terça-feira, 10 de março de 2020

Bem viver: um conceito plural / Well Living: a plural concept / Vivir Bien: un concepto plural


O conceito de Bem Viver é uma oportunidade para imaginar outros mundos, como afirma Alberto Acosta no livro O Bem Viver. Trata-se de um conceito que se contrapõe às noções de bem-estar e de la dolce vitta construídos pelo pensamento ocidental. Entretanto, delimitar a sua abrangência é uma tarefa que implica conhecer as várias experiências vividas pelos povos originários da América do Sul e sua relação com a natureza.
Em espanhol, os equatorianos se referem ao Buen Vivir, enquanto os bolivianos falam do Vivir Bien. Em português, o Bem Viver comporta uma pluralidade de significados. Todas essas expressões surgiram como traduções de formas linguísticas dos povos originários em seus modos de construir formas coletivas de vida. Referem-se, portanto, a uma visão de mundo desenvolvida por aqueles que habitavam o continente antes da chegada dos europeus.
Aquilo que tem sido chamado de Bem Viver nos estudos e nas práticas sociais e políticas de organização da sociedade tem a ver com um esforço de resgatar os saberes dos povos originários e elaborar uma alternativa viável à lógica exploratória e dominadora trazida pelos colonizadores. É um conceito em construção que visa superar a ideia do desenvolvimentismo, do consumismo e da lógica da acumulação, para dar lugar a uma visão mais abrangente, plural e decolonial. É uma tarefa tanto social quanto política, como afirma o próprio Acosta: “Nosso mundo tem de ser recriado a partir do âmbito comunitário. Como consequência, temos de impulsionar um processo de transições movido por novas utopias. Outro mundo será possível se for pensado e organizado comunitariamente a partir dos Direitos Humanos – políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais dos indivíduos, das famílias e dos povos – e dos Direitos da Natureza” (p. 26).
Uma das proposta para compreensão do Bem Viver é resgatar a diversidade linguística que os povos originários possuíam e que, de alguma forma, foram preservados após mais de 500 anos de colonização. Cada grupo ou etnia tinha sua forma de compreender e de construir seu jeito de ser e expressavam isso através de suas linguagens.
Quatro expressões se destacam, quando se tenta fazer um inventário linguístico a respeito do sentido do Bem Viver para os povos originários da América do Sul: Sumak Kawsai do povo Quíchua, Suma Qamaña do povo Aymara, Teko Porã dos Guaranis e Küme Mongen do povo Mapuche.
Sumak Kawsai é uma expressão do idioma quíchua, que abrange tribos no Equador e Peru, e quer dizer “viver plenamente” ou “plenitude da vida”. Trata-se de uma forma de enfrentar os desafios da vida, estimulando a assumir compromissos com a qualidade de vida tanto pessoal quanto de toda a humanidade. É a busca de uma harmonia do ser humano consigo, com o outro e com a natureza. É um princípio que se opõe a uma mentalidade voltada para a morte.
O princípio do Sumak Kawsai abrange três espaços vitais que orientam a conduta das pessoas, a ética, as ciências e até a religião. São eles: (a) O mundo de cima – que é mais do que a representação celeste, pois envolve o mistério e o sagrado. A relação com o mundo de cima promove um ideal de bondade e de perfeição, de práticas de adoração e de oração. Cada pessoa deve almejar alcançá-lo. (b) O mundo daqui – a nossa casa comum, marcado pelos fenômenos da natureza. Cada pessoa deve compreender que é parte do mundo, visto que cada ser contribui para o bem viver. E (c) o mundo de baixo – que envolve os poderes da destruição e do mal, representado pelas profundezas. É preciso desenvolver uma atitude respeitosa com esses poderes, como também evitar e afastar-se deles.
Os povos Aymara, que vive na Bolívia, se referiam ao Bem Viver com a expressão Suma Qamaña, que quer dizer, “bem conviver”. Significa “habitar com alguém” de maneira que ambos se protejam e se cuidem dos perigos, dos inimigos e até dos conflitos interpessoais e da fadiga. Isso se dava em torno de um círculo que as comunidades formavam em torno de si, que estabelecia o espaço para vida comum. Guando se diz que alguém vive bem tem o sentido de que todo o contexto em que a vida se dá é bom. Para viver bem, é preciso saber conviver com outro, acolhê-lo e apoiá-lo, mas também é preciso aproveitar bem as oportunidades e condições de vida que a natureza oferece. Trata-se de um equilíbrio entre a vida pessoal e as formas de existência no mundo, como experiência de possuir o necessário para se viver e de trabalhar por condições para que todos possuam os mesmos direitos e recursos. É um modelo de vida de austeridade e de satisfação com o que se tem em que ninguém deve ser excluído, nem as pessoas, nem a divindade, nem os demais seres vivos, nem a natureza. O Bem Conviver, portanto, envolve uma nova perspectiva de vida que implica cuidado com o outro, solidariedade, comunhão, reciprocidade, respeito e tolerância. O princípio do Bem Conviver não tem por objetivo mudar o mundo ou transformá-lo, mas aceitá-lo como ele é e viver nele de forma comunitária.
Teko Porã é a forma da língua Guarani traduzir o Bem Viver. Significa literalmente “vida boa”ou até mesmo “belo caminho”. Os guaranis ocupam grande parte da Bolívia, do Paraguai, Uruguais e Argentina, além da região Sul do Brasil e do Mato Grosso do Sul, onde são conhecidos também como Kaiowás. O Guarani, juntamente com o quíchua, é uma família linguística pré-colombiana das mais faladas na América Latina. O ideal de Bem Viver guarani se baseia no princípio da reciprocidade. A vida é caracterizada pela relação com a terra e a convivência com todos os seres que existem nela. Trata-se de uma relação que define o modo de ser, a cultura, as relações econômicas e sociais, a política e a religião. É o lugar “onde somos o que somos”. O guarani precisa da sua terra para para viver sua condição social e cultural.
Para os guaranis, a colonização foi um grande mal que os privaram de sua terra. O estilo de vida trazido pelos colonizadores é um “mal viver”, dominado pela exploração, pela ganância e pela competição. A história da colonização é marcada pela progressão do mal. Para vencê-lo, o Bem Viver é como uma utopia que conduz à prática da generosidade e da liberdade de expressão. Bens e palavras precisam circular livremente nas comunidades guaranis. A verdadeira liberdade só é possível através da convivência entre as pessoas um,a relação de complementaridade.
Küme Mongen, na linguagem do povo Mapuche, que habita o Chile e o Sul da Argentina, quer dizer viver em harmonia, como uma sabedoria de vida que contempla tanto os valores materiais como imateriais, o conhecimento de si, as relações interpessoais e as relações sociopolíticas. É uma preocupação com a qualidade de vida que Viver bem implica a conquista de condições ou características que tipificam o que é comumente chamado de integralidade do ser.
A proposta de Bem Viver dos mapuches consiste em dois aspectos: (a) a relação com a terra e a vida coletiva para viver em harmonia com a natureza e os demais; e (b) A reivindicação dos saberes ancestrais para a vida continue se expressando em toda a sua diversidade. O Papa Francisco, quando de sua visita ao Chile em janeiro de 2018, disse em sua homilia: “Todos nós que, de certo modo, somos povo formado da terra (cf. Gn 2, 7), estamos chamados ao bom viver (Küme Mongen), como no-lo recorda a sabedoria ancestral do povo Mapuche. Quanto caminho a percorrer, quanto caminho para aprender! Küme Mongen, um anseio profundo que brota não só dos nossos corações, mas ressoa como um grito, como um canto em toda a criação. Por isso, irmãos, pelos filhos desta terra, pelos filhos dos seus filhos, digamos com Jesus ao Pai: que também nós sejamos um só; fazei-nos artesãos de unidade.”
O Bem Viver mapuche está associado a uma profunda integração com a natureza, em equilíbrio com as forças e os seres que a habitam. Devemos reconstruir um modo de vida na sociedade capaz de entender a vida com um sentido mais digno, mais solidário e mais recíproco para todos, para todas as culturas, para todos os povos, com respeito à diversidade. É uma luta pelo amor à vida, pelo amor de todos os povos.
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