terça-feira, 2 de julho de 2019

Cristianismo como commodity / Christianity as commodity / El cristianismo como mercancía


A religião entrou para o mercado. Este é um fenômeno típico da religiosidade no século XX, sobretudo no que diz respeito às formas que o cristianismo tem assumido na sociedade ocidental. Isso se percebe claramente a partir da performance dos pregadores, do formato dos cultos, dos produtos religiosos oferecidos, das propagandas das igrejas e seus eventos, da estratégia das chamadas megaigrejas, do layout dos sites religiosos, dos títulos dos best-sellers, dos filmes com temáticas religiosas e dos programas religiosos no rádio e na televisão.
Este fenômeno está presente até mesmo nas religiões não cristãs, que oferecem produtos e serviços em uma sociedade marcada pelo consumo, atendendo a demandas de indivíduos que se comportam como consumidores. Essa realidade transforma o modo como as organizações religiosas agem e orienta a formação de grupos religiosos a partir do comportamento de indivíduos ávidos em adquirir bens e serviços que venham satisfazer necessidades realização pessoal e busca de bem-estar e felicidade. Essa condição não só incrementa o mercado religioso, como também promove a competição religiosa e favorece o aumento da oferta de soluções fáceis e rápidas para as aflições humanas.
O cristianismo já tem em si alguns elementos mercadológicos: ele possui uma marca, que é a cruz; tem um apelo, que é a proposta de nova vida a partir da fé em Jesus Cristo, em que o indivíduo é instado a assumir sua forma no mundo; e implica uma estratégia de comunicação, que é a evangelização como anúncio da boa notícia do amor de Deus a toda criatura. Entretanto, esses elementos vão adquirir novos contornos com o processo de mercantilização que se dá a partir da Modernidade. Dois fenômenos estão presentes nesse processo: o primeiro é o da secularização, em que se verifica o colapso da religião instituída frente à humanização crescente e afirmação da liberdade; o segundo é o do pluralismo religioso, em que novas expressões de espiritualidade e de religiosidade encontram espaço diante da mudança de valores e da preocupação com aquilo que pode proporcionar segurança e bem-estar como novos sentidos para a ideia de salvação.
Dois pesquisadores da Universidade de Lausanne, Suíça, Jean-Claude Usunier e Jörg Stolz, organizaram um trabalho a respeito da “marketização” da fé, cujo título é Religions as brands: new perspectives on the marketization of religion and spirituality. Eles identificam sete fatores históricos para o que podemos chamar de tratamento da fé como mercadoria.
1) O fim da imposição das normas religiosas, que procuravam enquadrar o comportamento a partir de crenças e de práticas fundadas em uma moral.
2) A valorização da liberdade de escolha individual, o que estimulou o comportamento do consumidor contemporâneo.
3) A mudança de valores, com ênfase na autorrealização, na afirmação do eu (do self).
4) Aumento da renda, o que “empodera” os indivíduos e os estimula ao consumo e ao investimento em lazer e entretenimento.
5) A busca por segurança, que se converte em cuidados com a saúde, o bem-estar e a proteção individual aqui e agora, em substituição ao ideal metafísico oferecido pela religião.
6) O papel da mídia, que amplia o conteúdo informativo das pessoas a respeito da vida, do mundo e dos outros. Inclui-se aí a mídia social e sua capacidade de proporcionar maior interatividade e exposição do eu.
7) Aumento da mobilidade tanto social quanto de espaço. As pessoas se locomovem mais rapidamente de um lugar para outro, de uma posição social para outra e até de uma opinião para outra, o que aumenta a competitividade e diversidade de ofertas.
No seu processo de transformação histórica, o cristianismo começou como um movimento, tornou-se uma instituição no período medieval e assumiu a forma do mercado com a Modernidade. Com a contemporaneidade, o cristianismo assume de vez sua estratégia de mercado. Nesses tempos mercadológicos, a missão se volta para a captação de adeptos, o culto assimila as formas de entretenimento e a mensagem procura satisfazer as pessoas em suas necessidades imediatas. Com isso, religiosos necessitam se especializar em gestão como se fossem empresários, as mais avançadas estratégias de marketing são adaptadas à realidade religiosa, evangelistas usam táticas de venda da fé como um produto e os que ministram cultos se comportam como animadores de auditório.
Atualmente, não é estranho tratar grupos religiosos como organizações sem fins lucrativos ou não governamentais, visto que, tais como as antigas missões, elas também estão voltadas para a solução de problemas humanos e sociais. E muitas ações cristãs comunitárias e de solidariedade estão mais identificadas com ideais promovidos por ONGs do que com os valores do Reino de Deus. Outro fator que tem levado igrejas cristãs a se envolverem com uma lógica de mercado tem sido a crescente oferta de respostas às necessidades humanas por movimentos e entidades seculares, sob a forma de autoajuda, de cuidados com o corpo e com as emoções e até de práticas que promovem o bem-estar e a realização pessoal nos ambientes do trabalho, das relações familiares e das amizades.
Quais as consequências dessas transformações para a experiência religiosa e para a espiritualidade? A primeira delas é o surgimento de uma religião individualizada, ao gosto do freguês. Cada vez mais, as pessoas buscam o que poderíamos chamar de “religião de alta performance”, que é aquela que oferece um serviço religioso de alta qualidade, com boa música, bons oradores e um ambiente confortável e agradável. Os cultos passam a se preocupar mais em oferecer um bom momento para os espectadores, com um formato mais parecido com os programas de auditório e de shows. Nessas experiências, a pessoa quer se sentir livre para fazer suas escolhas de crer, de assumir compromissos e até de mudar comportamentos, como se estivessem em um shopping.
A segunda é o surgimento de um mercado de bens religiosos, como a promoção de festas, eventos significativos tanto para celebração da vida como para aplacar sofrimentos, tais como batismos, casamentos e funerais, narrativas sobre a causa dos problemas sociais e humanos, promoção de rituais mágicos para o alívio da dor e promoção de uma sensação de bem-estar pessoal, oferta de promessas de sucesso e vitória que só poderão ser realizadas no futuro, especialmente num mundo vindouro. A religião assim se torna um bem, que tem um preço e se destina a um consumo pessoal. Jesus é bom porque cura, liberta e ajuda a emagrecer. Dessa forma, as igrejas precisam engajar-se no mercado para renovar o interesse individual em seus produtos.
A terceira é a maneira de encarar a divindade como um meio para realização dos desejos pessoais. Nesse sentido, o dinheiro ocupa o lugar de Deus, cujo valor está atrelado a si mesmo, que se basta para atender ao fim desejado. É a realização do que Jesus chamou de culto a Mamom, termo hebraico que quer dizer literalmente dinheiro, que ele usou para descrever o poder das riquezas materiais na orientação de nossa conduta e de nossa personalidade. Jesus afirmou que Nenhum servo pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará ao outro, ou se dedicará a um e desprezará ao outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Lucas 16.13).
Curiosamente, Usunier e Stolz iniciam sua obra citando Karl Barth: “A igreja não pode engajar-se em um mercado. A igreja não pode colocar-se em um pedestal, criar-se, adorar a si mesma. Ninguém pode servir a Deus enquanto ao mesmo tempo se ocupa de servir ao diabo e ao mundo”. Em tempos de “commoditização” da fé, assumir um compromisso de retomar o ensino de Jesus é um ato revolucionário.

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