No Estado Democrático de
Direito, espera-se que os conflitos que envolvem denúncias de atos ilícitos
sejam resolvidos pela Justiça isenta de influências ideológicas, de crenças ou
até mesmo de opiniões pessoais. É uma ingenuidade pensar que, apenas por termos
leis e um sistema jurídico que funciona, seremos uma sociedade livre de
contendas motivadas por interesses políticos e até mesmo pelas diferenças
socioeconômicas que marcam a estrutura da vida social. Um país com tantas
desigualdades sociais, mergulhado em uma crise recessiva e ainda por cima
dividido por questões político-partidárias passa por um momento de definição
sobre o papel da Justiça na defesa do princípio que rege esse mesmo Estado
Um exemplo disso é a maneira como
vem sendo encaminhado o processo que envolve o presidente Lula, que terá seu
desfecho na Segunda Instância no próximo dia 24 de janeiro – nesta semana,
portanto. O que se pode dizer, de um modo geral, é que o julgamento de Lula não
é jurídico, mas político. Independentemente da sentença que for proferida, seja
a sua absolvição, seja a nulidade do processo, seja a ratificação da condenação,
os efeitos sociais e políticos dessa decisão serão sentidos em todos os
segmentos da vida pública.
O que mais chama a atenção é que
o processo está eivado de aspectos que o torna, no mínimo, suspeito em relação a
um julgamento justo. Uma das frases mais usadas para justificar a tramitação da
acusação é “a lei é para todos”. Se é assim, a presunção de inocência, a
condenação somente com o trânsito em julgado e o ônus da prova são legalidades
que não estão garantidas para Lula. Seis fatores levam a pensar assim.
O primeiro é que a única prova material
que embasa todo o processo é o depoimento, em delação premiada, de um
criminoso. Todas as demais provas documentais colhidas são passíveis de
interpretações diversas, subjetivas e inconsistentes em relação ao núcleo
básica da acusação.
Em segundo lugar, o juízo de
valor que recai sobre o processo funciona como uma sentença antecipada de
condenação. Não se pode negar que há um sentimento de ódio em relação a Lula,
um desejo de vê-lo preso e banido da vida pública. Isso não vem de hoje. Vem
desde sua prisão em 1980 por causa das manifestações sindicais. Esse ódio é uma
herança da ditadura, que é realimentado a cada período eleitoral. É um fato: a
elite dominante tem ódio de Lula.
Terceiro, a materialidade
alegada pela acusação, o tríplex do Guarujá, já não serve mais como prova, pois
a titularidade legal pertence evidentemente a outro, que não o réu. Ou seja, se
o apartamento – ou mesmo as reformas e benfeitorias feitas – foi dado como
resultado de propina, ele nunca pertenceu a Lula ou a alguém de sua família.
Em quarto lugar, conforme
esclarecimento do próprio juiz de primeira instância, a origem do suposto dinheiro
ilícito não era de contratos com a Petrobras. O próprio juiz afirma que não
houve ato de ofício, ou pelo menos que ele é indeterminado.
Quinto, a falta de
imparcialidade dos atores jurídicos que envolvem o processo, com membros do
Ministério Público e dos tribunais por onde a ação tramita se manifestando em
redes sociais e através da mídia, demonstrando opiniões contrárias ao
posicionamento político do réu, muitas vezes de forma odiosa. São ministros,
desembargadores, juízes, promotores, agentes e servidores que se tornam
protagonistas e emitem opiniões pessoais fora dos autos.
E em sexto lugar, as falhas das
ações policiais e investigativas para se obter provas, com conduções
coercitivas, divulgação de escutas telefônicas ilegais, escutas telefônicas ilícitas,
celeridade incomum da tramitação do processo, para citar as que mais foram
mencionadas pela defesa e pela imprensa.
Tais fatores fortalecem mais a
absolvição do que a condenação. Juristas do mundo todo consideram que o processo
é insubsistente e o julgamento, parcial. Por outro lado, os detratores não
emitem análises jurídicas favoráveis à sua condenação, apenas discursos condenatórios
e a manifestação do desejo de vê-lo preso a qualquer custo. Se Lula é o
culpado, por que são necessários tantos malabarismos jurídicos para acusá-lo?
As evidências por si só deveriam servir de base para isso. Mas não é o que
acontece.
A questão mais importante é:
qual o custo de se condenar alguém a partir de um processo tão inconsistente? O
primeiro e mais imediato é o de permitir que aspectos políticos se sobreponham
aos procedimentos jurídicos. Se a condenação de Lula for mantida, imagina-se
que servirá de combustível para os segmentos mais conservadores. Se ela for
revertida, fortalecerá os setores mais progressistas, sem dúvida. O segundo é moral,
que envolve a continuidade desse tipo de ação sobre pessoas que são mais
vulneráveis. Se fazem isso com uma figura pública, com projeção internacional,
o que não seriam capazes de fazer com gente simples, motivados por outros interesses
que não a Justiça?
Conclusão mais óbvia a um leigo
diante desse processo é que o réu é inocente. Num júri popular, não restaria
outra alternativa a não ser a absolvição. Entretanto, o resultado está na mão da
Justiça institucionalizada, fechada em seus tribunais isentos. Se não for a
absolvição, o que a sociedade pode esperar é a nulidade do processo. Caso contrário,
estamos todos condenados a viver em um país em que se corre permanentemente o risco
de sermos excluídos, execrados e marginalizados da vida pública por caminharmos
na contramão da elite dominante.
Isso se torna mais grave em
função do histórico de ações da Justiça que sempre foi seletiva, a favor dos oligarcas
e contra pobres, negros e todo aquele que se opõe aos interesses da elite
conservadora e dominante. E não é a primeira vez que a Justiça interfere nos
rumos políticos do país. Foi assim na proteção e apoio ao golpe de 1964, na
cassação do senador Juscelino Kubitschek no mesmo ano, no silêncio em relação
ao AI-5 em 1968, na omissão nos casos de perseguição aos opositores do regime
militar durante os chamados anos de chumbo, na condução confusa do processo de
impeachment de Dilma Roussef.
Estamos diante de uma
encruzilhada. O julgamento de Lula serve como ponto crucial em que temos que
decidir por um avanço na área institucional, em que a Justiça esteja
comprometida com a manutenção e defesa do Estado Democrático de Direito, sem se
influenciar por sentimentos pessoais, interesses políticos ou pressões
ideológicas, especialmente por parte da elite dominante. E em relação a isso, as
manifestações de apoio a Lula e contrárias a um processo frágil é a única coisa
que nos resta.
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