segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Reforma protestante e pluralidade / Protestant reform and plurality / Reforma protestante y pluralidad

Quando se fala de Reforma Protestante, não se refere a um movimento único e uniforme. Ela precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva plural, que aconteceu em um contexto de pluralidade, desenvolveu-se de forma variada e configura-se também por uma diversidade. O correto seria falar de reformas protestantes ao se tratar do fenômeno de transformação que o cristianismo experimentou no limiar da Modernidade.
Entretanto, esse aspecto plural nunca foi visto como um fator positivo, identificado como promotor de uma relação entre “inimigos de si mesmos”, para usar a expressão empregada no título do livro de Rowland Croucher que faz uma abordagem sobre o fenômeno do evangelicalismo, do socialismo evangélico e do neopentecostalismo característicos do movimento protestante a partir da década de 1960.
O pluralismo protestante tem sido objeto de um diálogo impossível, marcado muito mais por aspectos organizacionais, doutrinários, litúrgicos e até moralistas do que aqueles voltados para a essência da fé, da comunhão e do amor cristão.
Como afirmou Claudio de Oliveira Ribeiro, no artigo Espiritualidades plurais da Reforma: “a vivência comunitária e a pluralidade constituem privilegiado potencial de geração de utopia e que a ausência de referenciais utópicos dá lugar a formas de individualismos exacerbados, de lógicas de exclusão e de sectarismos, de imediatismos políticos, de racionalismos e de absolutismos, o que enfraquece a vivência autêntica e gratuita da fé e a noção de diaconia como canal de solidariedade, partilha e serviço. Tal pressuposição está em íntima sintonia com os princípios teológicos da Reforma”.
Essa pluralidade está refletida na formação histórica, na proposta teológica e na concepção eclesiológica. Não há uma história única do protestantismo: a reforma aconteceu de forma distinta na Alemanha, na Suíça, nos Países Baixos, na Inglaterra, Europa Central. Houve também movimentos que foram duramente combatidos na França, na Itália e Espanha. Também não é possível se falar de uma única teologia protestante: a chamada “teologia reformada” pode ser entendida a partir de tendências luterana, calvinista e as que marcaram a chamada reforma radical, com os grupos anabatistas e grupos separatistas. Da mesma forma, não se pode falar de uma única eclesiologia protestante, visto que os grupos foram adotando diversas formas de organização e de estrutura, como os presbiterianos, os congregacionais, os metodistas, uns mais hierárquicos e outros mais democráticos.
Embora haja essa diversidade histórica de expressões da Reforma, essa condição de surgimento, formação e configuração não representa uma oportunidade de diálogo fácil entre as várias manifestações do protestantismo nem com outras formas de expressão do cristianismo.
É preciso desenvolver uma análise crítica das condições de construção do que ficou conhecido como Reforma Protestante e identificar suas várias tendências bem como os fatores que promovem aproximações e distanciamentos entre eles. Nesse sentido, é possível falar de antecedentes, de ações e de desdobramentos que são plurais em seu âmbito.
1) Antecedentes plurais – Os séculos XIII-XIV foram marcados por movimentos após o chamado Grande Cisma que reivindicavam mudanças na igreja do Ocidente que envolviam dois aspectos. O primeiro, voltado para a reforma da fé e da hierarquia eclesiástica, com a atuação de expoentes como Pedro Valdo, John Wycliff, João Huss, Comênio e Savanarola. O segundo, que propunha uma mudança de costumes, mais voltado para aspectos morais, como foi o caso da reforma humanista de Erasmo.
No fim da Idade Média, especialmente nos séculos XIV e XV, havia uma grande insatisfação popular envolvendo questões sociais e ações religiosas que provocavam um clima de insegurança. Como consequências desse quadro, podemos citar a contestação ao clero e a busca por justiça social.
Podemos encontrar pelo menos três vertentes que antecederam a Reforma:
a) Uma vertente acadêmica, marcada pelo declínio da escolástica e o apelo à volta da simplicidade do Evangelho. Um dos textos conhecidos é Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis.
b) Uma vertente popular, marcada por movimentos marginais que se inspiravam em antigas ordens religiosas, como as dos franciscanos e dos dominicanos. Havia um apreço à vida monástica, um apego à prática de flagelos e penitências e a defesa de crenças escatológicas.
c) Uma vertente mística, marcada pela vida contemplativa e a ênfase numa teologia apofática. O Mestre Eckhart é um de seus representantes.
2) Ações plurais – Embora Lutero seja a figura de destaque do movimento da Reforma, o luteranismo não foi único. Outras expressões aconteceram ao longo de toda a Europa. Não podemos esquecer da participação de nomes como Zwinglio e Calvino, do anglicanismo, dos huguenotes franceses, de grupos radicais como os anabatistas e os separatistas ingleses, dos movimentos de reforma da Escócia e da Espanha, das comunidades mendicantes dos Países Baixos e do desdobramento místico do alemão Jacob Boehme e do espanhol João de Valdez. Outro teólogo que atuou de forma marcante foi Thomas Müntzer, que liderou um movimento de camponeses assumindo uma dimensão política e revolucionária do pensamento da Reforma, mas acabou sendo derrotado, preso e morto pelos próprios luteranos.
3) Desdobramentos plurais – Embora a Reforma Protestante tenha acontecido no final do período renascentista, ela se desenvolveu ao longo da Modernidade. Os acontecimentos históricos acabam se entrelaçando com outros eventos significativos desse período. Entre eles podemos mencionar a formação dos estados nacionais, o surgimento do pensamento liberal e a ênfase ao individualismo. Max Weber, inclusive, já tem identificado uma grande afinidade entre o protestantismo e o espírito do capitalismo, sistema político-econômico que se afirma no contexto da Modernidade.
No contexto do luteranismo alemão, surge o movimento pietista, que enfatizava a dimensão individual da experiência de Deus, com uma forte inclinação moralista e um apelo ao estudo das Escrituras. O pietismo defendeu crenças e práticas como a necessidade da conversão pessoal, da fuga do mundo e da prática piedosa da caridade e da tolerância.
Já no contexto inglês, onde se deu a reforma anglicana, surge outro movimento, o puritano, que procurar retirar os vestígios do catolicismo que foram mantidos na igreja da Inglaterra. O puritanismo pode ser considerado como um esforço pelo avivamento da igreja com importantes consequências para a expansão da compreensão da missão da igreja no mundo. Quando o puritanismo foi levado para a América, ali se expandiu e estabeleceu bases para a formação dos Estados Unidos como nação democrática.
Essa condição plural do protestantismo tem sido objeto de diversas investigações a respeito de suas causas e consequências. Entretanto, o que se pode notar é que, em meio a sua diversidade, há um distanciamento do espírito e das intenções que marcaram a Reforma Protestante.
O protestantismo é marcado hoje por pelo menos três características predominantes, cada uma delas como uma pluralidade de possibilidades:
a) Um viés fundamentalista.
b) Um viés carismático.
c) Um viés progressista.
O fenômeno do pluralismo protestante é um fator de divisão que tem desencadeado uma identidade marcada pela falta de diálogo interno. Essa falta de diálogo se reflete na esfera pública, com práticas e discursos que deixam claro que uma nova onda de “reforma” precisa acontecer. Os grupos protestantes são mais conhecidos pelo que proíbem do que pelo que defendem.
Essa diversidade decorre de princípios orientadores que precisam ser revisitados hoje no sentido de se contribuir bases para relações ecumênicas e de diálogo inter-religioso. Rubem Alves, no livro Protestantismo e repressão, identificou que o protestantismo foi, em seu primeiro momento, “a explosão de um grito reprimido de liberdade”. Entretanto, como salientou Bonhoeffer em sua Ética, a igreja protestante encarna o tema de nosso tempo, que é o da decadência.

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