quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Mística e angústia em Kierkegaard / Mysticism and anguish in Kierkegaard / La mística y la angustia de Kierkegaard

A pergunta que se pode fazer de início é: existe uma mística protestante? A resposta comporta duas possibilidades: sim, na medida em que a experiência proposta pelo protestantismo consiste em uma relação de interioridade entre a pessoa e o indivíduo; nem tanto, na medida em que Lutero não é um pensador associado à mística, mas a própria reforma protestante comporta uma série de experiências místicas como se pode ver em Jacob Boehme, o pietismo a partir do final do século XVII, dos movimentos avivalistas ingleses e até do pentecostalismo no começo do século XX.
Dentre essas possibilidades da mística no pensamento reformado, é preciso levar em consideração a contribuição de Soren Kierkegaard. Em seu pensamento, o tema da angústia, e por conseguinte também do desespero, perpassa não só suas obras, mas também sua própria vida. Por essa razão podemos até afirmar que Kierkegaard é um místico da angústia. Para ele, a angústia tanto é gerada pelo pecado original como também é o último estado psicológico que dá origem ao pecado. E é nessa medida em que ele pode ser considerado como um pensador que interessa à mística. Em certo sentido, há em sua abordagem uma aproximação entre misticismo e antropologia visto que a relação com o divino não se dá por meio de um êxtase ou mesmo de um recolhimento, mas de uma busca que visa o fortalecimento do homem interior.
Soren Kierkegaard afirmou que “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade”. Se buscarmos compreender essa frase à luz da proposta de Juan M. Velasco, em El fenomeno místico, poderíamos afirmar que Kierkegaard se refere ao fenômeno que envolve a mística. Para Velasco, a mística é a “experiência no mais íntimo da pessoa de uma realidade sobre-humana”. Ou seja, vai além do que se percebe na vida comum e que se faz presente através de uma série de manifestações que a convertem em fato histórico e humano. Isso tem a ver com transcendência. A frase de Kierkegaard aponta para o fato de que há uma angustia humana pela busca de algo que está para além de nós mesmos. É o que se chama de transcendência. Não importa, neste momento, se esta busca tem a ver com o divino. O que é relevante pensar é que a transcendência é um fenômeno humano que engloba um campo de percepção.
De um modo geral, o pensamento de Kierkegaard experimentou duas fases, nas quais se pode verificar diferentes modos de se tratar a mística. Uma primeira que é fortemente marcada por seu anti-hegelianismo e o idealismo alemão, em que a temática da angústia aflora dando margem a uma mística especulativa. A existência humana não pode se deixar limitar por uma conceituação racional. Quando Sartre analisa a relação entre os dois pensadores, afirma que a diferença está na maneira de se estabelecer uma crítica do saber e na delimitação do seu alcance. Um segundo momento é marcado por suas próprias inquietações pessoais diante do paradoxo da experiência religiosa. Ele, então, elabora, uma reflexão a respeito das circunstâncias concretas e históricas em que a religião se dá. A sua preocupação principal estará voltada para o conhecimento de si e para a relação com a verdade. Nessa fase, a leitura de autores místicos se torna fundamental.
No que diz respeito à experiência mística, Kierkegaard está mais voltado para a intimidade do pensamento cristão com a vida e com os aspectos éticos que estão implicados em uma vida autenticamente cristã. A grande ousadia do cristão é ser o que é de fato diante de Deus. E isso passa por uma construção de si como imitação de Cristo, que é o modelo da singularidade humana e da existência. É, portanto, uma mística arraigada à existência, visto que a angústia e o desespero estão vinculadas visceralmente à vivência humana: a pessoa angustiada tende a voltar-se para uma interioridade e, nessa experiência, tende a encontrar Deus.
A finalidade da vida humana é procurar uma constante autossignificação e reafirmar permanentemente uma identidade de si. Trata-se de uma experiência de subjetividade que reivindica sua individualidade, mas que por isso mesmo pode se tornar causa de erros e equívocos. Mas também a pessoa pode escolher buscar viver como um herói, que procura oferecer o melhor de si. Essa busca comporta uma luta contra Deus que se dá por meio da fraqueza. Para tanto, a fé se torna um paradoxo, pois comporta o risco de equivocar-se, mas que ao mesmo tempo oferece o sentido para vida. Na vivência da fé, o indivíduo encontra-se numa relação absoluta com o absoluto.

Toda essa inquietação do pensador dinamarquês é exposta em uma intensa produção literária. Em seu diário, ele chegou a afirmar que sua vida foi produzir. Disse também que não passou um dia sequer sem escrever ao menos uma linha. Sua obra não só é vasta em termos quantitativos, mas também comporta uma variedade de estilos e de ideias. A coletânea de seus escritos foi elaborada em algumas etapas: a primeira, composta de 14 volumes de obras propriamente ditas, publicadas de 1920 a 1926; a segunda, com 20 volumes de papéis, publicada de 1909 a 1948, e a terceira consistiu em um volume de cartas publicado em 1953.

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