quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Exercícios espirituais e espiritualidade cristã / Spiritual Exercises and Christian Spirituality / Ejercicios Espirituales y Espiritualidad Cristiana


A espiritualidade não é uma palavra encontrada nas Escrituras. Ela também não começa no cristianismo. E também não está ligada à história bíblica ou judaico-cristã. A espiritualidade é anterior ao cristianismo, está presente em civilizações que existiram cerca de três mil anos antes de Cristo e que desenvolveram práticas de meditação e de vida contemplativa. Entretanto, foram os gregos antigos que desenvolveram um conjunto de práticas e exercícios voltados para um determinado modo de pensar a vida e de viver a partir de valores e princípios considerados elevados, ligados ao espírito, que pode ser chamado de espiritualidade.
A ideia de uma espiritualidade cristã foi adquirida a partir da aproximação do pensamento cristão com a Filosofia Ocidental e o pensamento ocidental, sobretudo em relação aos ensinos platônicos do cuidado de si. Sócrates foi o primeiro pensador a propor exercícios para adestrar o sujeito a ter uma vida digna de ser contemplada e imitada. Seus ensinos foram aprofundados por pensadores como Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio, todos os estoicos e até os neoplatônicos como Plotino. Esses primeiros filósofos entenderam a filosofia como uma maneira de viver, como uma arte de viver, como uma askesis, Palavra grega que quer dizer “exercício”.
Essa tese é levantada pelo filósofo francês Pierre Hadot, em seu livro Exercícios espirituais e Filosofia Antiga. Para Hadot, as correntes de pensamento dos primeiros filósofos estavam a serviço de um modo de vida orientado pela Filosofia, que visava transformar o sujeito e oferecer-lhe princípios para sua conduta no mundo. Ele não emprega a ideia de “exercícios espirituais” como práticas religiosas, nem mesmo como exercícios intelectuais ou morais, mas como exercícios do pensamento. Ele afirma que a Filosofia Antiga é um “exercício espiritual porque ela é um modo de vida, uma escolha de vida”. Mais adiante ele resume que é “uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser”. Hadot questiona a respeito do momento em que a Filosofia deixou de ser tratada como modo de vida, e passou a ser teórica e abstrata tal como a conhecemos hoje. Entretanto, reconhece que o cristianismo se apresentou como uma filosofia completa, visto que assimilou a tradição greco-romana dos exercícios espirituais como modo de vida.
Podemos falar de uma tradição dos exercícios espirituais como uma construção do cristianismo somente a partir do século II. Os primeiros exercícios espirituais cristãos foram desenvolvidos por Orígenes, posteriormente pelos monges cenobitas e os padres do deserto, conhecidos como anacoretas. A tradição dos exercícios espirituais cristãos, também chamada de ascese ou ascetismo, está ligada à história da experiência mística como uma orientação da relação com o sagrado, o divino ou o transcendente. A mística é um campo de estudos teológicos importante, desenvolvida, sobretudo, a partir dos textos atribuídos a Dionísio Areopagita, no século VI, com sua teologia apofática, oposta a uma teologia dogmática e propositiva.
Já no século XVI, Inácio de Loyola trouxe a tradição dos exercícios espirituais para dentro da esfera religiosa. Para ele, os exercícios espirituais consistem em um “modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal e mentalmente e outras atividades espirituais. [...] Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais também se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposição de sua vida para o bem da mesma pessoa” (em seu livro Exercícios espirituais).
Os exercícios espirituais inacianos são, na verdade, um processo que visa conduzir seus praticantes a uma experiência de libertação dos sentimentos desornados em relação à vontade de Deus, cujo objetivo é desenvolver o discernimento. O que se pretende é promover uma conversão do sujeito para uma vida de união com Cristo bem como a imersão na prática da missão cristã no mundo. Sempre que se fala de exercícios espirituais e de espiritualidade cristã, a proposta inaciana é lembrada como referência. O problema é que ela é uma resposta da contrarreforma católica, em oposição à Reforma Protestante e, por essa razão, pouco considerada nos meios do protestantismo.
A espiritualidade cristã que emerge dos evangelhos, no entanto, possui algumas características que diferem da tradição ocidental. Jesus chama seus discípulos para uma vida guiada pelo Espírito Santo, como um parákleto, alguém que se coloca ao lado como guia e defensor. Espiritualidade cristã é essencialmente vida no e pelo Espírito, vivida no contexto comunitário, inserida na realidade do mundo. Os evangelhos apontam algumas marcas dessa espiritualidade: a comunhão simbolizada pela eucaristia, o testemunho de vida transformada, o serviço em amor ao próximo, o compromisso pelo batismo, a missão de sinalizar o Reino de Deus no mundo, a oração e o exame das Escrituras.
Nós não encontramos nos evangelhos a necessidade de uma prática religiosa, de atividades devocionais e nem de um chamado à vida ascética. A espiritualidade cristã que pode ser percebida nos evangelhos aponta para um modo de viver – ou uma arte de viver – centrada em uma relação com a pessoa de Jesus e orientada pelos seus ensinos. Vida que remete à participação comunitária, ao cuidado com o outro, à atenção aos mais fragilizados e a uma prática de desprendimento em relação aos valores materiais. A espiritualidade cristã está ligada a uma ética e a uma práxis que visa transformar a vida do sujeito de forma integral.
Resgatar a espiritualidade contida nos evangelhos é fazer o caminho de volta a um tipo de cristianismo anterior ao surgimento do que ficou marcado como cristandade. Precisamos desenvolver uma espiritualidade na contemporaneidade, como um exercício de sabedoria, a partir de uma releitura dos evangelhos, tendo em vista a conquista de uma consciência de nossa humanidade como sujeitos ativos no mundo, que oriente nossa ação responsável diante das dores e alegrias no mundo neste tempo.

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