sexta-feira, 27 de março de 2020

Como cristãos enfrentam grandes epidemias? / How do Christians face major epidemics? / ¿Cómo enfrentan los cristianos grandes epidemias?


Uma das decisões que a maioria dos países tem tomado para tentar impedir a propagação do Coronavírus é a orientação para evitar as aglomerações e o contato social. Sem levar em consideração toda consequência social e econômica que tal decisão provoca, isso afeta diretamente a forma de ser das igrejas, sobretudo as evangélicas, que se baseiam principalmente no relacionamento afetuoso, nas reuniões celebrativas e no contato físico do abraço, do aperto de mão e da troca de beijos. Muitos líderes se levantaram para desafiar essa medida, enquanto outros recomendam a prudência. Os primeiros alegam a liberdade de culto; Já para os segundos, a igreja pode demonstrar sabedoria para encontrar novas formas de adorar e de servir usando as novas tecnologias.
O problema não é novo. A história da humanidade é atravessada por pandemias, epidemias, pestes e pragas. Os cristãos nunca agiram de forma indiferente a elas desde o surgimento da igreja. Ao contrário, envolveram-se diretamente com cada problema de tal forma que a maneira como enfrentaram a doença, o contágio, o sofrimento e até a morte influenciou de forma decisiva o modo como a sociedade passou a compreender a fé cristã. O jeito como cristãos agiram em cada situação não só atraiu a simpatia das pessoas como também serviu de exemplo para decisões dos governos diante dos males.
Uma das primeiras grandes epidemias que envolveram a atuação dos cristãos ficou conhecida como Peste Antonina, no século II, ao tempo do imperador romano Marco Aurélio. Essa peste causou grande devastação em Roma, no ano 166, espalhou-se por toda a Itália e durou até o ano 189. O próprio imperador Marco Aurélio foi um dos infectados. Essa epidemia é considerada como um marco importante para o início do declínio do império romano como também para a aproximação da igreja cristã com o Estado.
Na época, surgiram duas lendas a respeito da origem da peste antonina: alguns achavam que ela foi provocada por punição divina por violarem a promessa de não saquearem a cidade de Selêucia; outros acreditavam que tudo começou quando uma tumba de ouro foi violada, no templo de Apolo, na Babilônia. Mas havia até quem culpasse os cristãos, pois teriam irritado aos deuses com sua mensagem e crescimento. Houve inclusive, em 177, um levante contra os cristãos, acusados que foram de canibalismo e incesto, conduzindo muitos à morte pela recusa a algumas leis romanas e por ofensa aos deuses.
Entretanto, a ação dos cristãos chamou a atenção das pessoas pela mensagem de esperança que proclamavam, em contraste com a mentalidade do medo e da punição. O discurso cristão apontava para o sentido da vida e da morte, mas também falava de esperança de superação das aflições nesta vida e na vida futura. E ainda havia o consolo para os familiares daqueles que morreram como cristãos, com a promessa de que receberiam uma recompensa no céu. Essa era a essência da mensagem da salvação pela fé em Jesus Cristo. Além do forte discurso salvífico, muitos cristãos arriscavam suas próprias vidas, expondo-se ao contágio, para levar consolo e cuidado para quem sofria o flagelo da doença. Enquanto o Estado romano e a sociedade em geral baniam os doentes para longe e os excluíam da convivência, os cristãos se ofereciam para cuidar deles.
No século III, uma nova peste assolou o Ocidente, de 249 a 262, ainda mais letal. O bispo Dionísio de Alexandria assim registrou sobre a atitude da sociedade em geral: “No início da doença, eles empurraram os doentes para longe e expulsavam seus próprios entes queridos de casa, jogando-os nas estradas, antes mesmo de morrerem, e tratando cadáveres não enterrados como terra, esperando assim evitar a propagação e o contágio da doença fatal; mas, mesmo fazendo tudo o que podiam, achavam que seria difícil escapar”. Os cristãos, porém, serviam aos doentes e muitos morreram contaminados. Isso serviu de testemunho vivo sobre o amor e a misericórdia cristãos. Assim se expressou o bispo Dionísio: “Muitos de nossos irmãos cristãos mostraram amor e lealdade ilimitados, nunca poupando a si mesmos e pensando apenas no seu próximo. Indiferentes ao perigo, eles cuidaram dos enfermos, atendendo a todas as suas necessidades e ministrando-os em Cristo, e com eles partiram desta vida serenamente felizes; pois foram infectados por outros com a doença, provocando em si mesmos a doença de seus vizinhos e aceitando alegremente suas dores”. E, na biografia de Dionísio, foi registrado: “Não há nada de extraordinário em apreciar meramente nosso próprio povo com as devidas atenções de amor, mas esse alguém pode se tornar perfeito, que deve fazer algo mais do que homens ou publicanos pagãos, alguém que, vencendo o mal com o bem, e praticando uma bondade misericordiosa como a de Deus, deveria amar seus inimigos também… Assim, o bem foi feito a todos os homens, não apenas à família da fé”.
Essa demonstração de cuidado amoroso e serviço altruísta impactou o mundo ocidental e promoveu um crescimento exponencial da igreja à medida que aqueles que foram beneficiados pela maneira como foram cuidados se convertiam. Enquanto a preocupação da sociedade em geral era com se preservar e se proteger, os cristãos se ofereceram para servir a todos num espírito de comunhão, sem preconceito e sem distinções, aproveitando aquela oportunidade para testemunhar a nova vida em Cristo.
Um gesto que deixou marcas na história foi a criação das santas casas de misericórdia. Em 1498, surgiu em Lisboa, a primeira delas, criada pela Rainha Leonor, viúva do Rei Dom João II, para cuidar dos doentes e inválidos em uma época de muitas tragédias provocadas por guerras e epidemias. Era também o tempo dos grandes descobrimentos. A ordem religiosa que foi criada para cuidar das santas casas era formada por pessoas movidas por um sentimento de solidariedade. Logo elas se espalharam pela Europa, Ásia e África, chegando também às Américas. Atualmente, existem mais de 2.000 santas casas em diversas cidades do Brasil.
Em 1527, Lutero foi indagado sobre como cristãos deveriam se portar diante de uma “praga mortal”. O mundo já havia experimentado a peste negra dois séculos antes, que varreu a Europa. Ele escreveu, por essa razão, uma carta intitulada Se Alguém Deve Fugir de uma Praga Mortal, na qual trata das responsabilidades dos cristãos em tempos de calamidades, principalmente quando se refere a pestes e pragas. O cuidado com os doentes não se limita aos profissionais de saúde. Os ministros são exortados a cuidarem dos mais doentes, dos moribundos e dos fragilizados, a fim de promover consolo e encorajamento. Ele desafiou aos cristãos em geral a encontrarem oportunidades de cuidarem dos doentes como se estivessem cuidando do próprio Cristo. Mas ele também orientou aos fiéis a agirem com prudência e a não se exporem ao perigo sem necessidade. O cristão tem o dever de cuidar do seu corpo como um exercício de santidade. Ele defendia que cristãos deveriam respeitas as medidas sanitárias e as quarentenas, cuidados pessoais com a higiene e a buscar socorro médico em caso de necessidade. Ele compreendia que Deus deu sabedoria aos médicos para saberem cuidar das pessoas da mesma forma que deu os remédios como dádivas para nossa saúde.
Durante essa nova pandemia no mundo, cristãos de todas as partes reagem de forma a colocarem suas vidas a serviço do cuidado. Há uma mobilização de igrejas e pastores responsáveis para encontrar formas criativas de manterem a adoração e a comunhão usando as novas tecnologias, mas sem abrirem mão de cuidarem uns dos outros respeitando as práticas de higiene e prevenção recomendadas pela Organização Mundial de Saúde. Quem se coloca contrário a isso recebe severas críticas e reprovações. Um dos exemplos vem da cidade de Bérgamo, na Itália, que registrou a morte de sete padres numa semana por terem contraído o Coronavírus e contraído a doença durante a prática da confissão e do cuidado com os enfermos. O bispo local, monsenhor Francesco Beschi, assim se pronunciou: “a generosidade dos sacerdotes continua, estamos próximos das pessoas, com as devidas precauções, mas conscientes de que, por um lado, carregamos Jesus e, por outro, podemos tornar-nos portadores do vírus”.
Agora, quando o mundo inteiro é afetado pela pandemia do Coronavírus e a doença Covid-19, os cristãos são chamados mais uma vez e desafiados a se colocarem a serviço dos que se encontram aflitos. Esse não é um momento de angústia ou de medo, mas de assumir o desafio da comunhão, do serviço e do testemunho. Na parábola das ovelhas e dos bodes, Jesus disse às ovelhas: “estive doente e vocês cuidaram de mim”. E todos perguntaram: “quando te vimos doente?”. Aos justos, Jesus respondeu: “o que vocês fizeram aos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25.36, 39 e 40).

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