A
pergunta que se pode fazer de início é: existe uma mística protestante? A
resposta comporta duas possibilidades: sim, na medida em que a experiência
proposta pelo protestantismo consiste em uma relação de interioridade entre a
pessoa e o indivíduo; nem tanto, na medida em que Lutero não é um pensador
associado à mística, mas a própria reforma protestante comporta uma série de
experiências místicas como se pode ver em Jacob Boehme, o pietismo a partir do
final do século XVII, dos movimentos avivalistas ingleses e até do
pentecostalismo no começo do século XX.
Dentre essas possibilidades da mística no pensamento
reformado, é preciso levar em consideração a contribuição de Soren Kierkegaard.
Em seu pensamento, o tema da angústia, e por conseguinte também do desespero, perpassa
não só suas obras, mas também sua própria vida. Por essa razão podemos até
afirmar que Kierkegaard é um místico da angústia. Para ele, a angústia tanto é
gerada pelo pecado original como também é o último estado psicológico que dá
origem ao pecado. E é nessa medida em que ele pode ser considerado como um
pensador que interessa à mística. Em certo sentido, há em sua abordagem uma
aproximação entre misticismo e antropologia visto que a relação com o divino
não se dá por meio de um êxtase ou mesmo de um recolhimento, mas de uma busca
que visa o fortalecimento do homem interior.
Soren Kierkegaard afirmou que “o homem é uma síntese de
infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade”.
Se buscarmos compreender essa frase à luz da proposta de Juan M. Velasco, em El fenomeno místico, poderíamos
afirmar que Kierkegaard se refere ao fenômeno que envolve a mística. Para
Velasco, a mística é a “experiência no mais íntimo da pessoa de uma realidade
sobre-humana”. Ou seja, vai além do que se percebe na vida comum e que se faz
presente através de uma série de manifestações que a convertem em fato
histórico e humano. Isso tem a ver com transcendência. A frase de Kierkegaard
aponta para o fato de que há uma angustia humana pela busca de algo que está
para além de nós mesmos. É o que se chama de transcendência. Não importa, neste
momento, se esta busca tem a ver com o divino. O que é relevante pensar é que a
transcendência é um fenômeno humano que engloba um campo de percepção.
De um modo geral, o pensamento de Kierkegaard experimentou
duas fases, nas quais se pode verificar diferentes modos de se tratar a
mística. Uma primeira que é fortemente marcada por seu anti-hegelianismo e o
idealismo alemão, em que a temática da angústia aflora dando margem a uma
mística especulativa. A existência humana não pode se deixar limitar por uma
conceituação racional. Quando Sartre analisa a relação entre os dois pensadores,
afirma que a diferença está na maneira de se estabelecer uma crítica do saber e
na delimitação do seu alcance. Um segundo momento é marcado por suas próprias
inquietações pessoais diante do paradoxo da experiência religiosa. Ele, então,
elabora, uma reflexão a respeito das circunstâncias concretas e históricas em
que a religião se dá. A sua preocupação principal estará voltada para o
conhecimento de si e para a relação com a verdade. Nessa fase, a leitura de
autores místicos se torna fundamental.
No que diz respeito à experiência mística, Kierkegaard está
mais voltado para a intimidade do pensamento cristão com a vida e com os
aspectos éticos que estão implicados em uma vida autenticamente cristã. A
grande ousadia do cristão é ser o que é de fato diante de Deus. E isso passa
por uma construção de si como imitação de Cristo, que é o modelo da
singularidade humana e da existência. É, portanto, uma mística arraigada à
existência, visto que a angústia e o desespero estão vinculadas visceralmente à
vivência humana: a pessoa angustiada tende a voltar-se para uma interioridade
e, nessa experiência, tende a encontrar Deus.
A finalidade da vida humana é procurar uma constante
autossignificação e reafirmar permanentemente uma identidade de si. Trata-se de
uma experiência de subjetividade que reivindica sua individualidade, mas que por
isso mesmo pode se tornar causa de erros e equívocos. Mas também a pessoa pode
escolher buscar viver como um herói, que procura oferecer o melhor de si. Essa
busca comporta uma luta contra Deus que se dá por meio da fraqueza. Para tanto,
a fé se torna um paradoxo, pois comporta o risco de equivocar-se, mas que ao
mesmo tempo oferece o sentido para vida. Na vivência da fé, o indivíduo
encontra-se numa relação absoluta com o absoluto.
Toda essa inquietação do pensador dinamarquês é exposta em
uma intensa produção literária. Em seu diário, ele chegou a afirmar que sua
vida foi produzir. Disse também que não passou um dia sequer sem escrever ao
menos uma linha. Sua obra não só é vasta em termos quantitativos, mas também
comporta uma variedade de estilos e de ideias. A coletânea de seus escritos foi
elaborada em algumas etapas: a primeira, composta de 14 volumes de obras
propriamente ditas, publicadas de 1920 a 1926; a segunda, com 20 volumes de
papéis, publicada de 1909 a 1948, e a terceira consistiu em um volume de cartas
publicado em 1953.
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