“[...] tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (João
13.1).
O
que levou Jesus a morrer numa cruz? A teologia tradicional nos dirá que Jesus
escolheu assim para nos substituir de forma completa, para pagar o preço de
nossos pecados. E nos dirá com toda convicção que o próprio Pai enviou seu
filho, por amor, para morrer em nosso lugar. Ele foi dado em sacrifício vivo e perfeito
para a nossa salvação.
Essas
informações foram passadas para nós como se fossem verdades absolutas. Porém, a
morte na cruz não pode ser tratada como um fato isolado, independente do
contexto em que Jesus Cristo viveu. Podemos dizer que ela é resultado de algo
muito maior e muito mais complexo. A crucificação é resultado da paixão.
Primeiramente,
a paixão de um Deus pela humanidade. Tomado de um amor louco, Deus toma a
decisão de encarnar a nossa humanidade de forma plena, cercado por todas as
nossas ambiguidades, contradições e fragilidades, mas também de virtudes e
valores. Ele escolheu nascer numa manjedoura entre animais, comer e andar com
pecadores e morrer crucificado entre marginais, embora tivesse tudo para viver
de outro modo. Nasceu em uma família de sangue nobre, herdeira de um trono; foi
educado entre mestres e doutores para ser como um deles; e teve várias
oportunidades de escapar da perseguição e da morte durante a sua vida. Isso nos
leva a perguntar: o que alguém tomado de paixão é capaz de fazer? Levar às
últimas consequências seu amor sem medida.
Em
segundo lugar, a paixão de uma pessoa que viveu de modo que só poderia resultar
em uma morte implacável. Jesus afrontou as autoridades judaicas ao acusar sua
hipocrisia e injustiça. De um lado, seus ensinos colocavam em questão a validade
da tradição e apresentavam novos significados e possibilidades de interpretação.
Por outro, desafiou os costumes da época, fazendo coisas que rompiam com certos
hábitos: ele curou no sábado, tocou em pessoas imundas, acusou a maldade de
fariseus e doutores da lei. Mas Jesus também afrontou as autoridades romanas. Ele
escolheu estar ao lado de gente vulnerável, desprezada por sua condição de
pobreza. Por causa de suas posturas, muitas vezes foi tomado como um
revolucionário, que seria capaz de conduzir o povo à superação das formas
dominantes de opressão e de exploração. Jesus desafiou as estruturas políticas e
religiosas de seu tempo.
Em
terceiro lugar, os episódios que cercaram o período que chamamos de paixão de
Cristo foram marcados por um conflito: não só Jesus foi preso, açoitado,
condenado e consequentemente crucificado pela fúria de seus inimigos, mas também foi
traído, negado e abandonado pelos seus amigos. As narrativas da paixão não só
demonstram a maldade dos inimigos, mas também a traição dos amigos. E elas não
só despertam uma reflexão crítica sobre a condição humana, mas também nos
indica caminhos para a nossa realização. O remorso da traição e da maldade pode
nos conduzir à fuga, à indiferença ou até mesmo ao suicídio. Mas o amor louco
de alguém que escolheu viver como viveu, ao ponto de assumir até o fim as consequências
disso, nos conduz a um reencontro, a uma nova oportunidade, a uma atitude de
transformação de nossa maneira de viver.
Alguém
que escolheu viver como Jesus viveu só poderia morrer como ele morreu. Não foi Jesus que
escolheu a cruz, foram os homens que rejeitaram a oferta de vida de Jesus e o
conduziram à cruz. A
morte de Jesus na cruz é da mesma natureza da morte de quem morre lutando por
direitos dos mais frágeis. A cruz é uma vergonha para nós, pois representa a nossa
escolha humana de rejeitar a oferta do amor divino pela humanidade. Um amor que
não compreendemos, mas que necessitamos. A cruz é o símbolo do amor rejeitado, embora
sejamos tão carentes dele. Contemplar a cruz nos remete às minhas próprias
carências como também à minha própria dificuldade de acolher o amor divino.
A
paixão de Jesus é um mistério. Ela expõe a nossa humanidade, mas ao mesmo tempo
revela o amor e a justiça de Deus. Tanto fala de nossas carências e fraquezas,
como nos fala da graça redentora. Ela aponta para a nossa finitude, como também
nos oferece uma abertura para o que está além de nós mesmos. Pensar na paixão
pela via da teologia tradicional pode nos conduzir a equívocos. Uma justiça,
ainda que divina, que precisa da morte de alguém para produzir seus efeitos é
falha. Um pai, ainda que seja o Pai Nosso, que manda seu filho para morrer tem
um amor muito duvidoso. Um Deus que precisa do sacrifício de alguém para aplacar
sua ira por causa dos pecados do outro é um deus fraco. A
cruz desconstrói a nossa ideia de um Deus racional e imutável e nos remete ao encontro com o Deus que se faz presente de forma silenciosa na dor de quem morreu por amor.
Mas
a paixão de Jesus não só não é um fato isolado, como também não possui um fim
em si mesma. A paixão não se consuma na cruz. Ela se realiza na ressurreição. O
encarnado e crucificado, ressuscitou. E as narrativas da paixão que encontramos
nos evangelhos têm o cuidado de nos contar toda a história: Jesus foi traído,
preso, torturado, condenado, crucificado, sepultado e ressuscitado. Sem a
ressurreição, a morte na cruz não passaria de um martírio ou sacrifício. Mas
ela é mais que isso, é o chamado para a realização da vida de Deus na nossa
vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário