentido da fidelidade no seu modo de se relacionar com
Deus, uns com os outros e com o mundo.
Oseias exerceu
seu ministério profético entre os anos 752-722 a.C. no território compreendido
pelo que ficou conhecido como reino do norte. A nação israelita tinha se
dividido após o reinado de Salomão. Das doze tribos que constituíam Israel, dez
se uniram ao norte e mantiveram o nome e duas formaram uma nova nação ao sul,
chamada de Judá. Israel tornou-se um estado instável, governado por líderes
opressores e corruptos. Durante o reinado de Jeroboão II, começou uma sucessão
de atentados e golpes de estado que fragilizaram a vida moral, política e econômica
dos israelitas, resultando na dominação dos assírios e o período de cativeiro.
Oseias começou
a profetizar numa época em que Israel experimentava uma certa estabilidade econômica.
As lideranças israelitas se tornaram gananciosas, explorando os mais pobres e
desenvolvendo uma espiritualidade distante dos ensinamentos da tradição
hebraica. A maneira como Oseias sente o chamado para exercer o ministério
profético difere de todos os demais profetas do Antigo Testamento. Ele teve que
encarnar o que Deus estava sentindo em relação aos problemas sociais a partir
do seu próprio casamento.
Curiosamente,
o nome Oseias quer dizer “salvação”. Ele é reconhecido na Teologia como o
profeta da graça, da compaixão, pois sua mensagem revela um profundo amor de
Deus não correspondido pelo seu povo. O tema da fidelidade perpassa todo o
conteúdo do livro. Primeiramente, dando ênfase à fidelidade de Deus ao seu amor
pelo seu povo; depois, chamando as pessoas a um arrependimento e à retomada de
uma prática da fidelidade; mas também podemos falar da fidelidade do profeta à
sua mensagem, mesmo em meio a circunstâncias tão controversas no casamento com
uma mulher infiel.
Oseias é reconhecido
na literatura judaica, sobretudo o Talmude, como o maior profeta de sua geração.
Seu livro está incluído na coletânea dos profetas menores, sendo o primeiro e
maior deles. Sua mensagem é marcada pela denúncia a toda forma de opressão, de
repreensão aos líderes corruptos e ignorantes que conduziam o povo à ruína. Ele
também contesta a maneira como as pessoas desenvolviam sua espiritualidade e
praticavam a religião de forma superficial e hipócrita. Entretanto, ele também
anuncia o amor de Deus, que sempre se mostra fiel e misericordioso. Ele chama o
povo ao conhecimento de Deus, não de uma forma intelectual, mas como acolhida
ao seu amor.
Parabéns. Texto excepcional.
ResponderExcluir