quarta-feira, 7 de abril de 2010

Crônica de uma tragédia anunciada: reflexões que a chuva em Niterói proporciona / The storm in Niterói / El temporal de Niterói

Aproveitei a suspensão das aulas na universidade onde trabalho, por conta do temporal que se abateu sobre Niterói, para localizar os amigos e me situar em relação aos estragos que a todo momento o noticiário da tevê bombardeia. Liguei para alguns participantes do grupo que me acompanha na plantação de igreja na região oceânica. Todos estavam bem, com exceção da informação de que alguns familiares do Fernando tiveram suas casas inundadas.
Passei na confecção da Ana Paula e aproveitei para orar com os funcionários, todos moradores de áreas de risco. Uma fala da amiga que faleceu com seu filhinho, outra conta da tragédia na família de mais alguém, algumas lágrimas e muito lamento. Nada a fazer a não ser orar e lembrar que Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia, pelo que não temeremos ainda que um temporal fora das expectativas se abata sobre nossas cabeças.
À tarde fui ao médico, busquei alguns exames, check-up de rotina. Em cada lugar, muita dor e tristeza, marcas de uma tragédia, daquelas que a gente só vê acontecer pelo noticiário, longe. Aproveitei para passar pelas obras do empreendimento onde eu e Solange construímos o sonho da casa própria e vejo que parte da contenção desmoronou. Nenhuma vítima, graças a Deus. Talvez um atraso no prazo de entrega da obra. Segui a pé pelo bairro e, mais acima, começa o cenário de destruição. A rua principal interditada pelo barranco que desmoronou. Seguindo para o centro da cidade, cortando a comunidade que está no morro, um enorme despenhadeiro que se formou. Lá no alto, alguns barracos na beira da encosta que cedeu teimavam em resistir. Em baixo, escombros de sonhos e projetos. Familiares chorosos. A viatura da Defesa Civil acabara de sair com o último corpo retirado. Só naquele lugar, quatro morreram. Há outros 30 pontos de deslizamento em outros morros da cidade. Tive que conter o choro em público, mas não pude deixar de conversar com alguns e ser solidário com a dor deles.
De volta à casa, algo me inquieta e não posso deixar de constatar que tudo isso se resume no triste quadro da tragédia que vivemos nesse tempo. Não posso esquecer do discurso dos políticos na noite anterior, eximindo-se da responsabilidade pela falta de investimentos em projetos habitacionais e planejamento da vida da cidade. Em momentos como esse, eles se esquecem que o papel primitivo da política é de criar possibilidades da vida feliz na cidade. Daí o nome: política vem de polis, que em grego é cidade. Esquecem principalmente que vivemos em uma sociedade desigual, que relega uma significativa massa humana à desventura de construir seus barracos em altos de morro e em alagados, os únicos refúgios que lhes resta para abrigar seus filhos e construir um futuro.
Alguns podem até dizer que os tempos são maus, que são sinais do fim. Que me desculpem os teólogos que pensam dessa maneira. A sucessão de terremotos, tsunamis e temporais está longe de ser sinal do fim dos tempos. Ao contrário, a Bíblia diz que são apenas o início das dores, consequência de enganos na maneira como a humanidade tem orientado a vida. O que tragédias como as de Angra dos Reis, Haiti, Chile e, agora, Niterói apontam é que a lógica que orienta a maneira como organizamos a sociedade, a ocupação do solo, o uso dos recursos naturais e até mesmo como atribuímos sentido à vida estão equivocados, fundados em um sentimento egocêntrico, ambicioso e injusto, o que se reflete na desigualdade, na intolerância, na violência e na ignorância a que a sociedade está mergulhada de um modo geral.
Acho ruim tratar dessa questão e não apontar caminhos para soluções. O problema é que o caminho para a solução desse dilema em que vivemos passa pelo diálogo e pela humildade de confessar que as tentativas têm sido insuficientes para dar fim a todo esse drama. Penso que isso só poderá acontecer quando buscarmos conhecer a nós mesmos e nos descobrirmos como incapazes de ter o controle de todas as coisas. Só assim poderemos tomar decisões que levem em conta a lógica do criador de todas as coisas. Quem sabe nessa época poderemos escolher representantes mais justos e honestos para cuidar de nossa sociedade. Quem sabe também poderemos construir um futuro melhor, menos desigual, levando em consideração que aquilo que não é bom para mim, também não o é para quem quer seja. Quem sabe desenvolveremos um estilo de vida que se importe mais com o que estamos nos tornando do que com o que estamos possuindo.

Um comentário:

  1. Muito boa análise. Gostei.. e destaco o fechamento quando diz.. "Acho ruim tratar dessa questão e não apontar caminhos para soluções. O problema é que o caminho para a solução desse dilema em que vivemos passa pelo diálogo e pela humildade de confessar que as tentativas têm sido insuficientes para dar fim a todo esse drama. Penso que isso só poderá acontecer quando buscarmos conhecer a nós mesmos e nos descobrirmos como incapazes de ter o controle de todas as coisas. Só assim poderemos tomar decisões que levem em conta a lógica do criador de todas as coisas. Quem sabe nessa época poderemos escolher representantes mais justos e honestos para cuidar de nossa sociedade. Quem sabe também poderemos construir um futuro melhor, menos desigual, levando em consideração que aquilo que não é bom para mim, também não o é para quem quer seja. Quem sabe desenvolveremos um estilo de vida que se importe mais com o que estamos nos tornando do que com o que estamos possuindo"

    Agnaldo.

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