Em tempo de pós-verdade e
difusão de fake news, a dúvida passou
a ser um componente necessário no tratamento das informações que recebemos. É o
que coloca em questão nossas convicções e nossa visão de mundo. Quando os fatos
e as informações contradizem nossas crenças, temos a tendência de agirmos com
indiferença ou com suspeita. Aqueles que se tornam indiferentes, tendem a
ignorar um novo conhecimento ou a manipular as informações para continuar
afirmando suas convicções. Já aqueles que levantam a suspeita, podem tender a afirmar
que não há qualquer possibilidade de conhecimento ou a se abrir para uma busca
de novas respostas.
A dúvida não é simplesmente uma
incerteza ou descrença. A dúvida é uma atitude que vem interessando à filosofia
há muito tempo. Nesse sentido, ela é o primeiro momento do conhecimento. A
palavra, em português, vem do latim dubitare,
que quer dizer “não ter certeza”, mas também lembra dubius, que é “hesitar entre duas possibilidades”. Mas, quando
analisamos a sua origem grega, encontramos outras duas possibilidades. O grego
apresenta duas palavras para dúvida: diakrino
e skeptikistés. Nesse caso, a primeira se refere ao
discernimento e a segunda à suspeita. Grosso modo, a dúvida pode sempre se dar
de dois modos: um que pode indicar uma mente fechada e outro que abre
possibilidade para a investigação.
Diakrino é formada por dois radicais: dia (fazer o caminho de ida e volta) e krino (juízo), e pode significar “fazer separação” ou “fazer
distinção” entre uma coisa e outra. A Bíblia, no Novo Testamento, emprega a
palavra diakrino na maior parte dos
casos para dúvida e não emprega skeptikistés
em nenhuma ocasião. Na maior parte dos contextos, diakrino é usada para fazer menção à capacidade de discernimento,
como na forma negativa em: “Peça-a,
porém, com fé, sem duvidar, pois aquele que duvida é semelhante à
onda do mar, levada e agitada pelo vento” (Tiago 1.6). Porém, pode ser entendida como um juízo
premeditado e ser traduzida por preconceito ou discriminação, como em Tiago 2.4, ao se referir à acepção de
pessoas pela aparência, quando afirma: “não estarão fazendo discriminação,
fazendo julgamentos com critérios errados?” Outro exemplo do uso de diakrino
no Novo Testamento se encontra em Mateus 16.3, como uma forma de compreensão, quando
Jesus diz: “[...] Vocês sabem interpretar o aspecto do céu, mas não sabem interpretar
os sinais dos tempos!”. Isso
muda o sentido de muitas passagens. Veja mais alguns exemplos: (a) “Jesus respondeu: ‘Eu lhes asseguro que,
se vocês tiverem fé e não duvidarem, poderão fazer não somente o que foi
feito à figueira, mas também dizer a este monte: Levante-se e atire-se no mar,
e assim será feito’” (Mateus
21.21); (b) “Ele
não fez distinção alguma entre nós e eles, visto que purificou os seus
corações pela fé” (Atos 15.9);
(c) “Digo
isso para envergonhá-los. Acaso não há entre vocês alguém suficientemente sábio
para julgar uma causa entre irmãos?” (1 Coríntios 6.5); (d) “Tenham compaixão daqueles que duvidam” (Judas 1.22).
Já no famoso caso de Tomé, a narrativa
de João não trata como uma dúvida, mas como falta de fé. O evangelho diz: “E Jesus
disse a Tomé: ‘Coloque o seu dedo aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e
coloque-a no meu lado. Pare de duvidar e creia’” (João 20.27). O termo empregado é apistos, que significa “não crer”. O
tradutor optou por entender a descrença ou a incredulidade como uma dúvida. No
acontecimento narrado em Mateus 14.31, que diz: “[...] Homem de pequena fé, porque você duvidou?”,
a melhor tradução seria: “por que você tem pouco conhecimento sobre as coisas
que tem feito?” O mesmo acontece em Mateus 28.17, quando diz: “Quando o viram
o adoraram; mas alguns duvidaram”. A palavra usada em
ambos os casos é edistasan, como uma
resistência em conhecer. Finalmente, podemos mencionar Lucas 24.38, que traz: “Ele lhes
disse: ‘Por que vocês estão perturbados e por que se levantam dúvidas
em seus corações?’” A expressão
empregada é dialogismoi anabainousin,
que pode ser traduzida como a produção de muitos significados para um mesmo
acontecimento.
Esse modo de entender a dúvida
deu margem a uma teologia dogmática no Ocidente, também chamada de catafática,
por se basear em fórmulas e conceitos com os quais nos referimos a Deus sempre
de maneira provisória e limitada. O contrário disso ficou conhecido como
teologia apofática, ou teologia negativa, cujo auge se encontra no pensamento
de Dionísio Areopagita, no século VI, que negava a possibilidade de se referir
a Deus a partir de atributos retirados do mundo sensível e racional. Deus
transcende a todo o entendimento.
Em nenhum desses casos, a palavra
dúvida se aproxima do conceito desenvolvido pelos céticos gregos. O ceticismo
vem de skeptikistés, que
quer dizer observar ou aquele que observa. Essa palavra é estranha ao Novo
Testamento. Seu uso está mais ligado ao pensamento grego. O cético é aquele que
duvida. Um fenômeno curioso é que o mal-entendido sobre o significado dessa
palavra se dá a partir do século XVIII, quando ela foi usada pelos pensadores
da Modernidade para designar atitudes como a de Voltaire, que apresentava
dúvidas ou suspeitas em relação à crença religiosa, colocando-as sob o crivo da
razão ou da análise empírica.
O ceticismo grego começou com Pirro, no século IV a.C., como um
contraponto ao estoicismo de Zenão e ao hedonismo de Epicuro. Porém, foi o
médico Sexto Empírico que formulou as bases teóricas do ceticismo, no século II
da era cristã. Para os primeiros céticos, nada pode ser conhecido com certeza,
quer seja pelos sentidos, quer seja pela razão. A razão humana é incapaz de
chegar à verdade absoluta.
O ceticismo não é uma doutrina, mas
uma atitude ou uma disposição mental que coloca em questão a possibilidade de
se ter certeza de alguma coisa. Distingue da atitude dogmática, própria da
maioria dos filósofos na antiguidade que afirmavam a intenção de se alcançar a
verdade. Diante da incerteza, o cético adota a posição de “suspender o juízo”,
que eles chamavam de epoché.
Para se chegar à suspensão do juízo, o
cético tinha que observar alguns modos: (a) o modo da discordância, que
considera que todas as opiniões divergem entre si; (b) o modo da regressão ao
infinito, em que a prova de um determinado argumento deve ser demonstrada até
se esgotarem as possibilidades; (c) o modo da relação, visto que todo
conhecimento que se tem de um objeto é relativo tanto à natureza do sujeito
quanto às condições em que o objeto se encontra; (d) Modo do postulado, que é a
rejeição de se adotar como base de argumentação qualquer postulado que não
tenha sido demonstrado; e (e) o modo do círculo vicioso: que é a tentativa de
justificar os argumentos pelas consequências apenas.
O ceticismo influenciou pensadores
como Descartes e Pascal, no começo da Modernidade (século XVII). Descartes
desenvolveu o que chamou de dúvida metódica, como um caminho investigativo para
se chegar às ideias claras e distintas. Para Pascal, a dúvida está vinculada
diretamente à investigação, pois duvidar e não investigar não só resulta em
infelicidade, mas também produz injustiça. Mais adiante, Soren Kierkegaard vai
defender a necessidade de que é preciso duvidar de tudo. Até mesmo a fenomenologia,
no século XX, se aproxima do ceticismo ao afirmar que só podemos conhecer as
coisas a partir das percepções que temos delas, ou seja, o que sabemos das
coisas é apenas o modo como elas nos afetam.
Duvidar no sentido estrito não é um
problema em si para a fé. Antes, é a base para não se acreditar nas convicções
sem provas, nas informações em rede social sem conhecer sua fonte, nas
manipulações dos dados para se confirmar crenças. Para isso, a Bíblia tem duas
recomendações: uma de Paulo, que nos diz para examinar de tudo e reter o que é
bom (1 Tessalonicenses 5.21); outra de João, que nos pede para não acreditarmos
em qualquer espírito (1 João 4.1).
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