“Quem causa problemas à sua família
herdará somente vento [...]” (Provérbios
11.29).
A alegria de
se viver em família é um assunto que está intimamente relacionado com nossa
espiritualidade. Por essa razão é que a igreja é a única instituição preocupada
com a vida em família atualmente, assumindo um papel de protetora, de promotora
e de acolhedora. De fato, a família tem passado por fortes e profundas
transformações, contudo isso não quer dizer que ela tenha perdido o seu valor.
As regras
morais que hoje são usadas para defender o ideal de uma família normal não são
retiradas das Escrituras, mas de um tempo mais recente, conhecido como “era
vitoriana”. Corresponde ao período em que a rainha Vitória reinou na
Inglaterra, no meado do século XIX até o início do século XX. Foi um período de
grande prosperidade econômica, em meio à Revolução Industrial, e de grandes
transformações culturais nos modos de se pensar a vida cotidiana e do
divertimento, como foi, por exemplo, a Belle
Époque na França e o Gilded Age nos
Estados Unidos.
A chamada era
vitoriana foi marcada pelo fortalecimento da classe média, que almejava cultura
e status. As classes mais elevadas ditavam os costumes que deveriam servir de
modelo para as camadas mais inferiores. A vida social foi cercada de uma forte
preocupação moral e por uma afirmação de padrões e valores rígidos para as
relações entre pessoas, vestuários, etiquetas à mesa e interações. É dessa
época também a afirmação de um modelo de família, cercado pelos conceitos
engendrados dentro do movimento do puritanismo e da repressão sexual.
Na concepção
vitoriana de família, o lar é tratado como um ambiente protegido, que deveria
servir como base moral para a sociedade. Para tanto, era necessário protegê-lo
dos ataques do pensamento mais liberal, bem como resguardá-lo para que fosse
mantido um ar de equilíbrio e de harmonia. Nesse sentido, numa afirmação bem
funcionalista, cabia à mulher o papel de guardiã da família e símbolo da moral
de toda a sociedade. Recai sobre ela a responsabilidade de manter a reputação
da família em meio ao convívio social. Para isso, deveria ser pura, delicada,
submissa e bela.
Ao homem cabia
o papel de provedor da casa, tanto no sentido financeiro como também na
segurança da família. Sua vida deveria ser devotada ao trabalho, aos negócios e
à vida pública, incluindo aí também a política. Era dele a iniciativa do
cortejo e das carícias, que nunca deveriam acontecer em público. Os filhos, por
sua vez, deveriam ser educados nos rígidos padrões morais da sociedade e cabia
à família o papel de instruí-los em relações aos costumes. A infância era vista
como uma fase em que se exigia a obediência aos pais. As crianças das famílias
mais ricas eram educadas por criados e serviçais da família. Já naquelas que
eram mais carentes, a criança deveria trabalhar desde cedo.
Como se pode
notar, o modelo de família que costumamos chamar de normal nos dias atuais tem
mais a ver com um padrão socialmente construído em um determinado momento da
história, que está mais voltado a um outro contexto cultural que não o nosso. Não
está relacionado com os modelos de família que se encontram na Bíblia.
Podemos
afirmar que a Bíblia não está preocupada em apresentar um padrão de vida familiar
nem de fazer com que os personagens bíblicos se tornem modelos ideais de conduta
para as pessoas em todo o tempo. Na verdade, ela está interessada em apresentar
situações de vida em família de forma real em que a gente se vê ali retratado.
Os relatos da
Bíblia em relação à vida em família não são obras de ficção nem mesmo de
idealizações produzidas a partir de um conceito fundador. São histórias de
famílias atravessadas por situações de sucesso e fracasso, dor e alegria,
conquistas e perdas, amor e traição que são encontrados em todo o tempo,
inclusive entre nós.
De um modo
geral, os estudos bíblicos tentam nos remeter à seguinte questão: como nossas
famílias podem ser analisadas à luz das famílias da Bíblia? Porém, uma questão interessante
a ser levantada é: como as famílias da Bíblia poderiam ser analisadas à luz da
terapia familiar nos dias de hoje? A partir dessas análises, poderíamos
encontrar muitas respostas para nossas inquietações diante dos dilemas vividos
em família hoje, em vez de concentrarmos nossa atenção e energia para tentar
implantar um tipo ideal que não se encaixa em nossas condições de vida atuais.
Compreender as
famílias da Bíblia a partir de um olhar crítico possibilita uma reflexão mais
ampla sobre os propósitos de Deus para a vida em família. Retira um pouco o
nosso foco de um modelo exemplar ou de uma tipificação dos relacionamentos e
nos apresenta a família como espaço de realização de nossa existência em todas
as suas dimensões. Daí podemos compreender que, em meio às fragilidades
inerentes à nossa condição humana, Deus pode – e quer – se revelar e realizar
sua graça e compaixão.
Podemos
confiar que Deus quer abençoar nossas famílias. Uma família normal, dentro de
uma perspectiva bíblica, não é aquela que tem papéis bem definidos em sua formação
nem é a que segue um padrão ideal, mas é a que Deus tem espaço para realizar
seus propósitos, em meio às nossas virtudes e fraquezas.
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