A verdade é sempre construída em
meio a uma relação de poder. Ela é um desejo, uma aspiração a que os homens não
têm acesso de forma plena. Ela sempre está velada ou mesmo falseada pelas
tramas da linguagem. Entretanto, ela é buscada pela filosofia, pela ciência e
pela religião como um ideal. Numa perspectiva metafísica, ela está inserida
numa relação entre a percepção do mundo e o que se diz dele. O problema é que a
verdade é sempre ela mesma, mas o mundo é vivo, está sempre em transformação.
Falar de verdade hoje implica
trazer à tona os conceitos de meia verdade e de pós-verdade em voga nos meios
de comunicação. Para compreender esses termos e seu emprego nas relações
políticas de hoje implica partir do pressuposto de que a verdade não se limita
a uma situação fática, do tipo “o livro está sobre a mesa”. A essência da
verdade é de outra ordem. Ela está além do discurso. Deveríamos até argumentar aqui
que não podemos falar de uma verdade absoluta, mas de verdades no plural.
Esses termos não são opostos à
verdade. Do mesmo modo, o oposto de verdade não é simplesmente mentira nem
mesmo um erro. A mentira é um valor moral, usado com uma certa intencionalidade.
O erro é do âmbito do conhecimento, resulta de uma atitude em aceitar algo como
verdade sem antes investigar. Tanto a mentira como o erro são valores que se
colocam diante da verdade, falseando-a, encobrindo-a e se oferecendo como
alternativa.
Meias verdades e pós-verdade são
aspectos morais de se lidar com a verdade. Pense nesses termos:
As meias verdades são mentiras
inteiras. O grande problema delas é quando quem as conta opta pela metade
mentirosa. A metade verdadeira sempre permanece sob suspeita. A meia verdade é
ingênua. Crianças, amantes e companheiros fazem uso dela para conservar a
relação, para proteger o outro ou mesmo para se preservar. Isso não faz dela
uma coisa boa. Mas expõe a realidade de que as pessoas nem sempre elaboram um
discurso que comporta toda a verdade.
A pós-verdade é um jogo
político, em que se divulga uma informação falsa, exagerada ou com interditos
para criar uma sensação de verdade. A pós-verdade é cruel. Geralmente é lançada
em redes sociais com cara, jeito e foro de verdade para aniquilar o outro. Ela
é mais do que um falseamento, é uma fraude. Está carregada de apelos emocionais
e de interpretações de fatos e acontecimentos de forma desconexa. O termo foi
criado pela imprensa norte-americana para tratar do fenômeno da eleição de
Trump à presidência de um modo politicamente correto.
Kant já dizia que “a verdade é um
dever para com quem tem direito a ela”. Ele estava preocupado se a verdade pode
ser compreendia como coerência ou como correspondência com o real. Na sua
crítica à razão pura, vai compreender que “a verdade do objeto é sempre apreendida e substanciada através da
verdade do juízo”, ou seja: a verdade é subjetiva.
Nietzsche,
por sua vez, afirmou que “a verdade não significa necessariamente o
contrário de um erro, mas somente, e em todos os casos mais decisivos, a
posição ocupada por diferentes erros uns em relação aos outros”. Não passa de
uma vontade de verdade. Por meio da linguagem, somos capazes de criar um mundo
de ficções e de interpretações que são úteis para a afirmação de nossas relações,
de nossa existência e até para o nosso fortalecimento.
A relação humana com a verdade é
de preservação da espécie, para conservar posições e para afirmar convicções. O
próprio instrumental lógico e racional construído para se buscar a verdade –
seja através da ciência, da teologia ou mesmo da filosofia – é resultado de um
longo processo histórico e demonstra o quanto estamos distanciados de valores
absolutos. O único que foi capaz de declarar “eu sou a verdade” foi
crucificado. Diante da indagação de Pilatos, sobre “o que é a verdade”, Jesus
não respondeu.
Dizer que a verdade não existe
seria um exagero. Não só ela existe como também as pessoas estão à procura
dela. Os gregos usavam a palavra “aletheia” para se referir a ela. Significa “não
encoberta”, ou seja, ela se desvela, precisa estar desnuda. Mas isso não
acontece de forma natural, exige uma transformação do sujeito. Como afirmou
René Descartes, “para pesquisar a verdade, é preciso duvidar, quanto seja
possível, de todas as coisas, uma vez na vida”.
A verdade se encontra num campo
indeterminado entre o sujeito e o objeto; não pertence ao sujeito nem ao
objeto, mas a uma instância mediadora que põe o sujeito e o objeto em relação.
O discurso verdadeiro é aquele que traz à luz aquilo que está encoberto pelas
imposições do saber, naquelas situações de confronto em que somos interpelados.
A verdade não é algo em relação a alguma coisa, mas ao que se é diante de si
mesmo.
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