“[...] pois as suas misericórdias são
inesgotáveis” Lamentações 3.22
A principal
característica da personalidade divina apresentada em toda a Bíblia é a
misericórdia. Ao contrário do que se possa pensar, a Bíblia apresenta Deus como
alguém que é misericordioso desde o começo até o fim. Dá para entender isso ao
olhar para a natureza e perceber seu cuidado em toda a criação.
Nas
Escrituras, o sentido de misericórdia tem a ver com uma força, marcada pelo
amor, que age sobre as atitudes das pessoas quando estas se afastam do
propósito divino, quando a infidelidade prevalece e quando se tenta afirmar a
ilusão de que se pode viver sem Deus. Esta força atua naqueles momentos em que a
pessoa se sente fragilizada pelo sentimento de culpa, ao se dar conta de que
não é capaz de cuidar de suas próprias angústias. É nessa ora que surge o clamor pela
misericórdia divina, que se dá na expectativa do perdão e do acolhimento.
Moisés
lembrava-se disso em suas orações: “Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso,
paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a
milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado [...]” (Êxodo 34.6,7). Mesmo quando aqueles a quem
tanto ama agem de forma infiel e se desviam por caminhos que os distanciam mais
e mais, Deus sempre faz com que sua compaixão e seu amor generoso acalmem sua
ira. Por isso o poeta cantou: “Pois a sua
ira só dura um instante, mas o seu favor dura a vida toda” (Salmos 30.5).
O amor e a
justiça são as duas formas através das quais a misericórdia divina se
manifesta. O amor é o modo como Deus nos atrai para si. O profeta lembra bem isso:
“Eu a amei com amor eterno; com amor leal
a atrai” (Jeremias 31.3). Mas é em justiça que ele se relaciona conosco,
com o ser humano e com o mundo. Sua misericórdia é maior que seu senso de
justiça e é o que a orienta. “[...] A misericórdia triunfa sobre o juízo!” (Tiago 2.13).
A misericórdia
não só identifica quem é Deus como também marca a vida das pessoas que são
alcançadas por ela. Ela gera vida e cria uma relação de identidade com Deus.
Não há ninguém que tenha sido alcançado pela misericórdia divina que não
experimente também uma transformação pessoal que lhe impulsione a uma vida de
libertação.
Tomás de
Aquino afirmou que “é próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se
manifesta de modo especial a sua onipotência”. Por essa razão, podemos afirmar
que a misericórdia é um mistério. Ela revela Deus e promove nova vida aos que
são acolhidos por seu amor. É o caminho que une Deus e os homens, visto que
restaura a alegria de ser amado apesar de sermos pecadores, de ser acolhido
apesar de nossa condição de perdidos, de ser encorajado apesar de nossos muitos
temores.
A maior
expressão da misericórdia divina foi a sua revelação na pessoa de Jesus Cristo.
Foi assim que se referiu Zacarias quando recebeu a visita de Maria, grávida, em
sua casa: “Louvado seja o Senhor, o Deus
de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo [...] para mostrar sua misericórdia aos nossos
antepassados e lembrar sua santa aliança” (Lucas 1.68 e 72). Essa ideia de
que a misericórdia nos visitou para trazer salvação é a maior mensagem que
alguém pode ouvir. Jesus é a encarnação da misericórdia divina. Ou, em outras palavras,
“Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”,
conforme o Papa Francisco afirmou.
O mundo carece
de misericórdia. A contemporaneidade conquistou uma situação de conforto e
bem-estar através da ciência e da tecnologia que poderia lhe garantir segurança
e felicidade. Porém, a humanidade nunca esteve tão perdida, insegura e
desorientada. Só a misericórdia pode curar corações feridos, restaurar
relacionamentos destruídos, resgatar sonhos esquecidos, renovar a esperança
perdida e refrigerar almas cansadas. Ela pode nos curar e libertar de toda
angústia e temor.
De fato, experimentar
a misericórdia divina nos traz cura e libertação, mas também nos habilita a
oferecer essa mesma misericórdia a pessoas que necessitam dela. Jesus ordenou: “Sejam
misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso” (Lucas 6.36). Uma grande tragédia é a
possibilidade de existirem cristãos que não sejam capazes de serem
misericordiosos. Se alguém que diz ser um seguidor de Cristo, mas não é capaz
de exercer misericórdia, esse tal engana-se a si mesmo e é um escândalo para a vida em comunhão.
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