A
religião entrou para o mercado. Este é um fenômeno típico da religiosidade no
século XX, sobretudo no que diz respeito às formas que o cristianismo tem
assumido na sociedade ocidental. Isso se percebe claramente a partir da
performance dos pregadores, do formato dos cultos, dos produtos religiosos oferecidos,
das propagandas das igrejas e seus eventos, da estratégia das chamadas megaigrejas,
do layout dos sites religiosos, dos títulos dos best-sellers, dos filmes com
temáticas religiosas e dos programas religiosos no rádio e na televisão.
Este
fenômeno está presente até mesmo nas religiões não cristãs, que oferecem
produtos e serviços em uma sociedade marcada pelo consumo, atendendo a demandas
de indivíduos que se comportam como consumidores. Essa realidade transforma o
modo como as organizações religiosas agem e orienta a formação de grupos
religiosos a partir do comportamento de indivíduos ávidos em adquirir bens e
serviços que venham satisfazer necessidades realização pessoal e busca de bem-estar
e felicidade. Essa condição não só incrementa o mercado religioso, como também
promove a competição religiosa e favorece o aumento da oferta de soluções fáceis
e rápidas para as aflições humanas.
O
cristianismo já tem em si alguns elementos mercadológicos: ele possui uma
marca, que é a cruz; tem um apelo, que é a proposta de nova vida a partir da fé
em Jesus Cristo, em que o indivíduo é instado a assumir sua forma no mundo; e implica
uma estratégia de comunicação, que é a evangelização como anúncio da boa
notícia do amor de Deus a toda criatura. Entretanto, esses elementos vão
adquirir novos contornos com o processo de mercantilização que se dá a partir
da Modernidade. Dois fenômenos estão presentes nesse processo: o primeiro é o
da secularização, em que se verifica o colapso da religião instituída frente à
humanização crescente e afirmação da liberdade; o segundo é o do pluralismo
religioso, em que novas expressões de espiritualidade e de religiosidade
encontram espaço diante da mudança de valores e da preocupação com aquilo que
pode proporcionar segurança e bem-estar como novos sentidos para a ideia de
salvação.
Dois
pesquisadores da Universidade de Lausanne, Suíça, Jean-Claude Usunier e Jörg
Stolz, organizaram um trabalho a respeito da “marketização” da fé, cujo título
é Religions as brands: new
perspectives on the marketization of religion and spirituality. Eles identificam
sete fatores históricos para o que podemos chamar de tratamento da fé como
mercadoria.
1)
O fim da imposição das normas religiosas, que procuravam enquadrar o
comportamento a partir de crenças e de práticas fundadas em uma moral.
2)
A valorização da liberdade de escolha individual, o que estimulou o
comportamento do consumidor contemporâneo.
3)
A mudança de valores, com ênfase na autorrealização, na afirmação do eu (do self).
4)
Aumento da renda, o que “empodera” os indivíduos e os estimula ao consumo e ao investimento
em lazer e entretenimento.
5)
A busca por segurança, que se converte em cuidados com a saúde, o bem-estar e a
proteção individual aqui e agora, em substituição ao ideal metafísico oferecido
pela religião.
6)
O papel da mídia, que amplia o conteúdo informativo das pessoas a respeito da
vida, do mundo e dos outros. Inclui-se aí a mídia social e sua capacidade de
proporcionar maior interatividade e exposição do eu.
7)
Aumento da mobilidade tanto social quanto de espaço. As pessoas se locomovem
mais rapidamente de um lugar para outro, de uma posição social para outra e até
de uma opinião para outra, o que aumenta a competitividade e diversidade de
ofertas.
No
seu processo de transformação histórica, o cristianismo começou como um
movimento, tornou-se uma instituição no período medieval e assumiu a forma do
mercado com a Modernidade. Com a contemporaneidade, o cristianismo assume de
vez sua estratégia de mercado. Nesses tempos mercadológicos, a missão se volta
para a captação de adeptos, o culto assimila as formas de entretenimento e a
mensagem procura satisfazer as pessoas em suas necessidades imediatas. Com
isso, religiosos necessitam se especializar em gestão como se fossem
empresários, as mais avançadas estratégias de marketing são adaptadas à
realidade religiosa, evangelistas usam táticas de venda da fé como um produto e
os que ministram cultos se comportam como animadores de auditório.
Atualmente,
não é estranho tratar grupos religiosos como organizações sem fins lucrativos
ou não governamentais, visto que, tais como as antigas missões, elas também estão
voltadas para a solução de problemas humanos e sociais. E muitas ações cristãs comunitárias
e de solidariedade estão mais identificadas com ideais promovidos por ONGs do
que com os valores do Reino de Deus. Outro fator que tem levado igrejas cristãs
a se envolverem com uma lógica de mercado tem sido a crescente oferta de
respostas às necessidades humanas por movimentos e entidades seculares, sob a forma
de autoajuda, de cuidados com o corpo e com as emoções e até de práticas que
promovem o bem-estar e a realização pessoal nos ambientes do trabalho, das
relações familiares e das amizades.
Quais
as consequências dessas transformações para a experiência religiosa e para a
espiritualidade? A primeira delas é o surgimento de uma religião
individualizada, ao gosto do freguês. Cada vez mais, as pessoas buscam o que
poderíamos chamar de “religião de alta performance”, que é aquela que oferece
um serviço religioso de alta qualidade, com boa música, bons oradores e um
ambiente confortável e agradável. Os cultos passam a se preocupar mais em
oferecer um bom momento para os espectadores, com um formato mais parecido com
os programas de auditório e de shows. Nessas experiências, a pessoa quer se
sentir livre para fazer suas escolhas de crer, de assumir compromissos e até de
mudar comportamentos, como se estivessem em um shopping.
A
segunda é o surgimento de um mercado de bens religiosos, como a promoção de
festas, eventos significativos tanto para celebração da vida como para aplacar
sofrimentos, tais como batismos, casamentos e funerais, narrativas sobre a causa
dos problemas sociais e humanos, promoção de rituais mágicos para o alívio da
dor e promoção de uma sensação de bem-estar pessoal, oferta de promessas de
sucesso e vitória que só poderão ser realizadas no futuro, especialmente num
mundo vindouro. A religião assim se torna um bem, que tem um preço e se destina
a um consumo pessoal. Jesus é bom porque cura, liberta e ajuda a emagrecer.
Dessa forma, as igrejas precisam engajar-se no mercado para renovar o interesse
individual em seus produtos.
A
terceira é a maneira de encarar a divindade como um meio para realização dos
desejos pessoais. Nesse sentido, o dinheiro ocupa o lugar de Deus, cujo valor
está atrelado a si mesmo, que se basta para atender ao fim desejado. É a
realização do que Jesus chamou de culto a Mamom, termo hebraico que quer dizer
literalmente dinheiro, que ele usou para descrever o poder das riquezas materiais
na orientação de nossa conduta e de nossa personalidade. Jesus afirmou que “Nenhum servo
pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará ao outro, ou se dedicará
a um e desprezará ao outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Lucas 16.13).
Curiosamente,
Usunier e Stolz iniciam sua obra citando Karl Barth: “A igreja não pode
engajar-se em um mercado. A igreja não pode colocar-se em um pedestal,
criar-se, adorar a si mesma. Ninguém pode servir a Deus enquanto ao mesmo tempo
se ocupa de servir ao diabo e ao mundo”. Em tempos de “commoditização” da fé,
assumir um compromisso de retomar o ensino de Jesus é um ato revolucionário.
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