sábado, 27 de janeiro de 2018

O que é dúvida / Doubt / Duda

Em tempo de pós-verdade e difusão de fake news, a dúvida passou a ser um componente necessário no tratamento das informações que recebemos. É o que coloca em questão nossas convicções e nossa visão de mundo. Quando os fatos e as informações contradizem nossas crenças, temos a tendência de agirmos com indiferença ou com suspeita. Aqueles que se tornam indiferentes, tendem a ignorar um novo conhecimento ou a manipular as informações para continuar afirmando suas convicções. Já aqueles que levantam a suspeita, podem tender a afirmar que não há qualquer possibilidade de conhecimento ou a se abrir para uma busca de novas respostas.
A dúvida não é simplesmente uma incerteza ou descrença. A dúvida é uma atitude que vem interessando à filosofia há muito tempo. Nesse sentido, ela é o primeiro momento do conhecimento. A palavra, em português, vem do latim dubitare, que quer dizer “não ter certeza”, mas também lembra dubius, que é “hesitar entre duas possibilidades”. Mas, quando analisamos a sua origem grega, encontramos outras duas possibilidades. O grego apresenta duas palavras para dúvida: diakrino e skeptikistés. Nesse caso, a primeira se refere ao discernimento e a segunda à suspeita. Grosso modo, a dúvida pode sempre se dar de dois modos: um que pode indicar uma mente fechada e outro que abre possibilidade para a investigação.
Diakrino é formada por dois radicais: dia (fazer o caminho de ida e volta) e krino (juízo), e pode significar “fazer separação” ou “fazer distinção” entre uma coisa e outra. A Bíblia, no Novo Testamento, emprega a palavra diakrino na maior parte dos casos para dúvida e não emprega skeptikistés em nenhuma ocasião. Na maior parte dos contextos, diakrino é usada para fazer menção à capacidade de discernimento, como na forma negativa em: Peça-a, porém, com fé, sem duvidar, pois aquele que duvida é semelhante à onda do mar, levada e agitada pelo vento” (Tiago 1.6). Porém, pode ser entendida como um juízo premeditado e ser traduzida por preconceito ou discriminação, como em Tiago 2.4, ao se referir à acepção de pessoas pela aparência, quando afirma: “não estarão fazendo discriminação, fazendo julgamentos com critérios errados?” Outro exemplo do uso de diakrino no Novo Testamento se encontra em Mateus 16.3, como uma forma de compreensão, quando Jesus diz: “[...] Vocês sabem interpretar o aspecto do céu, mas não sabem interpretar os sinais dos tempos!”. Isso muda o sentido de muitas passagens. Veja mais alguns exemplos: (a) Jesus respondeu: ‘Eu lhes asseguro que, se vocês tiverem fé e não duvidarem, poderão fazer não somente o que foi feito à figueira, mas também dizer a este monte: Levante-se e atire-se no mar, e assim será feito’” (Mateus 21.21); (b) Ele não fez distinção alguma entre nós e eles, visto que purificou os seus corações pela fé” (Atos 15.9); (c) Digo isso para envergonhá-los. Acaso não há entre vocês alguém suficientemente sábio para julgar uma causa entre irmãos?” (1 Coríntios 6.5); (d) Tenham compaixão daqueles que duvidam(Judas 1.22).
Já no famoso caso de Tomé, a narrativa de João não trata como uma dúvida, mas como falta de fé. O evangelho diz: E Jesus disse a Tomé: ‘Coloque o seu dedo aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado. Pare de duvidar e creia’” (João 20.27). O termo empregado é apistos, que significa “não crer”. O tradutor optou por entender a descrença ou a incredulidade como uma dúvida. No acontecimento narrado em Mateus 14.31, que diz: [...] Homem de pequena fé, porque você duvidou?, a melhor tradução seria: “por que você tem pouco conhecimento sobre as coisas que tem feito?” O mesmo acontece em Mateus 28.17, quando diz: Quando o viram o adoraram; mas alguns duvidaram. A palavra usada em ambos os casos é edistasan, como uma resistência em conhecer. Finalmente, podemos mencionar Lucas 24.38, que traz: Ele lhes disse: ‘Por que vocês estão perturbados e por que se levantam dúvidas em seus corações?’” A expressão empregada é dialogismoi anabainousin, que pode ser traduzida como a produção de muitos significados para um mesmo acontecimento.
Esse modo de entender a dúvida deu margem a uma teologia dogmática no Ocidente, também chamada de catafática, por se basear em fórmulas e conceitos com os quais nos referimos a Deus sempre de maneira provisória e limitada. O contrário disso ficou conhecido como teologia apofática, ou teologia negativa, cujo auge se encontra no pensamento de Dionísio Areopagita, no século VI, que negava a possibilidade de se referir a Deus a partir de atributos retirados do mundo sensível e racional. Deus transcende a todo o entendimento.
Em nenhum desses casos, a palavra dúvida se aproxima do conceito desenvolvido pelos céticos gregos. O ceticismo vem de skeptikistés, que quer dizer observar ou aquele que observa. Essa palavra é estranha ao Novo Testamento. Seu uso está mais ligado ao pensamento grego. O cético é aquele que duvida. Um fenômeno curioso é que o mal-entendido sobre o significado dessa palavra se dá a partir do século XVIII, quando ela foi usada pelos pensadores da Modernidade para designar atitudes como a de Voltaire, que apresentava dúvidas ou suspeitas em relação à crença religiosa, colocando-as sob o crivo da razão ou da análise empírica.
O ceticismo grego começou com Pirro, no século IV a.C., como um contraponto ao estoicismo de Zenão e ao hedonismo de Epicuro. Porém, foi o médico Sexto Empírico que formulou as bases teóricas do ceticismo, no século II da era cristã. Para os primeiros céticos, nada pode ser conhecido com certeza, quer seja pelos sentidos, quer seja pela razão. A razão humana é incapaz de chegar à verdade absoluta.
O ceticismo não é uma doutrina, mas uma atitude ou uma disposição mental que coloca em questão a possibilidade de se ter certeza de alguma coisa. Distingue da atitude dogmática, própria da maioria dos filósofos na antiguidade que afirmavam a intenção de se alcançar a verdade. Diante da incerteza, o cético adota a posição de “suspender o juízo”, que eles chamavam de epoché.
Para se chegar à suspensão do juízo, o cético tinha que observar alguns modos: (a) o modo da discordância, que considera que todas as opiniões divergem entre si; (b) o modo da regressão ao infinito, em que a prova de um determinado argumento deve ser demonstrada até se esgotarem as possibilidades; (c) o modo da relação, visto que todo conhecimento que se tem de um objeto é relativo tanto à natureza do sujeito quanto às condições em que o objeto se encontra; (d) Modo do postulado, que é a rejeição de se adotar como base de argumentação qualquer postulado que não tenha sido demonstrado; e (e) o modo do círculo vicioso: que é a tentativa de justificar os argumentos pelas consequências apenas.
O ceticismo influenciou pensadores como Descartes e Pascal, no começo da Modernidade (século XVII). Descartes desenvolveu o que chamou de dúvida metódica, como um caminho investigativo para se chegar às ideias claras e distintas. Para Pascal, a dúvida está vinculada diretamente à investigação, pois duvidar e não investigar não só resulta em infelicidade, mas também produz injustiça. Mais adiante, Soren Kierkegaard vai defender a necessidade de que é preciso duvidar de tudo. Até mesmo a fenomenologia, no século XX, se aproxima do ceticismo ao afirmar que só podemos conhecer as coisas a partir das percepções que temos delas, ou seja, o que sabemos das coisas é apenas o modo como elas nos afetam.
Duvidar no sentido estrito não é um problema em si para a fé. Antes, é a base para não se acreditar nas convicções sem provas, nas informações em rede social sem conhecer sua fonte, nas manipulações dos dados para se confirmar crenças. Para isso, a Bíblia tem duas recomendações: uma de Paulo, que nos diz para examinar de tudo e reter o que é bom (1 Tessalonicenses 5.21); outra de João, que nos pede para não acreditarmos em qualquer espírito (1 João 4.1).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails