A
espiritualidade não é uma palavra encontrada nas Escrituras. Ela também não
começa no cristianismo. E também não está ligada à história bíblica ou
judaico-cristã. A espiritualidade é anterior ao cristianismo, está presente em
civilizações que existiram cerca de três mil anos antes de Cristo e que
desenvolveram práticas de meditação e de vida contemplativa. Entretanto, foram
os gregos antigos que desenvolveram um conjunto de práticas e exercícios
voltados para um determinado modo de pensar a vida e de viver a partir de
valores e princípios considerados elevados, ligados ao espírito, que pode ser
chamado de espiritualidade.
A ideia de
uma espiritualidade cristã foi adquirida a partir da aproximação do pensamento
cristão com a Filosofia Ocidental e o pensamento ocidental, sobretudo em
relação aos ensinos platônicos do cuidado de si. Sócrates foi o primeiro
pensador a propor exercícios para adestrar o sujeito a ter uma vida digna de
ser contemplada e imitada. Seus ensinos foram aprofundados por pensadores como Epicuro,
Sêneca, Marco Aurélio, todos os estoicos e até os neoplatônicos como Plotino. Esses
primeiros filósofos entenderam a filosofia como uma maneira de viver, como uma
arte de viver, como uma askesis, Palavra
grega que quer dizer “exercício”.
Essa tese
é levantada pelo filósofo francês Pierre Hadot, em seu livro Exercícios espirituais e Filosofia Antiga.
Para Hadot, as correntes de pensamento dos primeiros filósofos estavam a
serviço de um modo de vida orientado pela Filosofia, que visava transformar o
sujeito e oferecer-lhe princípios para sua conduta no mundo. Ele não emprega a
ideia de “exercícios espirituais” como práticas religiosas, nem mesmo como
exercícios intelectuais ou morais, mas como exercícios do pensamento. Ele
afirma que a Filosofia Antiga é um “exercício espiritual porque ela é um modo
de vida, uma escolha de vida”. Mais adiante ele resume que é “uma prática
destinada a operar uma mudança radical do ser”. Hadot questiona a respeito do
momento em que a Filosofia deixou de ser tratada como modo de vida, e passou a
ser teórica e abstrata tal como a conhecemos hoje. Entretanto, reconhece que o
cristianismo se apresentou como uma filosofia completa, visto que assimilou a
tradição greco-romana dos exercícios espirituais como modo de vida.
Podemos
falar de uma tradição dos exercícios espirituais como uma construção do
cristianismo somente a partir do século II. Os primeiros exercícios espirituais
cristãos foram desenvolvidos por Orígenes, posteriormente pelos monges
cenobitas e os padres do deserto, conhecidos como anacoretas. A tradição dos
exercícios espirituais cristãos, também chamada de ascese ou ascetismo, está
ligada à história da experiência mística como uma orientação da relação com o sagrado,
o divino ou o transcendente. A mística é um campo de estudos teológicos
importante, desenvolvida, sobretudo, a partir dos textos atribuídos a Dionísio
Areopagita, no século VI, com sua teologia apofática,
oposta a uma teologia dogmática e propositiva.
Já no
século XVI, Inácio de Loyola trouxe a tradição dos exercícios espirituais para
dentro da esfera religiosa. Para ele, os exercícios espirituais consistem em um
“modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal e mentalmente
e outras atividades espirituais. [...] Porque, assim como passear, caminhar e correr são
exercícios corporais também se chamam exercícios espirituais os diferentes
modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições
desordenadas e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na
disposição de sua vida para o bem da mesma pessoa” (em seu livro Exercícios
espirituais).
Os exercícios espirituais inacianos são, na
verdade, um processo que visa conduzir seus praticantes a uma experiência de
libertação dos sentimentos desornados em relação à vontade de Deus, cujo objetivo
é desenvolver o discernimento. O que se pretende é promover uma conversão do
sujeito para uma vida de união com Cristo bem como a imersão na prática da
missão cristã no mundo. Sempre que se fala de exercícios espirituais e de
espiritualidade cristã, a proposta inaciana é lembrada como referência. O
problema é que ela é uma resposta da contrarreforma católica, em oposição à
Reforma Protestante e, por essa razão, pouco considerada nos meios do
protestantismo.
A espiritualidade cristã que emerge dos
evangelhos, no entanto, possui algumas características que diferem da tradição
ocidental. Jesus chama seus discípulos para uma vida guiada pelo Espírito
Santo, como um parákleto, alguém que se coloca ao lado como guia e
defensor. Espiritualidade cristã é essencialmente vida no e pelo Espírito,
vivida no contexto comunitário, inserida na realidade do mundo. Os evangelhos
apontam algumas marcas dessa espiritualidade: a comunhão simbolizada pela
eucaristia, o testemunho de vida transformada, o serviço em amor ao próximo, o
compromisso pelo batismo, a missão de sinalizar o Reino de Deus no mundo, a
oração e o exame das Escrituras.
Nós não encontramos nos evangelhos a
necessidade de uma prática religiosa, de atividades devocionais e nem de um
chamado à vida ascética. A espiritualidade cristã que pode ser percebida nos evangelhos
aponta para um modo de viver – ou uma arte de viver – centrada em uma relação
com a pessoa de Jesus e orientada pelos seus ensinos. Vida que remete à
participação comunitária, ao cuidado com o outro, à atenção aos mais fragilizados
e a uma prática de desprendimento em relação aos valores materiais. A
espiritualidade cristã está ligada a uma ética e a uma práxis que visa
transformar a vida do sujeito de forma integral.
Resgatar a espiritualidade contida nos
evangelhos é fazer o caminho de volta a um tipo de cristianismo anterior ao surgimento
do que ficou marcado como cristandade. Precisamos desenvolver uma
espiritualidade na contemporaneidade, como um exercício de sabedoria, a partir
de uma releitura dos evangelhos, tendo em vista a conquista de uma consciência
de nossa humanidade como sujeitos ativos no mundo, que oriente nossa ação
responsável diante das dores e alegrias no mundo neste tempo.
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