“...
dia a dia eu era o seu prazer e me alegrava
continuamente com a sua presença” (Provérbios
8.30)
Tomás de Aquino disse certa vez
que Deus brinca, que ele cria brincando. A ideia de um Deus ludens, que brinca, que é bem-humorado, que cria brincando,
remete a uma concepção de mundo que desperta a noção de que também devemos
encarar a realidade pelo viés de uma brincadeira, com bom humor. O lúdico
comporta uma compreensão do mistério e nos confronta com a realidade que Deus
vê como uma brincadeira.
O aspecto lúdico do cuidado de
Deus com a criação serve como um contraponto diante dos argumentos que reforçam
a racionalidade do logos. A racionalidade não é apenas lógica, ela é também
lúdica. O lógico e o lúdico se complementam e se realizam no agir criador de
Deus.
O racional e o lúdico estão
presentes na criação de tal modo que a natureza não
é só logos, nem é só ludens, mas está
marcada por uma logicidade atravessada por bom humor e mistério. A ideia do Deus faber, que cria como um artesão, se
completa com a imagem do Deus ludens.
Deus não faz uma obra por necessidade. Ele cria por prazer.
A
natureza está permeada pelo lúdico e, por conseguinte, marcada pelo mistério,
que se mostra como indecifrável e o imponderável. A tradição cristã já
se referia à natureza da criação como resultado de uma inteligência divina,
criadora e transformadora. Gregório de Nazianzo,
em 390, chegou a afirmar que “o Logos sublime brinca. Enfeita com as mais
variegadas imagens e por puro gosto e por todos os modos o cosmos inteiro”.
Isso não nega a tese de Albert
Einstein, para quem “Deus não joga dados com o Universo”. Ele brinca. O
salmista diz: “Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A
terra está cheia de seres que criaste. Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem
inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Nele passam os navios, e
também o Leviatã, que formaste para com ele brincar” (Salmos 104.24-26).
A criação inteira é dotada de
uma capacidade para se recriar e se reinventar que é chamada de liberdade, e
isso também vale para o ser humano. As narrativas da criação demonstram que,
antes de criar o homem, Deus dá forma ao mundo a fim de que este acolha o
humano, numa relação de parceria e de organização que se realiza através de um
devir criativo que caracteriza a existência. O universo provoca a que o humano
não se limite a uma representação, mas que assuma sua própria mundanidade como
seu modo próprio de ser.
O ser humano, criado à imagem e
semelhança de Deus, não é um mero trabalhador que gerencia a terra ou um
espectador da exuberância da natureza, mas é convidado a tomar parte dela e a
construir sua existência na realidade do mundo criado. Como diria o místico
mestre Eckhart, se somos criados por um “rir contagiante” somos também
motivados a louvar ao criador com criatividade e alegria.
A encarnação de Deus em Cristo é
o auge desse jogo da vida, através do qual Deus quer tomar parte da história do
mundo, em que o eterno se faz temporal, em que o celestial se faz mundano, em
que o onipotente assume a morte, a fim de que a criação tenha oportunidade de
redenção, em exercício de liberdade. Um Deus que se esvazia para se tornar
aquilo que não é.
Por isso o salmista canta: “Regozijem-se
os céus e exulte a terra! Ressoe o mar e tudo o que nele existe! Regozijem-se
os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da
floresta, cantem diante do Senhor, porque ele vem, vem julgar a terra; julgará
o mundo com justiça e os povos, com a sua fidelidade!” (Salmos 96.11-13). E a sabedoria em Provérbios
fala de como Deus se alegra com a alegria de suas criaturas: “... dia a
dia eu era o seu prazer e me alegrava continuamente com a sua presença” (Provérbios 8.30).
Tomás Aquino afirmou, por isso,
que “o brincar é necessário para levar a vida humana”. Ser bem-humorado,
conviver com mais riso, cultivar o lúdico e fazer piada da vida são atitudes
que proporcionam uma nova visão do mundo. Há muita gente séria que está
morrendo por falta de humor. A sabedoria que se alegra com o Deus ludens também diz: “Eu me
alegrava com o mundo que ele criou, e a humanidade me dava alegria” (Provérbios 8.31).
Brincadeira para Deus é coisa
séria. Ele é alegria do começo ao fim. Parafraseando Nietzsche, o criador leva a
brincadeira a sério porque leva a sério a si mesmo. Fernando Pessoa falou, com o pseudônimo de Alberto Caeiro, do seu menino Jesus, a Eterna Criança: “Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. / Ele é o humano que é natural, / Ele é o divino que sorri e que brinca. / E por isso é que eu sei com toda a certeza / Que ele é o Menino Jesus verdadeiro”. Um menino assim tão humano só poderia ser divino, acrescenta ele. Rubem Alves disse que Deus
vê o universo como uma caixa de brinquedos. E arrematou: “Deus vê o mundo com os olhos de uma criança. Está sempre à procura de
companheiros para brincar”. Ainda bem. Isso quer dizer que o mundo ainda tem
jeito.
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